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Assentados integram feira de sementes crioulas no Rio Grande do Sul
O presidente do Incra, César Aldrighi, esteve presente no evento e ressaltou a autonomia dos agricultores. Fotos: Incra/RS
Os elos entre agricultura e biodiversidade são a tônica da 11ª Feira Estadual de Sementes Crioulas e Tecnologias Populares, realizada em 7 e 8 de outubro, na praça central de Canguçu, no Rio Grande do Sul. O evento é promovido por 11 entidades, com o apoio do Incra e a participação de assentados.
A programação incluiu o X Seminário de Agrobiodiversidade e Segurança Alimentar e duas ações na cidade vizinha, São Lourenço do Sul (RS): o II Seminário Regional sobre Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Sedarf) e a IX Feira do Conhecimento.
A Bionatur Sementes Agroecológicas, sediada no assentamento Estância do Camboatá/Roça Nova, em Candiota (RS), foi um dos empreendimentos da reforma agrária presentes na feira. “Até por uma questão de território, já que estamos próximos de Canguçu (a 160 quilômetros)”, explica o coordenador geral da entidade, Alcemar Adílio Inhaia. Além disso, existe uma identificação com o evento referente ao foco na agricultura familiar.Na Bionatur, a especialidade são sementes agroecológicas e orgânicas produzidas por assentados de seis estados. Em sua décima presença na feira, a entidade está ofertando 60 variedades de verão, como abóbora, melão e tomate. “Nesta época, as curcubitáceas (família de plantas rastejantes como a melancia) são as mais disponibilizadas, pois os agricultores têm tradição de plantar consorciadas com feijão, milho, mandioca e batata-doce. Muitas vezes, não é para comercialização, mas para alimentação própria e dos animais”, conta.
A agricultora do assentamento Perseverantes na Luta, de Canguçu, Érica Alberdanha Barbosa, foi associada da Bionatur e este ano estreou uma banca individual na feira. Levou panificados, doces, geleias, queijos e outros itens já vendidos por ela na cidade. “Aqui está muito diverso, tem de tudo: artesanato, comida e até folhagens. É uma grande oportunidade de fazer trocas com as pessoas, que estão descobrindo a variedade de produtos do interior. Eu tinha que estar aqui!”, revela.Embora a assentada esteja comercializando gêneros minimamente processados, seu relato permanece ancorado na produção primária. Érica, o marido e os quatro filhos não aderiram à monocultura por decisão familiar. O lote de 24 hectares é cultivado somente com o que podem “tirar da terra, botar na mesa e vender”.
Nesta trajetória, conservam, multiplicam e distribuem tipos de alimentos cada vez mais escassos no entorno. Dois deles ganharam carinho especial da agricultora. “Uma vez, um vizinho trouxe de uma viagem um saco de ervilhas misturadas. Plantei tudo junto, mas depois tive o trabalho de separar cada uma e consegui salvar duas qualidades. São meu tesouro”, lembra.
Ela já morou na capital gaúcha, mas preferiu retornar ao campo e, hoje, celebra o esforço de proteger a biodiversidade. “Semente é vida. Mesmo eu não tendo o título oficial, me considero uma guardiã das variedades crioulas como o nome do meu assentamento diz: perseverante na luta”.
Reforma agrária
O presidente do Incra, César Aldrighi, prestigiou as atividades em Canguçu destacando as sementes crioulas como patrimônio das comunidades, especialmente aquelas formadas por assentados, quilombolas, agricultores familiares e indígenas, entre outros. “Elas simbolizam a vida e a autonomia dos nossos povos para plantar o que quiserem, no momento e nas condições desejadas, sem depender de qualquer ação externa”, disse.
O gestor relatou a tarefa do instituto de ampliar a reforma agrária, com perspectiva de obter imóveis por dívidas tributárias, e inserir as famílias nas estratégias de desenvolvimento. O intuito passa por políticas públicas como assistência técnica e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que abriu espaço para sementes. Em 2023, esta iniciativa recebeu propostas dos segmentos enquadrados na agricultura familiar na ordem de R$ 1 bilhão.
Aldrighi ainda citou uma pesquisa executada pela autarquia a partir do Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola 2017. Segundo o estudo, os assentamentos “não estão diferentes, nem os quilombos – em termos de produção, de produtividade e de pessoas ocupadas – quando comparados com o entorno deles”. Portanto, tratam-se de políticas exitosas no contexto dos aportes públicos que necessitam de incentivo.
Após as falas, o presidente do Incra visitou o local de exposições com 150 bancas dedicadas à troca e comercialização de sementes, agroindústrias, flores e plantas ornamentais, comidas típicas, tecnologias populares (instrumentos construídos pelos agricultores) e estandes institucionais.
Visibilidade
Para o integrante da comissão organizadora da feira, Cléu de Aquino Ferreira, da Cooperativa União dos Agricultores Familiares de Canguçu e Região, o objetivo do evento é estimular a agrobiodiversidade e os cultivos não modificados geneticamente ou por cruzamentos. “Semente crioula é a semente mãe: deu origem a todas as outras e é indispensável para a segurança alimentar”, defende.
Nesta lógica, as famílias cultivam as próprias sementes sem necessidade de adquiri-las por preços incompatíveis com sua renda. Além disso, preservam variedades com produtividade baixa para o padrão empresarial, mas carregadas de características valorizadas em seu cotidiano, como sabor ou textura, favorecendo a manutenção da diversidade.
A proposta alinha-se à atuação da cooperativa à frente de 242 produtores, dos quais 40 são assentados. Em 2024, por exemplo, a entidade planeja comercializar 15 toneladas de feijão e 50 de milho crioulos para plantio.
Outra prioridade da feira citada pelo dirigente é dar visibilidade aos agricultores, responsáveis por manter o material genético cultivado pelas famílias ao longo de gerações. Cléu destaca que a preservação das sementes crioulas pode ser feita alguns anos em bancos genéticos refrigerados. “Porém, é necessário o agricultor botar na terra periodicamente para elas se ajustarem às alterações ambientais, inclusive às mudanças climáticas”, explica. Sem este trabalho de campo, podem perder a viabilidade, causando degradação genética.
Não por acaso, a coordenação e a agenda do evento incluíram assentados da reforma agrária, agricultores familiares, quilombolas e indígenas – todos segmentos identificados com a preservação da variabilidade genética.
Debates
Em paralelo à 11ª Feira Estadual de Sementes Crioulas e Tecnologias Populares, o X Seminário de Agrobiodiversidade e Segurança Alimentar promoveu uma série de debates ao longo dos dias 5 e 6, na Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB) de Canguçu. A temática incluiu comercialização de sementes crioulas, Bioma Pampa e conservação da biodiversidade e políticas públicas voltadas ao setor. As conclusões foram registradas na Carta da Canguçu, reunindo os resultados do diálogo entre órgãos públicos e movimentos representativos dos agricultores.
Já em São Lourenço do Sul (RS), a programação ocorreu de 4 a 6 com o II Seminário Regional sobre Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Sedarf) e a IX Feira do Conhecimento do município, organizados pela Fundação Universidade de Rio Grande (Furg) em parceria com a prefeitura.
Além de seis painéis sobre temas voltados à agricultura, alimentação, agroecologia e desenvolvimento rural, houve apresentação de trabalhos acadêmicos, exposição de projetos e comercialização de produtos da economia popular solidária.
“Nossa intenção é criar espaços de reflexão e diálogo para fortalecer a agricultura familiar”, mencionou a vice-diretora do campus São Lourenço e coordenadora da programação no município, Carmem Porto. Segundo a professora, a articulação dos encontros foi calcada na ideia de território. Nesse sentido, 13 escolas da rede municipal de ensino participaram dos dois eventos mostrando projetos relativos à agricultura familiar desenvolvidos pelos estudantes.