Oceanografia
Oceanografia e Interação Oceano-Atmosfera
Com o desenvolvimento das redes de pesquisa a partir de 2002, a oceanografia e a meteorologia brasileiras tiveram um grande avanço, especialmente focando as mudanças globais e seus impactos no Brasil. Para atender esse novo objetivo, desenvolveu-se um grupo de pesquisas oceanográfica chamado Grupo de Oceanografia de Altas Latitudes (GOAL). Esse grupo, com características multidisciplinar e multi-institucional, é liderado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), situada na cidade do Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Atualmente o GOAL é também composto por pesquisadores do INPE, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e de outras instituições nacionais e internacionais. O GOAL tem trabalhado com a coleta sistemática de dados físicos, químicos e biológicos, através de diferentes meios e métodos valendo-se dos navios do PROANTAR para realizar suas pesquisas entre o Oceano Atlântico Sul e o Oceano Austral. Maiores informações podem ser obtidas no site do GOAL.
As atividades do INPE no GOAL atualmente são financiadas pelo projeto INCT Criosfera para o programa INTERCONF (Interação Oceano-Atmosfera na Região da Confluência Brasil-Malvinas). Os trabalhos de campo tem sido realizados durante os cruzeiros oceanográficos do Navio de Apoio Oceanográfico (NApOc.) Ary Rongel, da Marinha do Brasil, em sua trajetória sul para o continente Antártico. Ao longo dessa trajetória, o navio passa pela região de encontro entre as águas que são trazidas do norte pela Corrente do Brasil (CB) e do sul pela Corrente das Malvinas (CM), conhecida como Confluência Brasil-Malvinas. Essa região, devido aos fortes contrastes termais entre as águas frias em quentes que ocorrem aí, é entendida como uma das regiões chave para o entendimento do clima e tempo da América do Sul, especialmente das regiões sul e sudeste do Brasil.
Figura 1. Navio de Apoio Oceanográfico Ary Rongel.
Figura 2. Representação esquemática da circulação superficial do Giro Subtropical do Atlântico Sul.
Fonte: Adaptada de Peterson e Stramma (1991).
Os retângulos delimitam as áreas da Confluência Brasil-Malvinas (CBM) e da parte central do giro subtropical do Oceano Atlântico Sul.
Como objetivos integrados ao INCT da Criosfera, o entendimento dos processos de conexão global entre o oceano, a atmosfera e o gelo continental e marinho (criosfera) na Antártica e seus arredores com o continente sul-americano deve derivar, necessariamente, do entendimento dos processos em grande e média escalas, que ocorrem na porção oeste do Oceano Atlântico Sul e na atmosfera imediatamente acima. O avanço da ciência e dos estudos climáticos tem levado a comunidade científica nacional e internacional a estudar e tentar compreender melhor o papel do Oceano Atlântico Sul no clima da América do Sul. Até o presente, essa região não foi extensivamente estudada. Os efeitos no clima e tempo da América do Sul ainda não são completamente entendidos, especialmente nas regiões costeiras do sul e sudeste do Brasil. Esta região é caracterizada pelo surgimento e passagem de tempestades (frentes frias, tormentas e ciclones) que acabam por atingir a porção sul e sudeste da América do Sul. Um melhor entendimento dos processos de interação oceano-atmosfera ocorrendo nesta região poderá refletir numa melhora das previsões de tempo e clima para o Brasil e demais países sul-americanos.
O estudo climático terrestre envolve o entendimento de complexos processos que ocorrem no sistema acoplado oceano-atmosfera. Esse acoplamento ocorre através das interações nas interfaces oceânica e atmosférica, onde se processam importantes trocas energéticas. O oceano supre a atmosfera com vapor d'água e energia que, consequentemente, influenciam o ciclo hidrológico e a própria dinâmica da atmosfera. A atmosfera, por sua vez, fornece água para os oceanos em forma de precipitação e energia, que afetam as correntes oceânicas geradas pelos ventos e aquelas geradas pela diferença de densidade entre as massas de água. A temperatura da superfície do mar (TSM) exerce um papel importantíssimo nesse complexo mecanismo de interações, pois através dela a energia em forma de fluxo de calor é trocada entre a atmosfera e o oceano. Pequenas variações de TSM podem acarretar em grandes variações nos fluxos da interface ar-mar. Não obstante, a TSM também pode provocar impactos significativos no escoamento atmosférico e, por conseguinte, nos sistemas meteorológicos.
Observações inéditas do sistema acoplado oceano-atmosfera na região da CBM têm sido realizadas pelo pelos pesquisadores do INPE no GOAL/INTERCONF no PROANTAR desde 2004, como mostrado na Figura 3. Através de medições simultâneas do oceano e da atmosfera com instrumentos específicos feitas a partir do NApOc. Ary Rongel têm-se demonstrado que o sistema atmosférico é diretamente modulado pelos campos de TSM do oceano abaixo. Isso é especialmente válido quando os sistemas não são perturbados pela passagem de sistemas atmosféricos transeuntes de grande escala, como frentes frias ou ciclones.
Figura 3. Exemplos de mapas de magnitude do vento sobrepostas a TSM em datas em que o GOAL/INTERCONF realizou experimentos nas diversas Operações Antárticas (OPs) até o ano de 2007: a) OP 23, b) OP 24, c) OP 25, d) OP 26.
Os círculos pretos marcam a posição de lançamento de radiossondas para a perfilagem in situ de parâmetros meteorológicos.
Fonte: Pezzi et al. (2009).
As diferenças de TSM nos lados quente e frio da CBM induzem respostas diferentes sobre a atmosfera acima, como pode ser visto na Figura 4, que mostra um caso clássico de interação oceano-atmosfera onde a camada limite atmosférica está sendo localmente modulada pela temperatura da superfície do mar. Quando as águas são mais quentes, uma maior turbulência é gerada na região da atmosfera imediatamente acima do oceano. A atmosfera é dessa forma energizada e ventos mais intensos são geralmente produzidos. Um maior conteúdo de vapor d'água é então disponibilizado para a atmosfera. Sobre as águas frias, a atmosfera se comporta ao contrário, sendo mais seca e gerando ventos menos intensos.
Figura 4. Exemplo clássico de interação oceano-atmosfera na região da Confluência Brasil-Malvinas onde o calor contido na camada limite oceânica é disponibilizado via TSM e acaba modulando a camada limite atmosférica.
Estes dados foram obtidos pelo GOAL/INTERCONF durante a Operação Antártica OP 23. A parte inferior da figura mostra os perfis de temperatura do oceano com a localização das sondagens e a parte superior a temperatura da atmosfera com os valores da magnitude do vento sobrepostos.
Fonte: Pezzi et al. (2005).
Parte dos estudos recentes inclui o entendimento do papel de estruturas oceânicas de mesoescala (como vórtices e meandros da região da CBM e da Frente Subtropical do Oceano Atlântico Sul) que modulam os fluxos de calor entre a atmosfera e o oceano na escala sinótica e como essa modulação passa para a escala climática. Dados complementares, como pro exemplo do projeto OAFlux (Objectively Analyzed Air-Sea Fluxes for the Global Oceans - http://oaflux.whoi.edu) tem sido usado para esta finalidade diagnóstica (Figura 5).
Figura 5. Climatologia anual dos fluxos de calor latente (LH – painel superior) e sensível (SH – painel inferior) obtida para o Oceano Atlântico Sul a partir de dados do Projeto OAFlux.
Fonte: Arsego (2012).
Alguns trabalhos científicos ligam o aumento progressivo da TSM nas águas do Golfo do México a uma maior incidência de furacões nos Estados Unidos. Sob o ponto de vista climático, um cenário de aumento de TSM na costa sul do Brasil poderia acarretar uma maior incidência de fenômenos atmosféricos extremos região sul do Brasil, como o Ciclone Catarina que ocorreu em março de 2004.
Resultados mais recentes do INTERCONF demonstram que a circulação de anticiclones transientes (ATs) transporta as massas frias de ar que avançam pela região sul da América do Sul em trajetórias tanto continentais quanto oceânicas (Kaufmann e Anabor, 2010, 2011). Os autores também descrevem que frequentemente se observa a presença de nebulosidade baixa ao longo da circulação anticiclônica, e que uma ampla cobertura de nuvens rasas está relacionada à passagem de massas estáveis e frias de ar sobre águas mais quentes. Tomando o caso dos intensos contrastes termais que ocorrem na região da CBM, nota-se que estas massas de ar ao cruzarem essa região experimentam uma amplificação dos processos de umidificação e instabilização em baixos níveis. Dependendo do posicionamento do anticiclone transiente, a nebulosidade rasa formada na região da CBM é advectada para a região costeira e interior do sul do Brasil, podendo causar nebulosidade cumuliforme. A nebulosidade rasa pode causar precipitação de baixa intensidade sobre o continente, e há atualmente uma baixa capacidade dos modelos de previsão do tempo em resolver esse fenômeno. Sabe-se, que este fenômeno não é representado adequadamente em modelos numéricos da atmosfera e que esta má representação pode acarretar em erros na previsão do tempo para o Sul do país.
Sob o ponto de vista meteorológico, no entanto, as regiões da CBM e parte da extensão da FST encontram-se também fortemente relacionadas à região preferencial de atividade das tempestades de latitudes médias (ciclones extratropicais do inglês Storm Tracks (STs)). Localizados aproximadamente entre os paralelos de 35o e 65o em ambos os hemisférios, os STs desempenham um papel fundamental no clima do planeta, principalmente em regiões de latitudes médias e altas, por possuírem a capacidade de alterar a condição de tempo de determinada região e exercerem forte influência na precipitação, cobertura de nuvens e radiação incidente.
Freitas (2011) analisou um cenário de aquecimento global A1B (IPCC) com respeito ao cenário atual, Figura 6. A autora mostra que os campos de anomalia do transporte meridional de calor sensível poderão sofrer mudanças consideráveis e, para o Oceano Atlântico Sul, anomalias negativas extremamente altas serão encontradas nas latitudes abaixo da FST, especialmente sobre a Patagônia, região da CBM e no centro do Oceano Atlântico Sul nos meses de inverno. Segundo a autora, em um cenário de mudanças climáticas, as trajetórias dos ciclones extratropicais deverão sofrer uma modificação na sua distribuição futura, provavelmente associada à redução da cobertura de gelo antártico no futuro, ocasionaria o deslocamento dos STs em aproximadamente 5° para o sul.
Segundo os resultados de Freitas (2011), é razoável sugerir uma forte influência da baroclinicidade induzida pelo contraste entre gelo e água. Em latitudes médias, a alteração do transporte meridional de calor sensível na atmosfera associado ao aumento na emissão dos gases de efeito estufa, e às variações da camada de ozônio previstas, sugere que a variação na distribuição dos STs poderá estar relacionada às mudanças nos padrões do gradiente meridional da TSM no Oceano Atlântico Sul. Essas mudanças poderão ser determinantes para o deslocamento e intensificação dos STs num cenário futuro.
Figura 6. Campos de anomalia do transporte meridional de calor sensível no hemisfério sul associados aos STs obtidos pela diferença entre as simulações para o futuro e presente.
Fonte: Freitas (2011).
Ainda no âmbito do projeto INCT da Criosfera, a investigação brasileira conduz estudos multidisciplinares nas áreas da quebra da plataforma e talude Antártico, particularmente nas regiões oeste do Mar de Weddell, na Passagem de Philip, Ilha Elefante, Estreito de Bransfield, Estreito de Gerlache e Ilha Deception na Antártica. Os estudos contribuem para entender os processos de exportação das águas densas formadas nessas regiões e a interação oceano-atmosfera zona costeira. O constante monitoramento desses processos de formação de massas d'água profundas, assim como os processos de trocas na interface oceano-atmosfera são fundamentais para o entendimento das mudanças no clima da Terra. Em cenários de aquecimento global ou local da atmosfera, como é o caso da região da Península Antártica, um pequeno aumento da temperatura média sazonal (de inverno ou de verão) pode acarretar em menos gelo sendo formado na superfície do mar. Isso tem a consequência de diminuir a quantidade de sal liberado para as camadas mais profundas do oceano, afetando a formação da água de fundo.
Uma componente importante do GOAL/INTERCONF avalia as trocas de dióxido de carbono (CO2) entre o oceano e a atmosfera na presença dos blooms de fitoplâncton. Como objetivo, espera-se determinar a importância dessa região do Oceano Atlântico Sul como sumidouro de carbono do planeta e, por consequência, estabelecer parâmetros importantes que possam vir a ser usados na modelagem numérica de cenários futuros de mudanças globais. Neste sentido, em sintonia com as ideias do GOAL/INTERCONF surgiu o projeto de pesquisas Atlantic Carbon Experiment (ACEx) que faz parte de uma iniciativa inovadora e promissora que visa contribuir para um melhor entendimento dos processos químicos, físicos e dinâmicos de interação oceano-atmosfera em micro e meso-escalas no Atlântico Sul e trocas de fluxos nesta interface. A implantação deste projeto visa treinar uma equipe multidisciplinar capaz de fazer medidas in situ de fluxos de momentum, calor e CO2 no Atlântico Sul que é uma região de suma importância para o sequestro do dióxido de carbono atmosférico. Espera-se avançar no entendimento dos modos e dos processos relacionados à variabilidade oceânica e atmosférica destes fluxos, assim como os impactos eventuais desses processos no Atlântico Sudoeste e Sul. Na região de quebra de plataforma argentina em latitudes abaixo da região da CBM, a composição das espécies que formam o fitoplâncton é extremamente relevante. O local é conhecido por promover florações de espécies de cocolitoforídeos que, ao contrário das algas comuns, desenvolvem carapaças microscópicas a base de calcário. Portanto, a transferência do CO2 atmosférico para os oceanos, desde a água do mar para os organismos e, finalmente, dos organismos ao sedimento após a morte, é um tema altamente complexo e importante para os estudos de mudanças globais.