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Presidente do Instituto Chico Mendes concede entrevista sobre caso de demolição do Terreiro de Jarê na Chapada Diamantina
Em entrevista ao coordenador de Comunicação Social (CCOM), Ricardo Peng, o presidente do Instituto Chico Mendes, Mauro Pires, responde perguntas sobre o caso da demolição do Terreiro de Jarê Peji da Pedra Branca de Oxóssi, no dia 21 de julho, dentro do Parque Nacional da Chapada Diamantina, no vale do Curupati, município de Lençóis na Bahia. Veja abaixo:
CCOM – Presidente, o que aconteceu no caso da demolição de um Terreiro de Jarê na Chapada Diamantina?
Pires - O que aconteceu foi que há alguns dias uma equipe de fiscalização do Instituto estava fazendo uma operação de fiscalização para apurar denúncias de ocupações irregulares dentro do Parque. Nessa operação, os fiscais identificaram imóveis em construção, extração de madeira, instalação de sítios rurais, entre outras coisas. E, diante de um determinado imóvel, iniciaram sua demolição começando pelas paredes e, quando perceberam que se tratava de um terreiro religioso, pararam a destruição. Mas o estrago estava feito. Nós aqui na sede só soubemos desse episódio por meio de denúncias que chegaram apontando a destruição, uma delas por meio de um vídeo apócrifo que -- diga-se de passagem, estava bem editado --, fazendo acusações diretas ao governo do Presidente Lula de não respeitar os povos de terreiros, para depois informar que se tratava de uma operação de fiscais do Instituto.
CCOM - E o que o Instituto fez em seguida?
Pires – Assim que soubemos, começamos a buscar informações para entender o que havia acontecido exatamente. Ouvimos o gestor do parque, analisamos o relatório da operação, ouvimos relatos de representantes de ministérios que começaram a nos procurar, do governo estadual da Bahia, da prefeitura de Lençóis, enfim, muita gente. Ficou claro que a demolição daquele terreiro não deveria ter ocorrido. Aliás, o próprio fiscal que coordenava a operação admitiu que, quando a equipe percebeu a finalidade religiosa do imóvel, parou a atividade. Mas, como eu disse, o estrago já estava feito. Muitas pessoas, com razão, se sentiram ofendidas. Houve uma repercussão muito negativa para a imagem do Instituto, com acusações de prática de racismo ou intolerância religiosa. O Instituto Chico Mendes emitiu uma nota em que assume o erro e informa a abertura de uma apuração mais detalhada.
CCOM – Quanto a essa apuração, o que exatamente será feito?
Pires – Desde dezembro passado, o Instituto possui um novo Regimento Interno da Fiscalização (RIF), que é o documento que orienta as linhas mestras dessa atividade no âmbito da gestão das unidades de conservação. No caso concreto, é preciso saber, em primeiro lugar, se o RIF foi obedecido. Para isso, formamos uma comissão composta por instrutores experientes com o objetivo de avaliar toda a operação, desde o seu planejamento, passando pelos procedimentos e até a dinâmica dos fatos. Se a falha ocorreu, é preciso entender suas causas e, mais do que isso, devemos agir para que não aconteça novamente. Precisamos aprender com esse caso. Um dos valores mais importantes do Instituto é o respeito a todas as manifestações culturais e religiosas, e, portanto, é preciso entender por que esse episódio lamentável aconteceu. O trabalho dessa comissão é muito importante, pois irá analisar os atos praticados à luz das normas da fiscalização. Entretanto, o desafio do Instituto não se esgota nos trabalhos da Comissão. É preciso olhar com mais profundidade para o caso. Há perguntas que precisam ser respondidas, como, por exemplo, as deficiências e limitações do Instituto, órgão gestor do Parque, que impediram o conhecimento prévio de que havia ali um terreiro de Jarê, e que ali havia praticantes dessa religião que, me parece, é bem característica da Chapada Diamantina. Ora, uma das finalidades dos parques nacionais é o uso público, entre os quais os usos religiosos.
CCOM – E com relação à comunidade afetada, o que será feito?
Pires – Infelizmente, não tem como voltar ao passado. Essa ação, como eu disse, afetou muitas pessoas, direta ou indiretamente, a começar pelo sr. Damaré, que lidera o terreiro. Pelo levantamento preliminar que conseguimos fazer, ele faz parte de uma família que estava de posse daquele lugar antes da criação do Parque. E, na condição de posseiro, a legislação brasileira lhe assegura direitos. Portanto, temos que ir até ele, nos retratar e buscar meios de reparação. É o que faremos. Uma equipe de representantes do Instituto Chico Mendes, dos Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima, dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial, e do Desenvolvimento Agrária e do governo da Bahia irá até a região. O objetivo é, antes de tudo, ouvir as pessoas, entre elas o sr. Damaré, outros membros da comunidade e autoridades locais. A partir dessas conversas, poderemos identificar o que realmente deve ser feito.
CCOM – Qual foi o objetivo da operação de fiscalização realizada?
Pires – A operação era destinada a coibir o avanço da especulação imobiliária dentro do Parque. A cidade de Lençóis, por ser um polo turístico regional, acaba sendo pressionada pela especulação imobiliária, como temos vistos em outras cidades. Desde a pandemia vem se observando o aumento de construção de imóveis dentro e no entorno do Parque. Os fiscais identificaram várias placas de venda de lotes dentro dessa unidade de conservação, o que será investigado pois isso é crime. Muitas vezes é a própria comunidade local que pede a presença da fiscalização, aliás, a demanda por fiscalização é uma das principais que rotineiramente os gestores das unidades de conservação recebem. Mas temos que saber separar as pessoas que moravam dentro do Parque antes de sua criação daquelas que, por boa-fé ou não, chegaram mais recentemente. E, por dever de ofício, devemos saber sobre as comunidades tradicionais que durante gerações ocupavam suas áreas que, posteriormente, o poder público transformou em unidade de conservação. Essas comunidades não podem ser confundidas com especuladores ou com pessoas que, embora de boa-fé, compraram lotes irregularmente.
CCOM - Qual o papel da fiscalização em uma instituição como o Instituto Chico Mendes e como o desempenho dessa função pode ser aperfeiçoado?
Repare o seguinte, Peng, o Instituto Chico Mendes é um órgão público especializado em conservação da biodiversidade, mais especificamente na gestão de unidades de conservação. A gestão dessas áreas se desdobra em diferentes frentes: proteção, manejo, ordenamento territorial, pesquisa, uso público etc. Na proteção, a fiscalização é uma das atividades mais fundamentais que realizamos. Nós temos o dever de proteger as 340 unidades de conservação que nos foram delegadas. E, apesar de todos os déficit de recursos financeiros, de falta de servidores, o Instituto busca cumprir sua missão. Há uma semana, saiu um estudo do Imazon apontando que a redução do desmatamento dentro das unidades de conservação da Amazônia em 2023 foi a maior durante os últimos 10 anos. Embora devamos reconhecer o trabalho dos órgãos de meio ambiente dos estados, não há dúvida de que esse resultado em boa medida é mérito do Instituto Chico Mendes. Foram as equipes do Instituto que voltaram a ter presença mais direta nos territórios, retomaram as reuniões dos conselhos de gestão, as discussões dos planos de manejo, de gestão socioambiental, de combate ao fogo e de fiscalização. Veja, por exemplo, a Operação Sinueiro que acaba de ocorrer na Floresta Nacional do Jamanxim e na Rebio Nascentes Serra do Cachimbo: os nossos fiscais enfrentaram interesses poderosos e desafios logísticos gigantescos, mas não arredaram o pé e conseguiram reduzir drasticamente a criação de gado bovino nessas unidades. É o caso também das operações de apreensão de madeira ilegalmente extraída da Reserva Extrativista Verde para Sempre, no ano passado. Enfim, é uma atividade muito estratégica, fundamental. Agora, como somos seres humanos, somos passíveis de erro. O que precisamos é aprender com a experiência e agir para que esses equívocos não aconteçam novamente. Este é o nosso desafio.
CCOM – O que o Instituto Chico Mendes vai fazer para melhorar a gestão do Parque Nacional da Chapada Diamantina?
Pires – Com esse episódio, nós fomos desafiados a reforçar a gestão do Parque. O fato é que hoje há apenas dois servidores efetivos, que são responsáveis por administrar uma área de mais de 150 mil hectares. Ou seja, todas as frentes de ação, entre elas o funcionamento do conselho gestor, o levantamento dos ocupantes e das comunidades, a regularização fundiária, a proteção ambiental, o uso público e a pesquisa dependem desses dois colegas. Evidentemente, o desafio é enorme. Essa não é uma realidade exclusiva desse Parque Nacional. A falta de servidores é a principal carência que temos nas nossas unidades de conservação. Felizmente, no último Dia Mundial do Meio Ambiente, a Ministra Marina Silva anunciou a autorização de concurso público para 180 vagas do Instituto. Não é suficiente para repor todas as perdas que tivemos nos últimos anos, mas representa um reforço. Agora, estamos correndo contra o relógio para conseguir que as provas aconteçam ainda neste ano. Precisamos que o Ministério de Gestão e Inovação (MGI) autorize o concurso para todas as vagas em aberto, pois aí sim teríamos uma mudança estrutural. Além disso, é necessário expandir o espaço orçamentário do Instituto. Passamos por anos ruins em termos orçamentários, e muitas unidades estão em situação crítica. Para recuperar seus escritórios ou construir suas sedes, é necessário contar com aumento dos recursos, sem dúvida. Esse é o desafio que temos à frente da gestão e somos otimistas pois há compromisso do governo nesse sentido.
De todo modo, não basta apenas mais pessoal e mais orçamento. É preciso, tendo por base o caso do Parque, conhecer melhor as pessoas e comunidades que têm posse e título, e, portanto, possuem direitos fundiários. Precisamos atualizar o levantamento fundiário feito ainda em 1998, precisamos reconhecer as comunidades que estão lá, por exemplo. Nós estamos negociando dois Termos de Compromisso com comunidades locais, mas precisamos ir em busca de várias outras e pactuar com elas regras desses termos de compromisso. Sabemos que o contexto da especulação imobiliária adiciona complexidade, mas iremos enfrentá-lo. Vamos procurar a prefeitura local, o governo estadual, a comunidade local e todos aqueles que queiram apoiar que uma nova fase do Parque seja instaurada. Precisamos extrair lições proveitosas desse triste acontecimento.
CCOM – Qual a relação entre a conservação ambiental nas unidades de conservação e os povos e comunidades tradicionais que delas dependem?
A lei que cria o Instituto Chico Mendes inclui entre suas competências não apenas executar as ações da política nacional de unidades de conservação, mas, também, o apoio ao desenvolvimento das populações tradicionais das unidades de conservação de uso sustentável. Essas populações seja dentro de UC de uso sustentável, seja nas UC de proteção integral possuem direitos, são cidadãos. Portanto, desempenhar essa atribuição é uma atividade complexa e possui diversas faces e interdependências. A política de conservação do ICMBio parte da premissa de reconhecer e integrar os direitos, conhecimentos e necessidades dessas comunidades, promovendo uma abordagem de gestão participativa e inclusiva. Em muitos lugares, o ICMBio é o único órgão do governo perante a comunidade. Isso adiciona desafios para os quais precisamos estar mais fortalecidos. Muitas dessas comunidades, inclusive, recorrem ao Instituto quando se sentem ameaçadas, quando enfrentam violências. E é nossa obrigação não fechar os olhos para isso, pelo contrário. Não há como fazer gestão territorial, que é o que fazemos, sem considerar os sujeitos desses territórios. Portanto, consideramos que a presença dessas comunidades tradicionais contribui para uma gestão territorial mais integrada, mais sólida. Em muitos lugares, quando há a saída dessas comunidades, as áreas se tornam mais vulneráveis ao desmatamento, à degradação. Portanto, elas cumprem um papel ambiental muito importante na manutenção dos serviços ecossistêmicos que a natureza oferta à continuidade da vida.