O novo marco regulatório das ferrovias brasileiras
A evolução da infraestrutura de transportes normalmente acarreta relevantes momentos históricos. O surgimento, por exemplo, da locomotiva a vapor e, consequentemente, das ferrovias é um dos mais importantes ícones da chamada Revolução Industrial, período de grande desenvolvimento econômico iniciado na Inglaterra ainda no século XVIII e difundido pelo mundo no século XIX.
No Brasil, a primeira ferrovia foi inaugurada em 1854, amparada pela Lei de 29 de agosto de 1828 (Lei José Clemente), que autorizava a outorga, à iniciativa privada, de obras de infraestrutura no país, e, mais especificamente, pelo Decreto nº 101, de 31 de outubro de 1835 (Decreto Feijó), que autorizava a concessão de ferrovias.
No entanto, a partir do século XX, a exploração da infraestrutura ferroviária passou a se dar predominantemente por meio da atuação de empresas estatais. No início dos anos 1990, porém, a empresa estatal encarregada de grande parte dessa atividade, a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), foi dissolvida. A malha ferroviária existente foi então dividida em várias concessões, objeto de contrato com particulares.
Como forma de adaptar o ordenamento jurídico brasileiro a essa realidade, foi editada a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, contendo o regramento básico para o gerenciamento das ferrovias brasileiras, inclusive mediante concessão.
Em 2021, um novo passo evolutivo foi dado, ampliando os mecanismos de investimento no setor ferroviário. A Medida Provisória nº 1.065, de 30 de agosto de 2021, trouxe um novo marco regulatório para o setor ferroviário no Brasil. A principal novidade foi a possibilidade de outorga por autorização, como já era possível nos âmbitos portuário e aeroportuário.
Se comparada a uma concessão ou mesmo a uma permissão, nos moldes do que prescrevem as leis brasileiras aplicáveis, a autorização ocorre por meio de um instrumento contratual mais simples, ao passo em o particular interessado assume maior risco pelo empreendimento. Para maiores informações sobre o tema, recomenda-se a leitura do artigo “O novo marco regulatório das ferrovias e a introdução de short lines no modelo ferroviário nacional”, de autoria de Stanley Silva Ribeiro, disponível no link https://seer.agu.gov.br/index.php/EAGU/issue/view/172/341.
As autorizações ferroviárias podem ser outorgadas por dois caminhos: pelo requerimento do interessado, a ser analisado pela autoridade competente; ou pelo chamamento, em processo de iniciativa do Poder Executivo, em que se oferta a exploração de ferrovias planejadas, mas não implantadas, ou mesmo que tenham baixa ou nenhuma operação.
Outra inovação foi a previsão expressa de autorregulação, que possibilita aos autorizatários associarem-se para constituir uma entidade com esse fim, submetida à supervisão da agência reguladora, no caso, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Promoveu-se ainda alterações pontuais, mas significativas, na Lei nº 12.379, de 6 de janeiro de 2011, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Viação, compatibilizando-o com as novas disposições legais trazidas. Um exemplo foi o aprimoramento da metodologia para a definição da nomenclatura das ferrovias federais. Essa nomenclatura é constituída pelo símbolo “EF”, acompanhado por uma sequência de três números, conforme a categoria da ferrovia, bem como sua posição em relação a Brasília e aos pontos cardeais.
A Medida Provisória nº 1.065, embora não tenha se transformado em lei, serviu de inspiração para edição da Lei nº 14.273, de 23 de dezembro de 2011, que reproduziu as principais inovações contidas naquele diploma normativo.
Como resultado prático do novo marco regulatório, tem-se na presente data dezenas de solicitações de autorizações para implantação de ferrovias. Sem contar com futuros chamamentos para aproveitamento de trechos antieconômicos das atuais concessões, já há fundada expectativa de que o modo ferroviário aumente significativamente sua participação na matriz de transportes do Brasil, tornando mais eficiente o deslocamento de pessoas e bens pelo vasto território do país.
Nessa ideia de eficiência, vale frisar, incluem-se incrementos de segurança, sustentabilidade, diminuição de custos, entre outros aspectos decorrentes dos princípios gerais que continuam a reger o gerenciamento da infraestrutura e da operação de transportes terrestres, previstos no art. 11 da Lei nº 10.233, de 2001. Prestigia-se, ainda, direitos previstos na Constituição da República, como vida, saúde, transporte, mobilidade urbana e equilíbrio ambiental.
Paulo Roberto Azevedo Mayer Ramalho
Coordenador-Geral de Transportes Terrestres e Aeroviários na Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Infraestrutura
1 Fruto do PLS nº 261, de 2018, que também serviu de referência para a elaboração da Medida Provisória nº 1.065, de 2021.