Geral
Painel Os Diferentes Tempos do Feminino lota auditório Graziela Maciel Barroso
Às vésperas do Dia Internacional da Mulher (8/3), o painel os Diferentes Tempos do Feminino abriu a programação do mês da mulher no Jardim. Empoderamento, inclusão, transformações do papel da mulher na sociedade e o manejo do tempo em um mundo onde as mulheres assumem cada vez mais funções foram temas centrais deste debate, que contou com presença das palestrantes Rosiska Darcy de Oliveira (ABL), Carla Rodrigues (IFCS/UFRJ) e Begonha Bediaga (JBRJ).
Antes de dar a palavra a Rosiska Darcy, Samyra Crespo, presidente do JBRJ, destacou a importância deste tipo iniciativa, ressaltando que o programa de gênero é uma das prioridades de sua gestão, que entre outras ações, criou um Comitê de Gênero em 2014.
Tsunami de transformações
Pensar o feminino em um momento histórico marcado por contínuas e profundas transformações é para Rosiska Darcy o equivalente a descrever um tsunami enquanto ainda estamos sofrendo seus efeitos. Além de uma transição geracional, caracterizada pelos desencontros normais da passagem do tempo, o mundo vive hoje uma indiscutível mudança de era. No que tange ao feminino, as transformações passam pela ruptura de um paradigma milenar que separava os mundos dos homens e das mulheres.
Aquilo que minha vó chamaria de feminino, hoje não é reconhecível por uma menina deste século. Nascia-se mulher com uma imagem de esposa e mãe impressa no espelho. Este espelho se quebrou e não é impunemente que se vive uma transição civilizatória deste porte, afirmou a escritora.
Um exemplo dessa era de transformações que teve início há pouco mais de um século é a trajetória controversa da botânica pioneira do JBRJ Maria Bandeira, tema da apresentação de Begonha Bediaga. Mulher à frente de seu tempo, cientista, alpinista, Bandeira abandonou a carreira para entrar na clausura do Convento das Carmelitas Descalças, e só agora sua historia está sendo recuperada.
Feminino e Cultura
Para Carla Rodrigues, afirmar a mulher ao lado da cultura e não da natureza foi crucial para emancipação de um destino até então percebido como natural. Tradicionalmente, as diferenças biológicas serviram de argumento para alocar as mulheres e homens em lugares diferentes da sociedade: razão e a cultura ficaram reservadas aos homens e natureza, emocional e a esfera privada, ao feminino.
Inspirada pelo Jardim Botânico do Rio, onde a dimensão cultural da pesquisa e a dimensão natural convivem em harmonia, a pesquisadora propôs repensar a separação entre natureza e cultura. Reconhecer a dicotomia natureza x cultura, mulher x homem contribui para não fundamentar em nenhum gênero a essência de nossos papeis sociais.
Reengenharia do Tempo
O direito à voz própria e à liberdade de escolha foram ganhos, mas segundo Rosiska, as mulheres ainda pagam um preço alto por esta conquista. Com a migração da vida privada para o mundo do trabalho, o maior desafio do feminino é a engenharia do tempo. Tudo mudou, menos a duração do dia que permanece com 24 horas. Espera-se das mulheres que sejam mães, profissionais e cidadãs em um contexto de economia desafiadora. Esta crise de caráter biográfico e individual acontece em um mundo simultaneamente afetado por uma crise histórica
Neste cenário, a criação de políticas que reconheçam o tempo necessário para a vida privada foi apontada como essencial. Criar mecanismos que permitam um melhor aproveitamento do tempo para a vida privada incluem medidas que flexibilizem a jornada de trabalho, entre elas o home office.
Atualmente, seguimos a lógica mecânica da fábrica, no entanto já vivemos em um mundo virtual. É preciso provocar este debate, chamar o problema de problema e alertar para a gravidade social deste fato.
A jornalista citou ainda a baixa participação feminina na esfera política como um desafio a ser superado. No Brasil, apesar de representarem 51,95% do eleitorado, as mulheres não chegam a ocupar 10% dos cargos políticos. A baixa autoestima das mulheres, que não se sentem confiantes para se candidatar; o preconceito, que dificulta sua eleição, e a sobrecarga de funções foram apontados como algumas razões para a performance incipiente.
A invenção do Feminino Desafio e Risco
Para Carla Rodrigues, inventar a mulher é a tarefa do século 21, um desafio que passa pelo reconhecimento das diferenças entre homens e mulheres sem excluir a igualdade.
O feminino ainda é um grande ponto de interrogação, cabe às mulheres afirmar seus desejos e afirmar a dignidade face aqueles que nos cercam. Para defendermos direitos, precisamos antes de tudo afirmar nossa própria dignidade. A presença do feminino na cultura é um fenômeno inegável e estamos enfim saindo da invisibilidade e existindo como cidadãs, encerrou Rosiska.
Maria Bandeira Botânica Pioneira do Jardim Botânico do Rio
Dando continuidade ao painel, a historiadora do JBRJ Begonha Bediaga apresentou Maria Bandeira, uma botânica pioneira do Jardim desconhecida na história da instituição até 2014. A descoberta desta personagem é fruto de pesquisa realizada pela própria Begonha, Ariane Peixoto (JBRJ) e Tarciso Filgueiras (Instituto de Botânica de São Paulo). A historiadora falou da trajetória de Bandeira e levantou hipóteses para explicar a sua invisibilidade na história da ciência.
Nascida em 1902, Maria Bandeira foi uma mulher à frente de seu tempo. Na década de 20 ingressou no JBRJ, onde contribuiu para o crescimento das coleções científicas. Fluente em idiomas, Maria Bandeira estabeleceu contatos com cientistas de diversos países, colaborando para que o JBRJ tivesse mais relevância na rede científica internacional da época. Praticante de alpinismo, realizou coletas em locais de difícil acesso. Hoje, o Herbário do JBRJ conta com cerca de 800 coletas da botânica.
Para Begonha, em uma época em que as mulheres tinham dificuldades em seguir carreiras profissionais, Maria Bandeira contrariou um destino óbvio para sua classe social.
Estudou na Sorbonne, em Paris, onde trabalhou no Laboratório de Fisiologia Geral sob a orientação de Lapicque. Entretanto, apesar da resistência da família, em 1931, Bandeira abandona seu trabalho e retorna ao Brasil para ingressar no Convento das Carmelitas Descalças, em Santa Teresa.
Os motivos que a levaram a desistir de uma exitosa carreira profissional são desconhecidos. Begonha apontou como hipótese o falecimento de seus pais. Na ausência de amparo sobretudo masculino, em uma sociedade em que uma mulher solteira sofria preconceitos de gênero, Bandeira teria encontrado dificuldade e, talvez, sentido-se insegura para dar continuidade à carreira.
O desconhecimento da figura de Maria Bandeira na história das ciências pode ser explicado pelo uso de prenomes abreviados. A botânica assinava suas coletas com M. Bandeira ou M. C. Bandeira o que dificultou a percepção de que se tratava de uma mulher, dentre os inúmeros homens cientistas do JBRJ, à época.
O fato de não ter publicado trabalhos científicos nos quais constaria o nome completo da autora revela as dificuldades que Maria Bandeira pode ter encontrado em se assumir como uma cientista, à semelhança de seus colegas da instituição. A ausência de publicações contribuiu para o desconhecimento da importância de Bandeira.
Para Begonha, Maria Bandeira não foi uma aventureira, tampouco exótica e fora de seu tempo. A sua invisibilidade, ocasionada por circunstâncias diversas, completou-se com sua entrada para o Convento de Santa Teresa, tendo se concretizado na figura simbólica da clausura religiosa. Mas também esta decisão radical pode representar uma forma que ela encontrou de se reinventar e de se afirmar como autora da própria vida.
Texto: Julia Guttler
Fotos: Ester Santos