Histórico - Dicionário do Patrimônio
O projeto Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural foi proposto pela Coordenação-Geral de Pesquisa e Documentação do Departamento de Articulação e Fomento (Copedoc/DAF), com o objetivo de dotar o campo da preservação de bens culturais de uma “obra de referência” que reflita as dimensões prática e teórica do trabalho de preservação empreendido pela instituição.
Cientes de que o tema “patrimônio e preservação” extrapola o âmbito do IPHAN, bem como possui antecedentes à criação do instituto, optamos por delimitar a abrangência do Dicionário ao universo institucional para o estabelecimento e a socialização dos conceitos com os quais o IPHAN opera ao longo de mais de 70 anos, estimulando a discussão e problematizando o uso dessa terminologia.
Os campos do conhecimento, quando já firmados, refletem, por meio de suas obras de referência, entre elas os dicionários, sua estabilização terminológica e conceitual, confirmam sua permanência, propósitos, fundamentos e estabelecem também os limites teóricos com as outras ciências. O campo do patrimônio cultural vem se estabelecendo e se consolidando como uma área específica do conhecimento e já produziu uma série de obras de caráter técnico, acadêmico, além de toda a documentação institucional que registra a trajetória da preservação no país, refletindo a riqueza desse saber construído a partir da inauguração das práticas de preservação no Brasil em 1937.
A constituição de uma terminologia própria marca, em toda ciência, o advento ou o desenvolvimento de uma conceitualização nova, assinalando, assim, um momento decisivo de sua história. [...] Uma ciência só começa a existir ou consegue se impor na medida em que faz existir e em que impõe seus conceitos, através de sua denominação. Ela não tem outro meio de estabelecer sua legitimidade senão por especificar seu objeto denominando-o, podendo este constituir uma ordem de fenômenos, um domínio novo ou um modo novo de relação entre certos dados. [...] Denominar, isto é, criar um conceito, é, ao mesmo tempo, a primeira e a última operação de uma ciência (BENVENISTE, 1989, p. 252).
Nesta proposta para a elaboração de uma obra de referência, buscou-se criar um espaço em que seja possível apresentar as dimensões da prática e do saber que caracterizam o campo da preservação e do patrimônio cultural, por meio da problematização da terminologia empregada nesse universo, como um meio de sublinhar a importância da experiência e do conhecimento dos técnicos que constituem a instituição, bem como responder às necessidades sociais acerca desse conhecimento técnico produzido.
Ana Lúcia Werneck, consultora do projeto entre 2006 e 2007, assim esclarecia a natureza de uma obra de referência:
A produção de um dicionário remete à difusão de um determinado conhecimento, [...] contribuindo para o seu alinhamento junto a outros domínios no universo da linguagem da história cultural que já desfrutam de reconhecida autonomia e tradição. [...] Considerando que a terminologia em estudo é derivada da linguagem comum, passível de fluidez, flutuação, constante movimento de absorção, transposição e variações intencionais ou não, devemos estar atentos ao fenômeno bastante relevante e revelador do caráter controverso e suscetível de interpretações diversas, fato bastante comum em elaborações doutrinárias como o Dicionário em questão, o que contraria qualquer expectativa de suposta univocidade e neutralidade (WERNECK, 2006).
A primeira etapa do projeto teve início no final de 2004 e durante 2005, com o levantamento preliminar de obras de referência realizado principalmente na Biblioteca Noronha Santos e na Biblioteca Nacional, constituindo uma lista inicial de 300 obras, das quais 150 foram fichadas. Também foi feita uma pesquisa nos acervos da biblioteca da Maison de France, da Livraria Leonardo da Vinci e da Livraria Saraiva a fim de ter conhecimento das obras mais recentemente publicadas e ainda não adquiridas por essas duas bibliotecas brasileiras. Foram também pesquisados alguns sites estrangeiros, como o da Biblioteca Nacional de Espanha e o da Biblioteca Nacional da França.
O objetivo desse levantamento foi o de fornecer dados que pudessem auxiliar o esboço do projeto, com a definição de eixos temáticos, propostas metodológicas para estruturação dos verbetes e elenco de possíveis verbetes como ponto de partida para a delimitação da abrangência do Dicionário. A seleção das obras para fichamento seguiu dois critérios básicos: por um lado, levantar obras de referência exemplares de distintas áreas do conhecimento para conhecê-las do ponto de vista das metodologias adotadas – sua finalidade, estrutura geral, abrangência do tema, estrutura dos verbetes, emprego de ilustrações, abonações e remissivas; por outro, pesquisar obras que abrangessem a temática de patrimônio e também fossem próximas ao formato de dicionário ou de guias, para avaliar como o tema é tratado e para ajudar na indicação de verbetes e de bibliografias.
Com base nesse trabalho, foi possível perceber que as obras de referência contam com uma variedade grande quanto à sua organização interna, formato e objetivos, que demonstram a liberdade e subjetividade de suas propostas, não havendo um modo único de se fazer um dicionário. Podem conter de 200 a mais de 4.000 verbetes; a estrutura dos verbetes, por sua vez, pode variar do formato de artigo ao de textos breves, com ou sem abonações, remissivas, bibliografia, ilustrações e assim por diante. Os títulos dessas obras são em geral adjetivados: Pequeno Dicionário..., Grande Dicionário..., Dicionário Básico, Dicionário Crítico, como forma de transmitir, já a partir do título, a abrangência ou possíveis recortes preestabelecidos.
A pesquisa sobre o universo das obras de referência nos permitiu confirmar a pertinência da proposta de um dicionário para o nosso campo e, talvez mais do que isso, a necessidade indubitável de realizá-lo, tanto pela riqueza de conteúdos que os trabalhos de preservação e o patrimônio cultural envolvem (e que são desconhecidos da maioria das pessoas, mesmo as mais instruídas), como pela urgência em tornar claras as acepções, mesmo que polêmicas, com variações regionais ou de toda ordem, dos termos que nós, da esfera técnica especializada, utilizamos muitas vezes de forma irregular ou assistemática.
O sentido de uma palavra pode ser determinado pelo seu uso. Um conceito, ao contrário, para poder ser um conceito, deve manter-se polissêmico. Embora o conceito também esteja associado à palavra, ele é mais do que uma palavra: uma palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela (KOSELLECK, 2006, p. 109).
Seguros de que seria possível iniciar a pesquisa sobre a terminologia utilizada pela instituição, mesmo sem pessoal suficiente, mas contando com a proximidade dos acervos do Arquivo Central do IPHAN/RJ e da Biblioteca Noronha Santos, em 2006 passamos ao levantamento da nominata – relação de termos que futuramente se transformariam em verbetes. Para isso, procedeu-se à seleção do corpus documental onde estariam registrados o vocabulário e a linguagem dos atores sociais que desenvolveram e construíram a experiência brasileira na área de patrimônio cultural e da preservação. Assim, realizou-se a pesquisa em fontes oficiais de registro dessa suposta língua falada no IPHAN, tais como a série do Boletim/IPHAN; todos os números da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; fontes secundárias sobre os processos de tombamento e legislação específica.
Essa pesquisa não foi exaustiva, nem poderia, mas levantou um vasto conjunto de termos para dar início aos trabalhos.
Com um universo de cerca de 900 termos, procedeu-se à análise do conjunto a partir de áreas temáticas e com a hierarquização dos termos, definindo aqueles mais importantes, tanto do ponto de vista do seu conteúdo, quanto em relação a possíveis demandas dos consulentes.
A partir daí, foram várias as etapas de levantamento, interrompidas de tempos em tempos por não conseguirmos manter os contratos com pesquisadores. Por outro lado, sempre buscamos desenvolver uma ferramenta em ambiente web, disponível na internet. Muito se trabalhou para que esse instrumento pudesse ser desenvolvido, mas infelizmente, devido a diversos fatores, não foi possível chegarmos à homologação do sistema, bem como a sua fase de produção.
Após esse esforço, mantivemos em 2010 e 2011 as atividades do Dicionário, com a pesquisa preliminar de conteúdo dos verbetes, que orientou o recorte da nominata, ora proposta.
Estabeleceu-se, então, uma nominata que reúne cerca de 250 entradas de verbetes, mantendo-se grande parte dos demais termos na condição de “termos relacionados”, ou seja, como assunto daqueles que foram selecionados como verbetes.
As entradas de verbetes (ou apenas “verbetes”) foram organizadas a partir de quatro categorias de vocabulário que expressam o recorte temático proposto sobre o universo inicial de 900 termos e que, evidentemente, podem e devem ser discutidas para a complementação e crítica da nominata. Lembramos que dicionários, por natureza, não são obras definitivas. Assim como a linguagem, estão permanentemente sujeitos a alterações, revisões, ampliações e crítica. As categorias de vocabulário estipuladas são:
Tipos de bens – são os termos usados nas denominações de tombamento e de registro, de forma a oferecer ao leitor/consulente um panorama do universo de bens protegidos. Essa categoria de vocabulário respeita a trajetória institucional que não partiu de uma classificação prévia dos bens para promover a sua proteção, mas que de todo modo promoveu a seleção de bens, gerando por fim uma nomenclatura para os bens protegidos.
Conceitos – trata do universo de conceitos com os quais o IPHAN opera para a formulação técnica/teórica sobre o patrimônio cultural e sobre sua gestão, sejam eles formulados no próprio campo da preservação ou por ele apropriados.
Campos do conhecimento afins (ao patrimônio cultural) – são as áreas do saber que se inter-relacionam e informam o campo da preservação, fornecendo instrumental teórico-conceitual, como também criando novas formas de atuação profissional dessas áreas especializadas, diante das especificidades do campo.
Termos de cunho institucional – trata-se do universo institucional propriamente dito, ou seja, todos aqueles termos que se referem à missão institucional, a instrumentos técnicos mais recorrentes, além daqueles que expressam a interface com outras instituições, notadamente aquelas com as quais o IPHAN atuou ou atua mais proximamente.
Com essa nominata inicial, buscou-se contemplar, por um lado, as possíveis demandas dos consulentes do Dicionário, incluindo estudantes e professores do ensino fundamental, médio e superior, profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo, história, história da arte, arqueologia, turismo, ciências sociais, assim como os técnicos da instituição. E, por outro, a história da “linguagem do IPHAN”, considerando-se que a abrangência e interdisciplinaridade do tema “patrimônio e preservação” exigirá um cuidado maior para que o objetivo da obra não se perca na repetição ou reprodução de conceitos, termos e definições já abordados em publicações especializadas, tais como dicionários de arte, arquitetura, história, mas que ganhem, neste Dicionário, a especificidade que os torna termos empregados no campo da preservação.
A organização da nominata, ou lista de verbetes e termos relacionados, sofreu alterações no decorrer do trabalho em função da maior clareza obtida progressivamente a respeito das categorias de vocabulário propostas. Exatamente por essa razão, constatamos a mobilidade que possui a seleção e a hierarquização de termos, ou seja, quanto mais aprofundamos o trabalho de conteúdo dos termos associado à reflexão sobre as correlações de sentido entre eles, mais ricas se tornam as alternativas de composição dessa nomenclatura.
Hoje, o projeto Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural está sendo reformulado e será acrescido de uma parte enciclopédica, baseada no modelo de publicação do Dictionnaire encyclopédique de muséologie (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2011) que, além de ser uma obra muito recente, é também resultado de um enorme esforço de organização da nomenclatura relativa ao campo da museologia, com características muito próximas a nós, tanto temáticas quanto de natureza metodológica.
A parte enciclopédica do Dicionário será inicialmente composta de doze termos considerados matrizes do campo da preservação e do patrimônio cultural, selecionados com base na nominata (nomenclatura) já estabelecida pelo projeto. A nova proposta mantém a parte dicionarizada, com verbetes selecionados a partir de uma pesquisa preliminar de conteúdo, além da incorporação de verbetes do projeto Memória Oral – também desenvolvido pela Copedoc.
O Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural propõe um espaço de discussão sobre as relações entre a terminologia, a prática e o saber que constituem o campo da preservação, tendo por base a experiência e o conhecimento dos técnicos que constroem a trajetória institucional, os quais serão autores e também usuários críticos dessa obra.
Histórico da Equipe do Dicionário
Coordenadora do projeto:
2004/2012 – Maria Beatriz Rezende (técnica da Copedoc)
Pesquisadores contratados:
2004 – Carolina Torres Alves de Almeida Ramos
2004/2005 – Claudia Miriam Quelhas Paixão
2006 – Fabrício Pereira
2006/2007 – Aline Bezerra de Menezes
2006/2007 – Ana Lúcia Louzada Werneck (consultora contratada)
Técnicos da Copedoc
2006/2008 – Claudia Feierabend Baeta Leal
2007 – Tatiana Paes (bolsista PEP)
2006/2009 – Maria de Fátima Pinheiro
2010/2011 – Celso Queiroz (estagiário)
Colaboradores:
2006 – Carlos Fernando Moura Delphin
2006 – Luiz Fernando Pereira das Neves Franco
2006 – Marcus Tadeu Daniel Ribeiro
Referências bibliográficas
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989.
DESVALLÉES André; MAIRESSE, François (Dir.). Dictionnaire encyclopédique de muséologie. Paris: Armand Colin, 2011.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006.
WERNECK, Ana Lúcia. Relatório Final DBPP. In: IPHAN. Projeto Dicionário Básico de Patrimônio e Preservação. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006.
Como citar: RESENDE, Maria Beatriz. Histórico do projeto. In: RESENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia. Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2014.