Notícias
A gamificação de aplicativos de negociação e seus efeitos negativos no comportamentos do usuário
Com a exponencial digitalização dos serviços financeiros, alertas têm sido emitidos por autoridades e pesquisadores sobre a utilização de elementos de design em aplicativos que podem influenciar negativamente o comportamento dos consumidores. Uma pesquisa publicada recentemente pela Financial Conduct Authority (FCA)¹, órgão regulador do mercado financeiro do Reino Unido, chama atenção para a utilização destes recursos digitais em aplicativos de negociação, o que pode, por vezes, manipular e contribuir para comportamentos problemáticos por parte dos investidores, levando-os a agir contra seus próprios interesses e a assumir mais riscos. Além disso, em 2021, a Securities and Exchange Commission (SEC), dos EUA, já tinha manifestado preocupação com relação aos aplicativos gamificados que utilizam gráficos visuais para recompensar comportamentos de negociação e que podem ser prejudiciais para os investidores².
A gamificação trata do uso de elementos de design de jogos para tornar o produto financeiro e as atividades mais estimulantes e envolventes. Apesar de haver estudos que demonstram como a gamificação pode ajudar a melhorar a educação e vida financeira³, bem como o engajamento do usuário com plataformas, estudos recentes têm observado a ocorrência de aspectos negativos e nocivos para os usuários, além do potencial afastamento dos investidores dos fundamentos que alicerçam seus investimentos. No artigo Gaming trading: how trading apps could be engaging consumers for the worse4, os pesquisadores Hayes, O’Neill, Spohn e Cherryl Ng identificaram algumas técnicas de gamificação nos aplicativos de negociação que causam preocupações, dentre elas estão: a utilização de reforço positivo imediatamente após uma negociação; uso de pontos, insígnias e recompensas por assumir determinados comportamentos; a classificação das pessoas com base nas recompensas; notificações de push frequentes com as últimas notícias do mercado sobre movimento de ações, além de listas com preços em tempo real chamativas. A principal preocupação dos pesquisadores reside no potencial dos reforços positivos em encorajar as pessoas a negociar com mais frequência ou fazer escolhas de investimentos que comumente não fariam.
Outro ponto identificado nesse artigo está a relação entre o risco de comportamento problemático com indicadores de vulnerabilidade, como a baixa resiliência financeira e a baixa educação financeira. Para os autores, trata-se de um indicativo importante a ser considerado, uma vez que se constatou que clientes financeiramente vulneráveis têm uma maior tendência a comportamentos problemáticos como, por exemplo, aqueles semelhantes aos de jogos de azar.
Compartilhando da mesma perspectiva e preocupação, um experimento realizado com 605 participantes e descrito no artigo Does gamified trading stimulate risk taking?5, evidenciou que a gamificação em aplicativos de negociação autogerenciada incentiva comportamentos de riscos, principalmente, em negociações de ativos de alta volatilidade e com efeitos mais forte em traders inexperientes. Isto é, esses agentes são mais suscetíveis a vieses comportamentais induzidos pela gamificação. Além disso, também ficou evidenciado que o impacto comportamental da gamificação é moderado pelo grau de educação financeira e experiência do agente. Os autores, então, chamam a atenção para a importância da educação financeira na redução do impacto dos vieses comportamentais nas plataformas de negociação modernas.
Em outra análise realizada no artigo Design Patterns of Investing Apps and Their Effects on Investing Behaviors6, no que tange à estrutura dos aplicativos de negociação, os autores concluem que os mais populares, geralmente, não seguem padrões de design que incentivam comportamentos de negociação saudáveis. Na perspectiva dos autores, Chaudhry e Kulkarni, por meio de seu design, uma plataforma de negociação pode determinar quais ações e comportamentos estão facilmente disponíveis para os usuários, podendo influenciar e incentivar, assim, as suas decisões, ou até mesmo desencorajar determinadas ações. Como exemplo, os autores explicam que certas decisões de design podem encorajar os investidores a agir de acordo com seus instintos e, possivelmente, ser menos racionais, enquanto outras decisões alternativas podem encorajar uma deliberação mais sistemática.
Como sugestão de solução para esse tipo de comportamento, os autores sugerem a elaboração de diretrizes que possam ajudar a incentivar comportamentos de investimento mais bem-sucedidos entre os usuários das plataformas de negociação e similares. Acrescentam, ainda, que o estudo
desenvolvido sugere que investir é uma atividade digna de atenção de designers e pesquisadores de design.
A gamificação, deste modo, apesar de promissora, ainda carece de mais discussões e avaliações antes de seu uso em larga escala. Observa-se que é necessário ter um olhar crítico aos objetivos por trás de sua utilização. Os alertas dos órgãos reguladores levam, assim, à reflexão e preocupação na simplificação e redução do mercado de capitais em um “jogo de apostas”, o que pode gerar o potencial distanciamento entre os investidores e a essência e princípios do mercado. E, com esse distanciamento, não somente o prejuízo se dá para os investidores, como também para as emissoras e para sociedade, uma vez que o modo de funcionamento do mercado tem como uma de suas engrenagens a alocação de recursos no desenvolvimento de projetos e ideias auspiciosas.
Então, leitor, você já teve experiências com aplicativos gamificados de negociação? Qual a sua opinião sobre o assunto? Compartilhe conosco sua percepção.
Referências
1. Financial Conduct Authority. FCA concerned about problem behaviours linked to trading app design. 2022. Disponível em: https://www.fca.org.uk/news/press-releases/fca-concerned-about-problem-behaviours-linked-trading-app-design.
2. Wall Street Journal. Individual-Investor Boom Reshapes U.S. Stock Market. 2021. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/individual-investor-boom-reshapes-u-s-stock-market-11598866200
3. Maynard, N. & McGlazer, M. The gamification effect: using fun to build financial security, Federal Reserve Bank of Boston: Communities and Banking Spring, 6–8. 2017.
4. Hayes, L. O’Neill, S. Spohn, M. & Cherryl Ng. Gaming trading: how trading apps could be engaging consumers for the worse. 2022.Disponível em: https://www.fca.org.uk/publications/research/gaming-trading-how-trading-apps-could-be-engaging-consumers-worse
5. Chapkovski, P., Khapko, M. & Zoican, M. Does gamified trading stimulate risk taking? Swedish House of Finance Research Paper No. 21-25. 2021. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3971868 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3971868.
6. Chaudhry, S. & Kulkarni, C. Design Patterns of Investing Apps and Their Effects on Investing Behaviors. DIS '21: Designing Interactive Systems Conference 2021. Pages 777–788. https://doi.org/10.1145/3461778.3462008.