Entrevista à Ciência Hoje
Publicado em
30/11/2015 11h00
Atualizado em
26/11/2020 19h40
Artigo de Luísa Massarani e Maria Ignez Duque Estrada, publicado na Ciência Hoje, em julho de 1997, onde consta uma entrevista com Graziela Maciel Barroso
Ela já foi chamada de "primeira grande dama" da botânica brasileira. Em sua homenagem, cerca de 25 espécies vegetais identificadas nos últimos anos foram batizadas com seu nome, como Dorstenia grazielae (caiapiá-da-graziela), da família das moráceas (a da figueira); Diatenopteryx grazielae (maria-preta), uma sapindácea; e Baubinia grazielae, conhecida como pata-de-vaca. Mas o maior orgulho da professora Graziela Maciel Barroso, aos 84 anos, é ter formado centenas de alunos nos seus mais de 50 anos de atividade. Discreta, à primeira vista ela parece merecer mais a comparação com a violeta do que com as grandes árvores que receberam seu nome. Porém, ao conhecer sua vida, percebe-se que "Dona Graziela", como quase todos a chamam, tem a mesma qualidade da madeira. Basta pensar: uma mocinha de 16 anos casa-se com um agrônomo e torna-se dona de casa e mãe. O trabalho do marido faz com que a família se mude sucessivamente para vários Estados brasileiros. Só em 1940 ela fixa-se no Rio, e em 1942, com 30 anos, começa a trabalhar no Jardim Botânico, ao qual dedica toda a sua vida profissional. Como é que aquela jovem mãe e esposa (viúva aos 37 anos) teve tempo para estudar e reunir conhecimentos que, como seus ex-alunos revelam, "não estavam nos livros"? Em uma época em que não havia cursos de especialização em botânica no Brasil, ela formou a maioria dos botânicos hoje em atividade. "Quando se abriam as inscrições para seus cursos os candidatos faziam fila", conta a botânica e ex-aluna Angela Studart da Fonseca Vaz. Os antigos alunos hoje colegas continuam ouvindo-a quando precisam de ajuda. Como Vera Klein, que viaja periodicamente de Juiz de Fora, onde leciona, para conversar com ela em seu apartamento, no Leblon, ou no Jardim Botânico, do qual ainda é consultora e onde ainda vai regularmente. Ciente da modéstia da mestra, Vera conta: "Dona Graziela já orientou 50 teses de mestrado e 15 de doutorado. Tem cerca de 60 artigos publicados em periódicos especializados. Seu livro mais recente, A morfologia dos frutos e sementes de dicotiledôneas brasileiras aplicada à sistemática, está em fase final de revisão, será publicado em breve pela Universidade Federal de Viçosa (MG). Entre outras homenagens, o prédio da botânica sistemática do Jardim Botânico recebeu seu nome em 1989. Mas a homenagem mais original aconteceu no carnaval passado: o convite da Escola de Samba Unidos da Tijuca, do Rio de Janeiro, para que participasse do seu desfile em comemoração aos 189 anos do Jardim Botânico, com o enredo Viagem pelos cinco continentes num jardim.
A senhora começou a trabalhar em botânica depois que seus filhos estavam já grandes...
Sim, já tinha 30 anos. Quando comecei a trabalhar no Jardim Botânico, em 1942, era estagiária, herborizadora. Só em 1945 houve concurso. Nessa época, não se exigia título universitário, nem havia mesmo uma universidade: os cursos eram feitos nas faculdades de filosofia e o concurso não exigia nenhuma especialidade. Fiz o concurso de botânica, para ser naturalista do Jardim Botânico. Nenhuma mulher tinha feito esse concurso, de modo que houve uma certa prevenção por parte dos candidatos homens, que eram cinco, sendo eu a única mulher. Eram cinco vagas. Eles achavam que era uma barbaridade uma mulher fazer esse concurso. Fiz e passei muito bem, em segundo lugar, e em 1946 fui trabalhar com meu marido em sistemática botânica. Foi ele quem começou a receber estagiários lá no Jardim, que não tinha nada disso, eram só aqueles botânicos célebres. Não havia uma preocupação em ter elementos novos. Mas meu marido morreu logo depois, em 1949, e continuei o trabalho dele. Eu recebia estagiários de toda parte e orientava, ensinava, transmitia.
Nessa época já estava na faculdade?
Não, só entrei para a faculdade em 1959. Fiz vestibular para o curso de biologia. Eram 140 candidatos e passei em décimo lugar. Foi até uma coisa que ninguém esperava porque eu já terminara meus estudos havia muito tempo. Estava com 47 anos e fui muito bem acolhida pelos colegas, todos jovens. Naquela época eram três anos de biologia e um de licenciatura para quem pretendia o magistério secundário. Comecei no Instituto Lafayette, que logo que entrei se tornou Universidade da Guanabara. Então me formei pela Universidade do Estado da Guanabara, que é hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ.
Antes de prestar o concurso para o Jardim Botânico, a senhora já tinha contato com a botânica por meio de seu marido?
Muito pouco. Eu era mais dona de casa e mãe de família. Mas quando meu marido estudava eu estava sempre perto dele. Quando eu era mocinha, fiz o curso da Escola Normal de Cuiabá (sou mato-grossense de Corumbá). Fiz três anos, não cheguei a me formar, porque me casei aos 16 anos, antes de acabar.
Seu marido era de lá também?
Não, ele era cearense e foi trabalhar em Corumbá. Lá me conheceu e nos casamos. Tive meu primeiro filho ainda lá, com 18 anos. Aí em novembro de 1930 viemos para o Rio.
Ele já veio direto trabalhar no Jardim Botânico?
Não. Ainda viajou muito. Fomos para o interior da Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, até que em 1940 nos fixamos definitivamente no Rio.
Mas ele sempre trabalhava diretamente ligado à botânica?
Sim. Estudava principalmente plantas têxteis, mas gostava mesmo era de sistemática e fazia muitas excursões sozinho pelos matos de lá, porque morávamos naquelas estações experimentais do governo que eram no meio do mato. A gente não morava na capital. Ele viajava muito por aquelas cidadezinhas, coletando material e identificando. Ele sempre gostou muito de botânica. E em 1940 veio para o Jardim, já para a seção de sistemática. Morei no Horto Florestal, durante dois anos e meio, porque ele assumiu depois a chefia da silvicultura no Horto Florestal. Era um trabalho muito bonito. Foi nessa época que vim trabalhar no Jardim. Esse foi o meu começo. Depois, sempre me dediquei muito ao meu trabalho, sempre gostei muito do que faço e a coisa mais importante é que formei todos esses botânicos novos. E eles se destacaram de tal maneira que hoje são pesquisadores internacionais, melhores do que eu.
Quais foram os seus alunos mais destacados?
Muitos, como Lúcia d'Ávila Freire de Carvalho, especialista em solanáceas; Haroldo Cavalcante de Lima, especialista em leguminosas; Marli Pires Morim de Lima, também especialista em leguminosas; Maria do Carmo Mendes Marques, especialista em sistemática; Nilda Marquete Ferreira da Silva... Se eu fosse contar... Foi tanta gente que eu formei! Nem todos ficaram no Brasil. Muitos são professores universitários. Ana Maria Juliete, uma grande pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), fez, quando eu era professora em Brasília, um estágio comigo de seis meses. Até hoje dou aula nos cursos de pós-graduaçao. Agora mesmo estava com um curso programado para Pernambuco, mas tive uma gripe muito forte. Durante a gripe estudei, preparei o curso, mas depois um exame de sangue detectou uma anemia muito forte, e então não tive permissão do meu médico para viajar. Tenho também um curso programado na Universidade de Londrina.
A senhora chegou a trabalhar fixo em alguma outra instituição ou sempre no Jardim Botânico?
Trabalhei na Universidade de Brasília (UnB). Fui para lá em 1966 e fiquei três anos. Em princípio de 1969 voltei para o Jardim. O CNPq pediu que eu voltasse porque estavam sentindo a minha falta. Como eu estava muito aborrecida por causa das invasões à universidade e tinha participado de muitas coisas ali, preferi voltar.
Fui a primeira professora de botânica da UnB. Também ali eu era professora não só do Instituto de Botânica, mas também de alunos que faziam medicina. Consegui despertar amor pela botânica nesses alunos. Hoje, vários deles são médicos em Minas Gerais, mas sempre me telefonam. Depois do programa da Regina Casé [Brasil Legal, em que a professora Graziela foi entrevistada], eles me telefonaram, dizendo que nunca esqueceram tudo aquilo que ensinei. Foi ali que começaram a amar as plantas.
E assim tem sido a minha vida, sempre essa atividade de transmitir o que aprendo, porque não paro de estudar. Recebo muitas coisas novas, pesquisas novas de botânicos austríacos, alemães, franceses, leio os trabalhos deles e procuro transmitir para os meus alunos. Porque gosto disso, de trazer novidades para os alunos. Aprendo e transmito.
Qual foi a sua principal contribuição à sua área de especialidade, a sistemática?
O meu livro Sistemática de angiospermas do Brasil, adotado em todas as universidades do Brasil quando se faz botânica. E mesmo os pesquisadores estrangeiros que estudam plantas do Brasil usam esse trabalho. São três volumes, dos quais o primeiro foi publicado pela USP e os outros dois pela Universidade de Viçosa. Agora vai sair um sobre frutos e sementes com aplicação na sistemática, também pela Universidade de Viçosa. Publiquei também muitos trabalhos em revistas de várias entidades, como o Jardim Botânico, alguns em revistas estrangeiras, com participação de botânicos estrangeiros. Tenho muitos trabalhos publicados.
Mas a senhora não tem plantas em casa...
Justamente por amá-las muito não quero trazê-las para cá. Mas onde morei, em Pedra de Guaratiba, eu tinha um jardim lindíssimo. Quando me mudei, trouxe uma porção, mas não dá. Ficam muito fechadas, não têm sol suficiente, não se pode dosar a quantidade de água. Plantas não podem viver em um ambiente de dois quartos e sala. É muito sacrifício. Mas não podia mais continuar lá na Pedra de Guaratiba. Não havia segurança e principalmente por causa de minha saúde embora eu seja um pessoa que tenha saúde boa, mas precisava de certos recursos próximos.
A senhora tem predileção por alguma planta especialmente?
Gosto de todas, mas ultimamente tenho trabalhado muito com as mirtáceas família da goiaba, da pitanga do Rio de Janeiro, porque essa família é uma das mais ricas e menos conhecidas. Estudo as espécies silvestres. As pessoas que faziam levantamento fitossociológico reclamavam que não havia quem as identificasse, ninguém se interessava por elas, nem havia trabalhos sobre elas. O único estudo, além da Flora brasiliensis, de Martius, de 1857-59, era o de um botânico dinamarquês, Kiaerkou, de 1892-99. Não havia mais nada. Os herbários eram pobres nessa família. Ninguém as coletava. Durante muitos anos estudei as compostas, também uma família muito numerosa, e formei muitos especialistas nessa família. Então achei que já era tempo de procurar outra família para formar outros pesquisadores. Comecei a estudar as mirtáceas e foi uma coisa muito boa. Durante os trabalhos feitos na Mata Atlântica os pesquisadores traziam muito material e identifiquei 46 espécies de Macaé de Cima, 36 de Magé, 48 de Poço de Antas, 76 de Parati, e agora apresentei um trabalho com 217 espécies só do Rio de Janeiro. Acredito que haja só aqui no Estado cerca de 300 espécies novas para o Rio de Janeiro, de modo que esse trabalho está sendo importante porque há plantas que foram coletadas há mais de 100 anos e não figuravam nos nossos herbários. Foram levadas para os herbários europeus e nunca mais foi registrada a presença delas aqui, porque ninguém as estudava. Agora todas elas estão vindo para os herbários. E com isso verificamos que há um endemismo muito acentuado, que uma grande parte das mirtáceas só existe no Rio, outras só em São Paulo. É esse o trabalho que venho fazendo, além de dar cursos de pós-graduação.
A senhora sempre se preocupou em orientar seus alunos para o estudo de áreas carentes de pesquisa.
Justamente, foi esse o meu principal objetivo.
E quais seriam essas áreas hoje?
Quando foi implantado o Programa Mata Atlântica é que se viu que, de um modo geral, não havia estudos sobre a Mata Atlântica do Rio de Janeiro. As pessoas iam estudar material da Amazônia, de Pernambuco, da Bahia, mas não estudavam o material deste Estado. Esse programa foi criado há cerca de 10 anos no Jardim Botânico e em vários lugares (tem na Bahia, em São Paulo etc.) e foi realmente muito bom. Vários botânicos que formei estão fazendo esse estudo e eu trabalho com eles. Tem muitas áreas mal trabalhadas, aqui mesmo no Rio! Parece mentira, mas há pouco tempo, em 1995, descrevi duas espécies novas em torno do Jardim Botânico. Por aí pode-se ver como a falta de recursos para excursões dificultava. Agora não, com o novo diretor, o doutor Sérgio Bruni, o Jardim Botânico passou a ser Instituto de Botânica e as coisas melhoraram bastante. Os programas desenvolvidos no Jardim Botânico Mata Atlântica, Flora do Estado do Rio de Janeiro, Vegetação das Áreas do Entorno do Jardim Botânico, Parque Lage e Horto Florestal trouxeram realmente um benefício muito grande, porque as espécies raras estão sendo coletadas de modo sistemático, tudo marcado (época de floração, época de frutificação), bem planejado, de modo que o estudo da botânica cresceu.
O Jardim Botânico tem estado melhor em termos de manutenção e conservação, não?
Esse novo diretor está sendo muito bom, por estar conseguindo recursos e equipamentos para a pesquisa e informatizando os diferentes setores do Jardim.
Quais são as características que uma pessoa deve ter para trabalhar com botânica sistemática? Paciência?
Para qualquer área da botânica, o fator principal é amor, é gostar do que se faz. Tem muita gente que acha a sistemática chata. Não: é a coisa mais linda você abrir uma flor, ver a morfologia de uma flor, procurar o nome dela, saber como ela vive, cresce. Mas, enfim, é uma coisa de que nem todo mundo gosta. Quando pego uma planta para estudar é como se fosse um filho que eu visse crescer. O amor que sinto por aquilo é muito grande. Acho que em qualquer profissão, a primeira coisa é amor, é gostar do que faz, só isso dá realmente sucesso nos estudos. É se dedicar o dia inteiro. Estou agora doente, o médico proibiu, mas dou minha escapulida e vou trabalhar um pouco. Depois de aposentada eu estava trabalhando oito horas por dia. Daí você vai dizer "por certo estava ganhando", não, eu ganhava o dinheiro da aposentadoria. Tenho uma bolsa do conselho, mas não é por causa do dinheiro. É porque realmente gosto daquilo que faço. Acho que essa é a principal característica para qualquer trabalho que você queira fazer.
Seus filhos... Quantos são? Eles também seguiram a botânica?
Tive dois, uma rapaz e uma moça. Meu filho era piloto, morreu em 1960, quando eu estava no segundo ano da universidade. Todo mundo pensou que eu fosse abandonar, porque fiquei arrasada. Mas não só não deixei de trabalhar, como cinco dias depois estava no Jardim Botânico e na Universidade, porque procurei no trabalho toda a força que precisava ter. Até hoje sofro muita saudade, mas tenho uma parte espiritual bem formada. Minha filha Mirtila não quis seguir botânica: ela é pintora. Ela pinta muito as paisagens de Guaratiba e também fez curso de direito.
Ela chega à natureza de outra maneira?
É como dizem: eu faço botânica e ela pinta botânica.
Como a senhora vê essa posição que a comunidade científica tem hoje, de dar muito valor a um doutoramento, a um pós-doutoramento?
Realmente, esses estudos trazem mais conhecimentos. Agora, acho que dão uma importância demasiada. Tenho doutorado, fiz na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mas já tinha publicado uma porção de trabalhos. Hoje se dá muito valor a essas coisas... e o título nem sempre corresponde ao saber. Mas é sempre bom, esses cursos de pós-graduação trouxeram muita coisa boa para a ciência.
É verdade que a concorrência é muito grande, muita gente se formando, e sem abrirem concursos nem nada. Lá no Jardim, por exemplo, temos uma porção de estagiários, excelentes. E com esses cortes, a gente teme pela situação deles, pensando se realmente valeu a pena dedicarem todos esses anos a um aprendizado e depois não terem compensação. Porque todo mundo precisa ter uma posição, uma situação financeira estável, para poder trabalhar.
Queríamos que a senhora contasse a história daquela planta que tem seu nome.
Qual delas? Tem várias. Uma delas foi o Haroldo de Lima que descobriu no Espírito Santo, e o gênero tem meu nome Grazielodendrum riodocensis Lima. É uma leguminosa, uma árvore linda, grande. Agora o Haroldo encontrou uma nova espécie do gênero aqui no Rio de Janeiro, na Mata Atlântica.
É uma bela homenagem...
Foi uma homenagem muito honrosa, não há dúvida.
A senhora esteve no Jardim Botânico de Londres, o Kew Garden?
Estive um mês trabalhando lá. É uma beleza, mas o nosso Jardim... Tem gente que diz "Ué, não tem flores". É que o nosso Jardim Botânico é tropical, tem árvores. Não tem aqueles canteiros com flores, porque é um jardim tropical. Uma vez uma pessoa reclamou da falta de flores lá, e eu disse que se ela olhasse para cima ia ver que muitas árvores estavam floridas.
Eles têm levado muitos bolsistas brasileiros para estudar lá, não? Têm um intercâmbio grande com o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, não?
Sim. O Jardim Botânico tem intercâmbio com várias entidades estrangeiras. Ultimamente é mais com Londres. Os ingleses têm muito contato com a USP, conosco, com a Bahia. Eles estão, por exemplo, fazendo aquele trabalho da chapada Diamantina, do qual eu também participei. Fiz a apresentação das compostas de uma parte da chapada Diamantina. Temos também um intercâmbio ativo com os EUA, com o New York Botanical Garden.
Esse interesse também é comercial ou é só científico?
É científico. E porque eles também amam as plantas, querem estudá-las, descobrir novas espécies, levar material para o herbário. Eles trabalham muito bem.
O que a senhora tem a dizer sobre as ameaças à natureza no nosso país?
É uma barbaridade. Mesmo a chapada Diamantina, em Minas Gerais. Aquilo é uma verdadeira beleza. Era um santuário, como o Pantanal mato-grossense. Eu conheço o Pantanal, a chapada Diamantina, a chapada dos Veadeiros. Tudo está sendo depredado pelo homem. O que há é impunidade. Conheci as matas do sul da Bahia e norte do Espírito Santo. Era uma coisa belíssima, aqueles jacarandás. Quando voltei lá, em uma excursão com o Burle Marx e a Margaret Mee, nós choramos ao ver como tinha sido arrasado. O homem que devastou deu entrevista em um programa importante da televisão, dizendo que tinha feito isso, que ganhou muito dinheiro e não estava arrependido, porque tinha aberto estradas e isso era bom. Quer dizer, não aconteceu nada com ele. Foi um crime o que ele fez. E há muitos outros. É proibido soltar balões. Balão traz incêndios nas matas, ocasiona uma porção de coisas. Em Pedra de Guaratiba, eu vivia brigando porque os baloeiros agem abertamente. Brigava, explicava, falava... mas o que podia fazer, uma andorinha só não faz verão. O que há é impunidade. Se essas pessoas que fazem esses estragos na natureza fossem punidas... Por exemplo, o Ibama tem boa vontade, mas tem pouquíssimos guardas. O Brasil é imenso. Com um pouco de guardas na Amazônia, outro no Nordeste, não dá. Enquanto eles estão cuidando daqui, alguém está depredando lá adiante. É preciso ter mais gente vigiando.
E mais consciência das pessoas...
Mais consciência. Acho que a única coisa que pode salvar ainda o pouquinho do que resta é educação. Mas você educa uma criança, o pai dela diz que mato tem de tirar, e ela fica sem saber o que fazer. O homem é o ser mais depredador que existe. É uma pena. Ele não se compenetrou de que é apenas um elemento do ambiente, ele não é o dono. "Tanta madeira boa... plac!" e acaba. Porque para ele o que importa é ter dinheiro no bolso, não tem amor à natureza. É incapaz de olhar uma árvore florida e sentir respeito. O que falta é justamente isso, o sentido ecológico. Todo mundo fala em ecologia. Meu Deus! Ecologia é uma ciência dificílima. Têm pessoas que podem dizer que são conservacionistas. Eu não sou ecologista, sou conservacionista. Para ser ecologista, é preciso aprender um monte de coisas que eu não sei. Como a botânica, a ecologia é uma ciência muito bonita, mas requer conhecimentos que não tenho. O nome foi muito deturpado.
Lá em Guaratiba tinha a Casa da Ecologia na qual ninguém sabia sobre ecologia e me chamaram para dar uma palestra. Daí, eu comecei logo: eu não sou ecologista, sou conservacionista. Para ser ecologista precisa saber várias coisas, que não estão no meu currículo. Teria muita honra em ser, mas não sou.
A senhora mencionou Margaret Mee, Burle Marx... Eram pessoas com as quais a senhora convivia? O sítio do Burle Marx: devia ser perto da casa em Guaratiba...
Era perto sim, mas minha amizade com o Roberto é uma amizade de mais de 40 anos, porque eu identificava plantas no sítio dele. Então eu ia lá identificar, conversava, trocava idéias com ele. Tinha um botânico, Dimitri Sucre, um panamenho que veio fazer um estágio de dois meses e ficou 20 anos trabalhando comigo lá no Jardim Botânico. Era um grande botânico, mas hoje é mais paisagista, porque precisava viver. Ele só tinha uma bolsa no Jardim. Nós íamos para o sítio, fazíamos excursões Dimitri, eu, Margaret Mee, Roberto e mais uma equipe do Roberto. Viajamos por muitos lugares no Brasil. As excursões que fiz foram graças ao Burle Marx, que pagava todas as despesas da viagem para mim e Dimitri, então viajamos por muitos lugares do Brasil. Realmente ele amava a natureza. Margaret Mee era muito amiga do Burle Marx. Era uma pessoa maravilhosa. Eu gostava muito dela. Era uma pessoa fora do comum.
A senhora chegou a ir à Amazônia com a Margaret Mee?
Não. Fui só para dar um curso. Fiquei um mês em Manaus e fui muitas vezes ao Pará, mas também para dar cursos e fiz pequenas excursões nos arredores de Belém e também na Serra dos Carajás.
Margaret Mee não era botânica...
Não, era artista, mas amava a botânica. Ela não estudava, só fazia pintar. Mas aprendia o nome da planta, como o Roberto, que era arquiteto. Ele decorava o nome das plantas e sabia uma infinidade de nomes. Um botânico identificava e ele decorava. Ele partiu da arquitetura, porque achava que se devia introduzir plantas brasileiras na arquitetura. Foi aí que se uniu a botânicos. Realmente ele tinha um grande amor à natureza. Não depredava como muitas pessoas ele trazia mudas do mato e multiplicava no sítio dele, tirava sementes e usava essas plantas no jardim. Hoje o sítio é uma fundação.
Quais foram as outras pessoas extraordinárias que a senhora conheceu? Pessoas que a tenham inspirado, transmitido coisas que a senhora acha que devem ser lembradas?
São tantas pessoas! Uma delas é Dimitri Sucre, esse paisagista panamenho. Ele realmente é uma pessoa que ama a natureza. Trabalhou comigo 20 anos no Jardim, sem remuneração, só por amor. O Dr. Campos Porto, que foi diretor do Jardim, foi outro grande botânico e também um grande diretor. Tive muito contato com o Gottsberg, que estudou muito a biologia floral do cerrado. Mantenho amizade com ele, que está na Áustria, mas sempre me manda material. Quando vem ao Brasil, coleta plantas e as passa para mim, para identificar. Também não posso esquecer o nome de dois grandes botânicos brasileiros, amigos meus, que muito contribuíram com seus trabalhos de pesquisa: João Murça Pires, do Museu Emílio Goeldi, e Dárdano de Andrade-Lima, da Empresa Pernambucana de Pesquisa Agropecuária.
Quer dizer que os botânicos formam uma espécie de clube, não?
Justamente. Gottsberg estava trabalhando na Universidade de Ulm, sua última carta foi de lá. Mandou-me uma série de plantas coletadas do Pantanal do Mato Grosso para eu identificar. Ghillean Tolmie Prance, atual diretor do Jardim Botânico de Nova York, viveu muitos anos no Brasil, e é outro membro assíduo desse "clube". É um profundo conhecedor da Amazônia e um ser humano maravilhoso. São tantos que... Mas, sem dúvida, foi meu marido quem mais me estimulou. Tudo que sou, devo a ele.
Ela já foi chamada de "primeira grande dama" da botânica brasileira. Em sua homenagem, cerca de 25 espécies vegetais identificadas nos últimos anos foram batizadas com seu nome, como Dorstenia grazielae (caiapiá-da-graziela), da família das moráceas (a da figueira); Diatenopteryx grazielae (maria-preta), uma sapindácea; e Baubinia grazielae, conhecida como pata-de-vaca. Mas o maior orgulho da professora Graziela Maciel Barroso, aos 84 anos, é ter formado centenas de alunos nos seus mais de 50 anos de atividade. Discreta, à primeira vista ela parece merecer mais a comparação com a violeta do que com as grandes árvores que receberam seu nome. Porém, ao conhecer sua vida, percebe-se que "Dona Graziela", como quase todos a chamam, tem a mesma qualidade da madeira. Basta pensar: uma mocinha de 16 anos casa-se com um agrônomo e torna-se dona de casa e mãe. O trabalho do marido faz com que a família se mude sucessivamente para vários Estados brasileiros. Só em 1940 ela fixa-se no Rio, e em 1942, com 30 anos, começa a trabalhar no Jardim Botânico, ao qual dedica toda a sua vida profissional. Como é que aquela jovem mãe e esposa (viúva aos 37 anos) teve tempo para estudar e reunir conhecimentos que, como seus ex-alunos revelam, "não estavam nos livros"? Em uma época em que não havia cursos de especialização em botânica no Brasil, ela formou a maioria dos botânicos hoje em atividade. "Quando se abriam as inscrições para seus cursos os candidatos faziam fila", conta a botânica e ex-aluna Angela Studart da Fonseca Vaz. Os antigos alunos hoje colegas continuam ouvindo-a quando precisam de ajuda. Como Vera Klein, que viaja periodicamente de Juiz de Fora, onde leciona, para conversar com ela em seu apartamento, no Leblon, ou no Jardim Botânico, do qual ainda é consultora e onde ainda vai regularmente. Ciente da modéstia da mestra, Vera conta: "Dona Graziela já orientou 50 teses de mestrado e 15 de doutorado. Tem cerca de 60 artigos publicados em periódicos especializados. Seu livro mais recente, A morfologia dos frutos e sementes de dicotiledôneas brasileiras aplicada à sistemática, está em fase final de revisão, será publicado em breve pela Universidade Federal de Viçosa (MG). Entre outras homenagens, o prédio da botânica sistemática do Jardim Botânico recebeu seu nome em 1989. Mas a homenagem mais original aconteceu no carnaval passado: o convite da Escola de Samba Unidos da Tijuca, do Rio de Janeiro, para que participasse do seu desfile em comemoração aos 189 anos do Jardim Botânico, com o enredo Viagem pelos cinco continentes num jardim.
A senhora começou a trabalhar em botânica depois que seus filhos estavam já grandes...
Sim, já tinha 30 anos. Quando comecei a trabalhar no Jardim Botânico, em 1942, era estagiária, herborizadora. Só em 1945 houve concurso. Nessa época, não se exigia título universitário, nem havia mesmo uma universidade: os cursos eram feitos nas faculdades de filosofia e o concurso não exigia nenhuma especialidade. Fiz o concurso de botânica, para ser naturalista do Jardim Botânico. Nenhuma mulher tinha feito esse concurso, de modo que houve uma certa prevenção por parte dos candidatos homens, que eram cinco, sendo eu a única mulher. Eram cinco vagas. Eles achavam que era uma barbaridade uma mulher fazer esse concurso. Fiz e passei muito bem, em segundo lugar, e em 1946 fui trabalhar com meu marido em sistemática botânica. Foi ele quem começou a receber estagiários lá no Jardim, que não tinha nada disso, eram só aqueles botânicos célebres. Não havia uma preocupação em ter elementos novos. Mas meu marido morreu logo depois, em 1949, e continuei o trabalho dele. Eu recebia estagiários de toda parte e orientava, ensinava, transmitia.
Nessa época já estava na faculdade?
Não, só entrei para a faculdade em 1959. Fiz vestibular para o curso de biologia. Eram 140 candidatos e passei em décimo lugar. Foi até uma coisa que ninguém esperava porque eu já terminara meus estudos havia muito tempo. Estava com 47 anos e fui muito bem acolhida pelos colegas, todos jovens. Naquela época eram três anos de biologia e um de licenciatura para quem pretendia o magistério secundário. Comecei no Instituto Lafayette, que logo que entrei se tornou Universidade da Guanabara. Então me formei pela Universidade do Estado da Guanabara, que é hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ.
Antes de prestar o concurso para o Jardim Botânico, a senhora já tinha contato com a botânica por meio de seu marido?
Muito pouco. Eu era mais dona de casa e mãe de família. Mas quando meu marido estudava eu estava sempre perto dele. Quando eu era mocinha, fiz o curso da Escola Normal de Cuiabá (sou mato-grossense de Corumbá). Fiz três anos, não cheguei a me formar, porque me casei aos 16 anos, antes de acabar.
Seu marido era de lá também?
Não, ele era cearense e foi trabalhar em Corumbá. Lá me conheceu e nos casamos. Tive meu primeiro filho ainda lá, com 18 anos. Aí em novembro de 1930 viemos para o Rio.
Ele já veio direto trabalhar no Jardim Botânico?
Não. Ainda viajou muito. Fomos para o interior da Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, até que em 1940 nos fixamos definitivamente no Rio.
Mas ele sempre trabalhava diretamente ligado à botânica?
Sim. Estudava principalmente plantas têxteis, mas gostava mesmo era de sistemática e fazia muitas excursões sozinho pelos matos de lá, porque morávamos naquelas estações experimentais do governo que eram no meio do mato. A gente não morava na capital. Ele viajava muito por aquelas cidadezinhas, coletando material e identificando. Ele sempre gostou muito de botânica. E em 1940 veio para o Jardim, já para a seção de sistemática. Morei no Horto Florestal, durante dois anos e meio, porque ele assumiu depois a chefia da silvicultura no Horto Florestal. Era um trabalho muito bonito. Foi nessa época que vim trabalhar no Jardim. Esse foi o meu começo. Depois, sempre me dediquei muito ao meu trabalho, sempre gostei muito do que faço e a coisa mais importante é que formei todos esses botânicos novos. E eles se destacaram de tal maneira que hoje são pesquisadores internacionais, melhores do que eu.
Quais foram os seus alunos mais destacados?
Muitos, como Lúcia d'Ávila Freire de Carvalho, especialista em solanáceas; Haroldo Cavalcante de Lima, especialista em leguminosas; Marli Pires Morim de Lima, também especialista em leguminosas; Maria do Carmo Mendes Marques, especialista em sistemática; Nilda Marquete Ferreira da Silva... Se eu fosse contar... Foi tanta gente que eu formei! Nem todos ficaram no Brasil. Muitos são professores universitários. Ana Maria Juliete, uma grande pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), fez, quando eu era professora em Brasília, um estágio comigo de seis meses. Até hoje dou aula nos cursos de pós-graduaçao. Agora mesmo estava com um curso programado para Pernambuco, mas tive uma gripe muito forte. Durante a gripe estudei, preparei o curso, mas depois um exame de sangue detectou uma anemia muito forte, e então não tive permissão do meu médico para viajar. Tenho também um curso programado na Universidade de Londrina.
A senhora chegou a trabalhar fixo em alguma outra instituição ou sempre no Jardim Botânico?
Trabalhei na Universidade de Brasília (UnB). Fui para lá em 1966 e fiquei três anos. Em princípio de 1969 voltei para o Jardim. O CNPq pediu que eu voltasse porque estavam sentindo a minha falta. Como eu estava muito aborrecida por causa das invasões à universidade e tinha participado de muitas coisas ali, preferi voltar.
Fui a primeira professora de botânica da UnB. Também ali eu era professora não só do Instituto de Botânica, mas também de alunos que faziam medicina. Consegui despertar amor pela botânica nesses alunos. Hoje, vários deles são médicos em Minas Gerais, mas sempre me telefonam. Depois do programa da Regina Casé [Brasil Legal, em que a professora Graziela foi entrevistada], eles me telefonaram, dizendo que nunca esqueceram tudo aquilo que ensinei. Foi ali que começaram a amar as plantas.
E assim tem sido a minha vida, sempre essa atividade de transmitir o que aprendo, porque não paro de estudar. Recebo muitas coisas novas, pesquisas novas de botânicos austríacos, alemães, franceses, leio os trabalhos deles e procuro transmitir para os meus alunos. Porque gosto disso, de trazer novidades para os alunos. Aprendo e transmito.
Qual foi a sua principal contribuição à sua área de especialidade, a sistemática?
O meu livro Sistemática de angiospermas do Brasil, adotado em todas as universidades do Brasil quando se faz botânica. E mesmo os pesquisadores estrangeiros que estudam plantas do Brasil usam esse trabalho. São três volumes, dos quais o primeiro foi publicado pela USP e os outros dois pela Universidade de Viçosa. Agora vai sair um sobre frutos e sementes com aplicação na sistemática, também pela Universidade de Viçosa. Publiquei também muitos trabalhos em revistas de várias entidades, como o Jardim Botânico, alguns em revistas estrangeiras, com participação de botânicos estrangeiros. Tenho muitos trabalhos publicados.
Mas a senhora não tem plantas em casa...
Justamente por amá-las muito não quero trazê-las para cá. Mas onde morei, em Pedra de Guaratiba, eu tinha um jardim lindíssimo. Quando me mudei, trouxe uma porção, mas não dá. Ficam muito fechadas, não têm sol suficiente, não se pode dosar a quantidade de água. Plantas não podem viver em um ambiente de dois quartos e sala. É muito sacrifício. Mas não podia mais continuar lá na Pedra de Guaratiba. Não havia segurança e principalmente por causa de minha saúde embora eu seja um pessoa que tenha saúde boa, mas precisava de certos recursos próximos.
A senhora tem predileção por alguma planta especialmente?
Gosto de todas, mas ultimamente tenho trabalhado muito com as mirtáceas família da goiaba, da pitanga do Rio de Janeiro, porque essa família é uma das mais ricas e menos conhecidas. Estudo as espécies silvestres. As pessoas que faziam levantamento fitossociológico reclamavam que não havia quem as identificasse, ninguém se interessava por elas, nem havia trabalhos sobre elas. O único estudo, além da Flora brasiliensis, de Martius, de 1857-59, era o de um botânico dinamarquês, Kiaerkou, de 1892-99. Não havia mais nada. Os herbários eram pobres nessa família. Ninguém as coletava. Durante muitos anos estudei as compostas, também uma família muito numerosa, e formei muitos especialistas nessa família. Então achei que já era tempo de procurar outra família para formar outros pesquisadores. Comecei a estudar as mirtáceas e foi uma coisa muito boa. Durante os trabalhos feitos na Mata Atlântica os pesquisadores traziam muito material e identifiquei 46 espécies de Macaé de Cima, 36 de Magé, 48 de Poço de Antas, 76 de Parati, e agora apresentei um trabalho com 217 espécies só do Rio de Janeiro. Acredito que haja só aqui no Estado cerca de 300 espécies novas para o Rio de Janeiro, de modo que esse trabalho está sendo importante porque há plantas que foram coletadas há mais de 100 anos e não figuravam nos nossos herbários. Foram levadas para os herbários europeus e nunca mais foi registrada a presença delas aqui, porque ninguém as estudava. Agora todas elas estão vindo para os herbários. E com isso verificamos que há um endemismo muito acentuado, que uma grande parte das mirtáceas só existe no Rio, outras só em São Paulo. É esse o trabalho que venho fazendo, além de dar cursos de pós-graduação.
A senhora sempre se preocupou em orientar seus alunos para o estudo de áreas carentes de pesquisa.
Justamente, foi esse o meu principal objetivo.
E quais seriam essas áreas hoje?
Quando foi implantado o Programa Mata Atlântica é que se viu que, de um modo geral, não havia estudos sobre a Mata Atlântica do Rio de Janeiro. As pessoas iam estudar material da Amazônia, de Pernambuco, da Bahia, mas não estudavam o material deste Estado. Esse programa foi criado há cerca de 10 anos no Jardim Botânico e em vários lugares (tem na Bahia, em São Paulo etc.) e foi realmente muito bom. Vários botânicos que formei estão fazendo esse estudo e eu trabalho com eles. Tem muitas áreas mal trabalhadas, aqui mesmo no Rio! Parece mentira, mas há pouco tempo, em 1995, descrevi duas espécies novas em torno do Jardim Botânico. Por aí pode-se ver como a falta de recursos para excursões dificultava. Agora não, com o novo diretor, o doutor Sérgio Bruni, o Jardim Botânico passou a ser Instituto de Botânica e as coisas melhoraram bastante. Os programas desenvolvidos no Jardim Botânico Mata Atlântica, Flora do Estado do Rio de Janeiro, Vegetação das Áreas do Entorno do Jardim Botânico, Parque Lage e Horto Florestal trouxeram realmente um benefício muito grande, porque as espécies raras estão sendo coletadas de modo sistemático, tudo marcado (época de floração, época de frutificação), bem planejado, de modo que o estudo da botânica cresceu.
O Jardim Botânico tem estado melhor em termos de manutenção e conservação, não?
Esse novo diretor está sendo muito bom, por estar conseguindo recursos e equipamentos para a pesquisa e informatizando os diferentes setores do Jardim.
Quais são as características que uma pessoa deve ter para trabalhar com botânica sistemática? Paciência?
Para qualquer área da botânica, o fator principal é amor, é gostar do que se faz. Tem muita gente que acha a sistemática chata. Não: é a coisa mais linda você abrir uma flor, ver a morfologia de uma flor, procurar o nome dela, saber como ela vive, cresce. Mas, enfim, é uma coisa de que nem todo mundo gosta. Quando pego uma planta para estudar é como se fosse um filho que eu visse crescer. O amor que sinto por aquilo é muito grande. Acho que em qualquer profissão, a primeira coisa é amor, é gostar do que faz, só isso dá realmente sucesso nos estudos. É se dedicar o dia inteiro. Estou agora doente, o médico proibiu, mas dou minha escapulida e vou trabalhar um pouco. Depois de aposentada eu estava trabalhando oito horas por dia. Daí você vai dizer "por certo estava ganhando", não, eu ganhava o dinheiro da aposentadoria. Tenho uma bolsa do conselho, mas não é por causa do dinheiro. É porque realmente gosto daquilo que faço. Acho que essa é a principal característica para qualquer trabalho que você queira fazer.
Seus filhos... Quantos são? Eles também seguiram a botânica?
Tive dois, uma rapaz e uma moça. Meu filho era piloto, morreu em 1960, quando eu estava no segundo ano da universidade. Todo mundo pensou que eu fosse abandonar, porque fiquei arrasada. Mas não só não deixei de trabalhar, como cinco dias depois estava no Jardim Botânico e na Universidade, porque procurei no trabalho toda a força que precisava ter. Até hoje sofro muita saudade, mas tenho uma parte espiritual bem formada. Minha filha Mirtila não quis seguir botânica: ela é pintora. Ela pinta muito as paisagens de Guaratiba e também fez curso de direito.
Ela chega à natureza de outra maneira?
É como dizem: eu faço botânica e ela pinta botânica.
Como a senhora vê essa posição que a comunidade científica tem hoje, de dar muito valor a um doutoramento, a um pós-doutoramento?
Realmente, esses estudos trazem mais conhecimentos. Agora, acho que dão uma importância demasiada. Tenho doutorado, fiz na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mas já tinha publicado uma porção de trabalhos. Hoje se dá muito valor a essas coisas... e o título nem sempre corresponde ao saber. Mas é sempre bom, esses cursos de pós-graduação trouxeram muita coisa boa para a ciência.
É verdade que a concorrência é muito grande, muita gente se formando, e sem abrirem concursos nem nada. Lá no Jardim, por exemplo, temos uma porção de estagiários, excelentes. E com esses cortes, a gente teme pela situação deles, pensando se realmente valeu a pena dedicarem todos esses anos a um aprendizado e depois não terem compensação. Porque todo mundo precisa ter uma posição, uma situação financeira estável, para poder trabalhar.
Queríamos que a senhora contasse a história daquela planta que tem seu nome.
Qual delas? Tem várias. Uma delas foi o Haroldo de Lima que descobriu no Espírito Santo, e o gênero tem meu nome Grazielodendrum riodocensis Lima. É uma leguminosa, uma árvore linda, grande. Agora o Haroldo encontrou uma nova espécie do gênero aqui no Rio de Janeiro, na Mata Atlântica.
É uma bela homenagem...
Foi uma homenagem muito honrosa, não há dúvida.
A senhora esteve no Jardim Botânico de Londres, o Kew Garden?
Estive um mês trabalhando lá. É uma beleza, mas o nosso Jardim... Tem gente que diz "Ué, não tem flores". É que o nosso Jardim Botânico é tropical, tem árvores. Não tem aqueles canteiros com flores, porque é um jardim tropical. Uma vez uma pessoa reclamou da falta de flores lá, e eu disse que se ela olhasse para cima ia ver que muitas árvores estavam floridas.
Eles têm levado muitos bolsistas brasileiros para estudar lá, não? Têm um intercâmbio grande com o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, não?
Sim. O Jardim Botânico tem intercâmbio com várias entidades estrangeiras. Ultimamente é mais com Londres. Os ingleses têm muito contato com a USP, conosco, com a Bahia. Eles estão, por exemplo, fazendo aquele trabalho da chapada Diamantina, do qual eu também participei. Fiz a apresentação das compostas de uma parte da chapada Diamantina. Temos também um intercâmbio ativo com os EUA, com o New York Botanical Garden.
Esse interesse também é comercial ou é só científico?
É científico. E porque eles também amam as plantas, querem estudá-las, descobrir novas espécies, levar material para o herbário. Eles trabalham muito bem.
O que a senhora tem a dizer sobre as ameaças à natureza no nosso país?
É uma barbaridade. Mesmo a chapada Diamantina, em Minas Gerais. Aquilo é uma verdadeira beleza. Era um santuário, como o Pantanal mato-grossense. Eu conheço o Pantanal, a chapada Diamantina, a chapada dos Veadeiros. Tudo está sendo depredado pelo homem. O que há é impunidade. Conheci as matas do sul da Bahia e norte do Espírito Santo. Era uma coisa belíssima, aqueles jacarandás. Quando voltei lá, em uma excursão com o Burle Marx e a Margaret Mee, nós choramos ao ver como tinha sido arrasado. O homem que devastou deu entrevista em um programa importante da televisão, dizendo que tinha feito isso, que ganhou muito dinheiro e não estava arrependido, porque tinha aberto estradas e isso era bom. Quer dizer, não aconteceu nada com ele. Foi um crime o que ele fez. E há muitos outros. É proibido soltar balões. Balão traz incêndios nas matas, ocasiona uma porção de coisas. Em Pedra de Guaratiba, eu vivia brigando porque os baloeiros agem abertamente. Brigava, explicava, falava... mas o que podia fazer, uma andorinha só não faz verão. O que há é impunidade. Se essas pessoas que fazem esses estragos na natureza fossem punidas... Por exemplo, o Ibama tem boa vontade, mas tem pouquíssimos guardas. O Brasil é imenso. Com um pouco de guardas na Amazônia, outro no Nordeste, não dá. Enquanto eles estão cuidando daqui, alguém está depredando lá adiante. É preciso ter mais gente vigiando.
E mais consciência das pessoas...
Mais consciência. Acho que a única coisa que pode salvar ainda o pouquinho do que resta é educação. Mas você educa uma criança, o pai dela diz que mato tem de tirar, e ela fica sem saber o que fazer. O homem é o ser mais depredador que existe. É uma pena. Ele não se compenetrou de que é apenas um elemento do ambiente, ele não é o dono. "Tanta madeira boa... plac!" e acaba. Porque para ele o que importa é ter dinheiro no bolso, não tem amor à natureza. É incapaz de olhar uma árvore florida e sentir respeito. O que falta é justamente isso, o sentido ecológico. Todo mundo fala em ecologia. Meu Deus! Ecologia é uma ciência dificílima. Têm pessoas que podem dizer que são conservacionistas. Eu não sou ecologista, sou conservacionista. Para ser ecologista, é preciso aprender um monte de coisas que eu não sei. Como a botânica, a ecologia é uma ciência muito bonita, mas requer conhecimentos que não tenho. O nome foi muito deturpado.
Lá em Guaratiba tinha a Casa da Ecologia na qual ninguém sabia sobre ecologia e me chamaram para dar uma palestra. Daí, eu comecei logo: eu não sou ecologista, sou conservacionista. Para ser ecologista precisa saber várias coisas, que não estão no meu currículo. Teria muita honra em ser, mas não sou.
A senhora mencionou Margaret Mee, Burle Marx... Eram pessoas com as quais a senhora convivia? O sítio do Burle Marx: devia ser perto da casa em Guaratiba...
Era perto sim, mas minha amizade com o Roberto é uma amizade de mais de 40 anos, porque eu identificava plantas no sítio dele. Então eu ia lá identificar, conversava, trocava idéias com ele. Tinha um botânico, Dimitri Sucre, um panamenho que veio fazer um estágio de dois meses e ficou 20 anos trabalhando comigo lá no Jardim Botânico. Era um grande botânico, mas hoje é mais paisagista, porque precisava viver. Ele só tinha uma bolsa no Jardim. Nós íamos para o sítio, fazíamos excursões Dimitri, eu, Margaret Mee, Roberto e mais uma equipe do Roberto. Viajamos por muitos lugares no Brasil. As excursões que fiz foram graças ao Burle Marx, que pagava todas as despesas da viagem para mim e Dimitri, então viajamos por muitos lugares do Brasil. Realmente ele amava a natureza. Margaret Mee era muito amiga do Burle Marx. Era uma pessoa maravilhosa. Eu gostava muito dela. Era uma pessoa fora do comum.
A senhora chegou a ir à Amazônia com a Margaret Mee?
Não. Fui só para dar um curso. Fiquei um mês em Manaus e fui muitas vezes ao Pará, mas também para dar cursos e fiz pequenas excursões nos arredores de Belém e também na Serra dos Carajás.
Margaret Mee não era botânica...
Não, era artista, mas amava a botânica. Ela não estudava, só fazia pintar. Mas aprendia o nome da planta, como o Roberto, que era arquiteto. Ele decorava o nome das plantas e sabia uma infinidade de nomes. Um botânico identificava e ele decorava. Ele partiu da arquitetura, porque achava que se devia introduzir plantas brasileiras na arquitetura. Foi aí que se uniu a botânicos. Realmente ele tinha um grande amor à natureza. Não depredava como muitas pessoas ele trazia mudas do mato e multiplicava no sítio dele, tirava sementes e usava essas plantas no jardim. Hoje o sítio é uma fundação.
Quais foram as outras pessoas extraordinárias que a senhora conheceu? Pessoas que a tenham inspirado, transmitido coisas que a senhora acha que devem ser lembradas?
São tantas pessoas! Uma delas é Dimitri Sucre, esse paisagista panamenho. Ele realmente é uma pessoa que ama a natureza. Trabalhou comigo 20 anos no Jardim, sem remuneração, só por amor. O Dr. Campos Porto, que foi diretor do Jardim, foi outro grande botânico e também um grande diretor. Tive muito contato com o Gottsberg, que estudou muito a biologia floral do cerrado. Mantenho amizade com ele, que está na Áustria, mas sempre me manda material. Quando vem ao Brasil, coleta plantas e as passa para mim, para identificar. Também não posso esquecer o nome de dois grandes botânicos brasileiros, amigos meus, que muito contribuíram com seus trabalhos de pesquisa: João Murça Pires, do Museu Emílio Goeldi, e Dárdano de Andrade-Lima, da Empresa Pernambucana de Pesquisa Agropecuária.
Quer dizer que os botânicos formam uma espécie de clube, não?
Justamente. Gottsberg estava trabalhando na Universidade de Ulm, sua última carta foi de lá. Mandou-me uma série de plantas coletadas do Pantanal do Mato Grosso para eu identificar. Ghillean Tolmie Prance, atual diretor do Jardim Botânico de Nova York, viveu muitos anos no Brasil, e é outro membro assíduo desse "clube". É um profundo conhecedor da Amazônia e um ser humano maravilhoso. São tantos que... Mas, sem dúvida, foi meu marido quem mais me estimulou. Tudo que sou, devo a ele.
O que a senhora achou de participar do desfile da escola de samba Unidos da Tijuca, com o enredo "Viagem pitoresca pelos cinco continentes num jardim"?
É uma homenagem que a Unidos da Tijuca prestou ao Jardim Botânico. E tudo que se refere a ele é muito importante para mim. Fui convidada para ser destaque e aceitei. Isso não quer dizer que eu seja sambista, mas foi uma homenagem ao Jardim e me senti muito honrada. Até procurei tratar melhor da minha saúde para agüentar ficar encarapitada no alto do carro alegórico...