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A caminhada inaugural de uma travessia na capital do país
Publicado em
05/04/2018 18h06
Flona de Brasília inaugura trilha de 36 quilômetros, que foi percorrida em dois dias pelo grupo.
Quem visitou a Floresta Nacional (Flona) de Brasília pela última vez no início do ano passado, não a reconheceria agora. A floresta floresceu, com o perdão do trava-língua. E quem a regou foi a própria sociedade encarnada na figura de voluntários e usuários: caminhantes, ciclistas e corredores. No sábado, dia 24 de março, em uma primavera fora de época no Distrito Federal, as trilhas da Flona desabrocharam e foram oficialmente inauguradas em um evento que reuniu dezenas de pessoas.
Os Caminhos da Flona, como foram apelidados, são compostos de quatro trilhas que percorrem a área protegida. Cada uma com nome e distância próprias. A Jatobá, com 6 km; a Pequi, com 12; a Buriti, com 18; e a maior de todas, a Sucupira, com 36 km de extensão e programada para ser feita em dois dias, com pernoite dentro da própria Flona. O que todos os percursos têm em comum é o berço: o voluntariado.
Há um ano não havia nenhuma destas trilhas nem mesmo rotas de mountain bike. A Flona era um ambiente deserto e quase marginal, mesmo localizada a apenas 22 km do centro de Brasília e seus gabinetes e ministérios. Em junho de 2017, depois de 2 meses de trabalho, nasceu o Circuito Flona, uma rede de 45 km feita para os ciclistas e pelos ciclistas, que se engajaram como voluntários.
Depois do exemplo da turma do pedal, foi a vez dos caminhantes abraçarem a Flona. A iniciativa nasceu dentro do Grupo de Caminhadas Brasília (GCB) e cresceu até ganhar a forma de pegada – a marca de sinalização utilizada nas trilhas – dividida em quatro cores, uma para cada percurso.
Na manhã do sábado, junto com um grupo de aproximadamente 20 caminhantes, eu iria seguir as de cor amarela, como Dorothy na estrada dos tijolos amarelos, que indicavam a Trilha Sucupira e seus intimidadores 36 km de extensão. A maioria do grupo era formado pelos próprios voluntários-caminhantes que fizeram nascer a travessia, mas nenhum deles havia realizado ainda o trajeto inteiro de dois dias de forma contínua. Era uma aventura inédita e cabia a nós desbravá-la pela primeira vez.
A jornada começou em uma floresta que misturava espécies nativas de Cerrado com os troncos finos e altos dos eucaliptos (Eucalyptus grandis), uma espécie de árvore exótica muito utilizada para exploração comercial de madeira. A categoria Floresta Nacional é de uso sustentável e possui essa característica de admitir o manejo florestal de espécies exóticas para fins comerciais de exploração madeireira. Ironicamente, as plantações existentes, tanto de eucalipto quanto de pinheiro (Pinus spp.) nunca foram exploradas comercialmente pela Flona. Por isso, uma das metas dos voluntários é recuperar a vegetação nativa do Cerrado e fazer o plantio de espécies como o jatobá-do-cerrado (Hymenaea stigonocarpa). Para isso, reativaram o viveiro de mudas da Flona que estava abandonado. “Fomos picados pelo mosquito de gostar da Flona e agora queremos cuidar e ver isso aqui melhorar cada vez mais”, explica João Carlos Machado, membro do GCB e um dos idealizadores dos Caminhos.
Os ambientes de Cerrado, entretanto, ainda resistem dentro da área protegida. Foi o que descobri, com surpresa, quando saí debaixo do dossel dos eucaliptos depois de 5 km e me vi de frente para um vasto campo da savana brasileira. Separado do eucaliptal por uma única e alaranjada estrada de terra batida, o Cerrado conseguiu aqui manter um território praticamente imaculado. Reinam as árvores baixas de troncos retorcidos e cascas grossas, e a vegetação arbustiva pontilhada por flores coloridas e diversas. Com direito até mesmo a algumas solitárias sempre-vivas (Paepalanthus spp.), flor popularmente conhecida como chuveirinho e típica do bioma. Uma grata surpresa coroada pelo visual de um pequeno vale que me fez esquecer por alguns minutos de que eu estava no meio de Brasília!
Percorremos um trecho de aproximadamente 1.5 km no campo aberto, debaixo do céu nublado, antes de adentrarmos novamente o paredão de eucaliptos com seu perfume inconfundível. Nesta parte da trilha a orientação é mais confusa porque o caminho recém-aberto ainda não foi muito pisoteado para ajudar a marcá-lo no solo, mas as pegadas amarelas nunca somem de vista e a sinalização se mostra impecável para evitar que alguém fique perdido.
Depois de trilhar 8 km em direção ao limite norte da Flona, escutamos os barulhos de carros que indicam que estamos próximos da rodovia BR-251, que faz fronteira com a floresta. Sinal de que é hora de virar à esquerda, para continuar com nossa travessia por dentro da área protegida onde as únicas estradas permitidas são as de terra.
Os sons agitados da vida urbana não parecem afugentar os pássaros. Às vezes apenas uma cantoria vinda da mata, outras um vulto afugentado pela nossa aproximação do qual distinguimos apenas o bater das asas. Dou a sorte de ver três em menos de 100 metros, um diminuto pica-pau e um casal colorido de sanhaços-de-fogo (Piranga flava). Uma amostra das mais de 200 espécies de aves que já foram registradas na Flona. A unidade de conservação está a apenas uma rodovia do vizinho Parque Nacional de Brasília, uma distância intransponível para alguns animais, mas banal para aves de grande e médio porte, como araras e tucanos, o que facilita sua dispersão.
Subitamente, os já familiares eucaliptos dão lugar a uma paisagem diferente dominada por samambaias (Pteridium arachnoideum), outra exótica, estas sem a desculpa de exploração da madeira. Ainda assim, o matagal de samambaias, algumas da altura de nossas cabeças, entrecortado apenas pelos troncos enegrecidos dos pinheiros forma um cenário belo. Uma beleza ecologicamente incorreta, por assim dizer, mas que não exclui o seu impacto cênico.
Me chamem de romântica, mas por mais encantada que parecesse a floresta de pinheiros e samambaias, nada supera a renovada surpresa de estar novamente diante de uma pequena vastidão de Cerrado. Dessa vez, a imensidão se abria até o horizonte, onde os arranha-céus de Taguatinga e Ceilândia – bairros do entorno – se impunham como paredes de concreto. Enquanto caminhava no meio da vegetação arbustiva, percebi que era observada atentamente por uma coruja-buraqueira (Athene cunicularia). Comum em todo Distrito Federal, a espécie é territorialista e me seguiu com os olhos enquanto eu passava pela trilha a poucos metros de onde ela estava pousada.
Sem intenção de incomodá-la, segui meu caminho pela trilha até o ponto apelidado de Mirante das Pedras. O nome é uma referência à um pequeno aglomerado rochoso isolado que faz as vezes de mirador. Um bom local para sentar um pouco e contemplar a paisagem natural limítrofe à vida urbana e deixar cair a ficha: “estamos trilhando no meio de Brasília!”.
Eram 14:30 e já havíamos caminhado 15.5 km do percurso total do primeiro dia, podíamos nos permitir um pequeno descanso antes de prosseguir a caminhada, que tinha ainda 5 km pela frente até o ponto de pernoite. A trilha seguiu com uma ligeira descida pelo pequeno vale por onde desce um dos córregos que nascem na própria Flona e abastecem a bacia do Descoberto. A Floresta Nacional abriga nascentes de quatro rios que ajudam a encher o reservatório do Descoberto, responsável por 60% do abastecimento de todo Distrito Federal.
Cruzamos o rio e o acompanhamos por cerca de 1 km em meio à frondosa mata de galeria. Há inclusive um agradável ponto de banho, mas eu só pensava em chegar ao camping e deixar desabar o peso da mochila cargueira no chão, então prossegui inabalável rumo à linha de chegada. A reta final do primeiro dia da travessia é feita em uma estrada de terra e, quando o cansaço já é inevitável, o percurso nos oferece um último desafio com um raro momento de subida. Em uma caminhada no Planalto Central, a dificuldade não está no sobe e desce, mas sim na quilometragem (feita com peso nas costas).
Quando cheguei no ponto conhecido como Bica de Lata, por volta das 16h, comemorei a conclusão dos 20 km reservados ao primeiro dia da Trilha Sucupira. Com alívio me livrei da mochila e parti para a Bica, uma pequena cachoeira abastecida com água vinda direto da fonte. Uma pequena plataforma de madeira permite que, um de cada vez, as pessoas possam usufruir da Bica. Entre banhar e beber, me revigoro com as águas limpas e geladas da queda d’água.
Com o corpo agradecido pela ducha, volto minha atenção ao camping. O ponto de pernoite ainda não é oficial, segundo Geraldo, gestor da Flona, o acampamento definitivo será em outro local e este será apenas um ponto de apoio ao caminhante, como indica a instalação do banheiro seco e de duas longas mesas de madeira.
Enquanto conversamos, descansamos as pernas e montamos nossas barracas, o sol se põe e o céu ganha infinitas tonalidades até se recobrir com o manto escuro da noite. No horizonte, em disputa ou dueto com as estrelas e a lua crescente, está a cidade iluminada. Mais uma vez, veio a percepção quase conflitante de que estávamos no meio de Brasília. A alguns quilômetros dali talvez algum ministro estivesse prestes a assinar um projeto – ou uma delação – o que talvez seja mais provável no nosso cenário político.
Gabinetes à parte, no acampamento todos os voluntários comemoravam o sucesso do projeto Flona. Na fala de cada um era possível notar o sentimento apaixonado e orgulhoso de quem doou seu tempo e seu dinheiro para fazer aquilo acontecer. João contabilizou: foram mais de 4 mil horas de trabalho e aproximadamente 4 mil reais desembolsados pelos voluntários do Grupo de Caminhadas Brasília para fazer as placas, comprar as tintas, enfim, fazer nascer os Caminhos da Flona. Uma voluntária define “Não é o que a gente dá, é o que a gente recebe”.
“Não tem um prego do ICMBio. Tudo veio do voluntariado. Nós apoiamos apenas com a viatura e as horas de trabalho dos servidores”, ressalta o gestor com a gratidão de quem sabe que ganhou o maior aliado possível para a área protegida: a sociedade.
Ao menos durante a travessia, o clima também foi um aliado. Esperou todos montarem suas barracas, jantarem e se recolherem para então desabar uma pesada chuva que testou a real impermeabilidade das barracas.
No amanhecer do dia seguinte, sobrou da chuva apenas o solo úmido e as gotas no exterior das tendas. Apesar do dia ainda nublado, o tempo estava a nosso favor. Às 9 horas da manhã, já estávamos com o pé de novo na trilha, para garantir que iríamos manter nossa impermeabilidade até o final da caminhada.
O percurso cruza a Bica de Lata e segue em uma rota compartilhada com os ciclistas, afinal, a Flona também é deles. E dos corredores de montanhas que em grupos ou solitários nos ultrapassam facilmente ao longo do dia, num ritmo que seríamos incapazes de manter com as mochilas cargueiras nas costas.
Passamos pela Geladeira, ponto por onde passa o Ribeirão das Pedras, outro dos córregos que comprovam a importância hídrica da Flona e de lá enfrentamos uma subida que nos levou de volta ao cerradão. Morro acima, é possível ver o paredão de árvores que marcam o talhão do eucaliptal, que se estende como uma fronteira exótica atrás e à frente em contraste com a vegetação rasteira e arbustiva da savana nativa, que sobrevive espremida no meio.
Menos de 1 km depois voltamos ao dossel do invasor soberano e, análogo à metáfora de invasão, entramos no que seria um campo de batalha com troncos nus, finos, sem folhas e sem galhos. A aparência dos eucaliptos rendeu a este trecho o apelido de Paliteiro, uma zona mista de árvores mortas e recém-nascidas ainda sem folhagem. O trecho é concomitante à Trilha Buriti, sinalizada por pegadas na cor azul, e na bifurcação entre ela e a Sucupira, escolho seguir alguns metros adiante para ver melhor esse cemitério de eucaliptos. No meio do caminho deste meu rápido desvio, passo por uma única caliandra (Calliandra dysantha), flor símbolo do Cerrado. Em flor, suas delicadas pétalas vermelhas contrastam com o cenário monocromático ao seu redor como se fosse a prova viva de que o Cerrado ainda pode florescer por aqui.
De volta à Sucupira, seguimos por 800 metros até uma estrada de terra, por onde segue a travessia. Segundo João, a expectativa é futuramente colocar todo o percurso dentro da mata para melhorar a experiência da caminhada. Por enquanto, nossa rota é pela estrada mesmo, com a cidade à nossa direita mostrando que estávamos no limite da Flona.
Da estrada ampla entramos em uma menor, já tomada pela vegetação e bloqueada por alguns eucaliptos caídos que se tornam pequenos obstáculos aos caminhantes. Pernas por cima, agachamentos por baixo, nada que impeça nossa passagem tranquila. Percorremos 1.2 km até voltarmos para a estrada principal, pela qual a trilha segue pelos próximos 3.3 km. Caminhar em uma via larga tem suas vantagens práticas, mas não se compara ao sentimento prazeroso de andar mata adentro. Foi com alegria, portanto, que segui as pegadas amarelas quando elas saíram do leito de terra batida e indicaram o caminho por dentro da floresta de pinheiros.
Os pinus possuem uma dispersão muito mais agressiva do que o eucalipto e sua presença não admite concorrência arbórea. O alinhamento retilíneo e perfeitamente espaçado entre as árvores revela a mão do homem por detrás do plantio daquela pequena floresta com ares de bosque europeu. Independente dos valores ecológicos, a beleza da floresta é inquestionável e nos confere sombra e frescor para aplacar o calor, esse sim tipicamente brasileiro.
Nesse talhão de pinheiro estão alguns dos atrativos recém-instalados da Flona: um espaço de meditação, um redário e uma área de teatro ao ar livre, que recebeu o nome Marielle Franco, em homenagem à vereadora estadual assassinada no Rio de Janeiro em março de 2018.
Saímos da aura mágica do bosque para um curto trecho de Cerrado, seguido por uma mata de galeria no ribeirão Currais, uma amostra em apenas 2 km da rica diversidade de cenários florestais que podem ser vistos na Flona. E assim, depois de aproximadamente 4 horas de caminhada, concluímos nossa travessia do lado da sede, a poucos metros de onde havíamos iniciado a jornada no dia anterior. As pegadas amarelas haviam terminado, mas as dos voluntários – tenho certeza – estão apenas começando.
Trilha Sucupira
Onde: Floresta Nacional de Brasília (DF)
Distância: 36 quilômetros
Pernoite? Sim. O pernoite é feito em acampamento dentro da própria Flona, mediante agendamento prévio.
Por Por Duda Menegassi/O ECO
Comunicação ICMBio
(61) 2028-9280
Na manhã do sábado, junto com um grupo de aproximadamente 20 caminhantes, eu iria seguir as de cor amarela, como Dorothy na estrada dos tijolos amarelos, que indicavam a Trilha Sucupira e seus intimidadores 36 km de extensão. A maioria do grupo era formado pelos próprios voluntários-caminhantes que fizeram nascer a travessia, mas nenhum deles havia realizado ainda o trajeto inteiro de dois dias de forma contínua. Era uma aventura inédita e cabia a nós desbravá-la pela primeira vez.
A jornada começou em uma floresta que misturava espécies nativas de Cerrado com os troncos finos e altos dos eucaliptos (Eucalyptus grandis), uma espécie de árvore exótica muito utilizada para exploração comercial de madeira. A categoria Floresta Nacional é de uso sustentável e possui essa característica de admitir o manejo florestal de espécies exóticas para fins comerciais de exploração madeireira. Ironicamente, as plantações existentes, tanto de eucalipto quanto de pinheiro (Pinus spp.) nunca foram exploradas comercialmente pela Flona. Por isso, uma das metas dos voluntários é recuperar a vegetação nativa do Cerrado e fazer o plantio de espécies como o jatobá-do-cerrado (Hymenaea stigonocarpa). Para isso, reativaram o viveiro de mudas da Flona que estava abandonado. “Fomos picados pelo mosquito de gostar da Flona e agora queremos cuidar e ver isso aqui melhorar cada vez mais”, explica João Carlos Machado, membro do GCB e um dos idealizadores dos Caminhos.
Os ambientes de Cerrado, entretanto, ainda resistem dentro da área protegida. Foi o que descobri, com surpresa, quando saí debaixo do dossel dos eucaliptos depois de 5 km e me vi de frente para um vasto campo da savana brasileira. Separado do eucaliptal por uma única e alaranjada estrada de terra batida, o Cerrado conseguiu aqui manter um território praticamente imaculado. Reinam as árvores baixas de troncos retorcidos e cascas grossas, e a vegetação arbustiva pontilhada por flores coloridas e diversas. Com direito até mesmo a algumas solitárias sempre-vivas (Paepalanthus spp.), flor popularmente conhecida como chuveirinho e típica do bioma. Uma grata surpresa coroada pelo visual de um pequeno vale que me fez esquecer por alguns minutos de que eu estava no meio de Brasília!
Percorremos um trecho de aproximadamente 1.5 km no campo aberto, debaixo do céu nublado, antes de adentrarmos novamente o paredão de eucaliptos com seu perfume inconfundível. Nesta parte da trilha a orientação é mais confusa porque o caminho recém-aberto ainda não foi muito pisoteado para ajudar a marcá-lo no solo, mas as pegadas amarelas nunca somem de vista e a sinalização se mostra impecável para evitar que alguém fique perdido.
Depois de trilhar 8 km em direção ao limite norte da Flona, escutamos os barulhos de carros que indicam que estamos próximos da rodovia BR-251, que faz fronteira com a floresta. Sinal de que é hora de virar à esquerda, para continuar com nossa travessia por dentro da área protegida onde as únicas estradas permitidas são as de terra.
Os sons agitados da vida urbana não parecem afugentar os pássaros. Às vezes apenas uma cantoria vinda da mata, outras um vulto afugentado pela nossa aproximação do qual distinguimos apenas o bater das asas. Dou a sorte de ver três em menos de 100 metros, um diminuto pica-pau e um casal colorido de sanhaços-de-fogo (Piranga flava). Uma amostra das mais de 200 espécies de aves que já foram registradas na Flona. A unidade de conservação está a apenas uma rodovia do vizinho Parque Nacional de Brasília, uma distância intransponível para alguns animais, mas banal para aves de grande e médio porte, como araras e tucanos, o que facilita sua dispersão.
Subitamente, os já familiares eucaliptos dão lugar a uma paisagem diferente dominada por samambaias (Pteridium arachnoideum), outra exótica, estas sem a desculpa de exploração da madeira. Ainda assim, o matagal de samambaias, algumas da altura de nossas cabeças, entrecortado apenas pelos troncos enegrecidos dos pinheiros forma um cenário belo. Uma beleza ecologicamente incorreta, por assim dizer, mas que não exclui o seu impacto cênico.
Me chamem de romântica, mas por mais encantada que parecesse a floresta de pinheiros e samambaias, nada supera a renovada surpresa de estar novamente diante de uma pequena vastidão de Cerrado. Dessa vez, a imensidão se abria até o horizonte, onde os arranha-céus de Taguatinga e Ceilândia – bairros do entorno – se impunham como paredes de concreto. Enquanto caminhava no meio da vegetação arbustiva, percebi que era observada atentamente por uma coruja-buraqueira (Athene cunicularia). Comum em todo Distrito Federal, a espécie é territorialista e me seguiu com os olhos enquanto eu passava pela trilha a poucos metros de onde ela estava pousada.
Sem intenção de incomodá-la, segui meu caminho pela trilha até o ponto apelidado de Mirante das Pedras. O nome é uma referência à um pequeno aglomerado rochoso isolado que faz as vezes de mirador. Um bom local para sentar um pouco e contemplar a paisagem natural limítrofe à vida urbana e deixar cair a ficha: “estamos trilhando no meio de Brasília!”.
Eram 14:30 e já havíamos caminhado 15.5 km do percurso total do primeiro dia, podíamos nos permitir um pequeno descanso antes de prosseguir a caminhada, que tinha ainda 5 km pela frente até o ponto de pernoite. A trilha seguiu com uma ligeira descida pelo pequeno vale por onde desce um dos córregos que nascem na própria Flona e abastecem a bacia do Descoberto. A Floresta Nacional abriga nascentes de quatro rios que ajudam a encher o reservatório do Descoberto, responsável por 60% do abastecimento de todo Distrito Federal.
Cruzamos o rio e o acompanhamos por cerca de 1 km em meio à frondosa mata de galeria. Há inclusive um agradável ponto de banho, mas eu só pensava em chegar ao camping e deixar desabar o peso da mochila cargueira no chão, então prossegui inabalável rumo à linha de chegada. A reta final do primeiro dia da travessia é feita em uma estrada de terra e, quando o cansaço já é inevitável, o percurso nos oferece um último desafio com um raro momento de subida. Em uma caminhada no Planalto Central, a dificuldade não está no sobe e desce, mas sim na quilometragem (feita com peso nas costas).
Quando cheguei no ponto conhecido como Bica de Lata, por volta das 16h, comemorei a conclusão dos 20 km reservados ao primeiro dia da Trilha Sucupira. Com alívio me livrei da mochila e parti para a Bica, uma pequena cachoeira abastecida com água vinda direto da fonte. Uma pequena plataforma de madeira permite que, um de cada vez, as pessoas possam usufruir da Bica. Entre banhar e beber, me revigoro com as águas limpas e geladas da queda d’água.
Com o corpo agradecido pela ducha, volto minha atenção ao camping. O ponto de pernoite ainda não é oficial, segundo Geraldo, gestor da Flona, o acampamento definitivo será em outro local e este será apenas um ponto de apoio ao caminhante, como indica a instalação do banheiro seco e de duas longas mesas de madeira.
Enquanto conversamos, descansamos as pernas e montamos nossas barracas, o sol se põe e o céu ganha infinitas tonalidades até se recobrir com o manto escuro da noite. No horizonte, em disputa ou dueto com as estrelas e a lua crescente, está a cidade iluminada. Mais uma vez, veio a percepção quase conflitante de que estávamos no meio de Brasília. A alguns quilômetros dali talvez algum ministro estivesse prestes a assinar um projeto – ou uma delação – o que talvez seja mais provável no nosso cenário político.
Gabinetes à parte, no acampamento todos os voluntários comemoravam o sucesso do projeto Flona. Na fala de cada um era possível notar o sentimento apaixonado e orgulhoso de quem doou seu tempo e seu dinheiro para fazer aquilo acontecer. João contabilizou: foram mais de 4 mil horas de trabalho e aproximadamente 4 mil reais desembolsados pelos voluntários do Grupo de Caminhadas Brasília para fazer as placas, comprar as tintas, enfim, fazer nascer os Caminhos da Flona. Uma voluntária define “Não é o que a gente dá, é o que a gente recebe”.
“Não tem um prego do ICMBio. Tudo veio do voluntariado. Nós apoiamos apenas com a viatura e as horas de trabalho dos servidores”, ressalta o gestor com a gratidão de quem sabe que ganhou o maior aliado possível para a área protegida: a sociedade.
Ao menos durante a travessia, o clima também foi um aliado. Esperou todos montarem suas barracas, jantarem e se recolherem para então desabar uma pesada chuva que testou a real impermeabilidade das barracas.
No amanhecer do dia seguinte, sobrou da chuva apenas o solo úmido e as gotas no exterior das tendas. Apesar do dia ainda nublado, o tempo estava a nosso favor. Às 9 horas da manhã, já estávamos com o pé de novo na trilha, para garantir que iríamos manter nossa impermeabilidade até o final da caminhada.
O percurso cruza a Bica de Lata e segue em uma rota compartilhada com os ciclistas, afinal, a Flona também é deles. E dos corredores de montanhas que em grupos ou solitários nos ultrapassam facilmente ao longo do dia, num ritmo que seríamos incapazes de manter com as mochilas cargueiras nas costas.
Passamos pela Geladeira, ponto por onde passa o Ribeirão das Pedras, outro dos córregos que comprovam a importância hídrica da Flona e de lá enfrentamos uma subida que nos levou de volta ao cerradão. Morro acima, é possível ver o paredão de árvores que marcam o talhão do eucaliptal, que se estende como uma fronteira exótica atrás e à frente em contraste com a vegetação rasteira e arbustiva da savana nativa, que sobrevive espremida no meio.
Menos de 1 km depois voltamos ao dossel do invasor soberano e, análogo à metáfora de invasão, entramos no que seria um campo de batalha com troncos nus, finos, sem folhas e sem galhos. A aparência dos eucaliptos rendeu a este trecho o apelido de Paliteiro, uma zona mista de árvores mortas e recém-nascidas ainda sem folhagem. O trecho é concomitante à Trilha Buriti, sinalizada por pegadas na cor azul, e na bifurcação entre ela e a Sucupira, escolho seguir alguns metros adiante para ver melhor esse cemitério de eucaliptos. No meio do caminho deste meu rápido desvio, passo por uma única caliandra (Calliandra dysantha), flor símbolo do Cerrado. Em flor, suas delicadas pétalas vermelhas contrastam com o cenário monocromático ao seu redor como se fosse a prova viva de que o Cerrado ainda pode florescer por aqui.
De volta à Sucupira, seguimos por 800 metros até uma estrada de terra, por onde segue a travessia. Segundo João, a expectativa é futuramente colocar todo o percurso dentro da mata para melhorar a experiência da caminhada. Por enquanto, nossa rota é pela estrada mesmo, com a cidade à nossa direita mostrando que estávamos no limite da Flona.
Da estrada ampla entramos em uma menor, já tomada pela vegetação e bloqueada por alguns eucaliptos caídos que se tornam pequenos obstáculos aos caminhantes. Pernas por cima, agachamentos por baixo, nada que impeça nossa passagem tranquila. Percorremos 1.2 km até voltarmos para a estrada principal, pela qual a trilha segue pelos próximos 3.3 km. Caminhar em uma via larga tem suas vantagens práticas, mas não se compara ao sentimento prazeroso de andar mata adentro. Foi com alegria, portanto, que segui as pegadas amarelas quando elas saíram do leito de terra batida e indicaram o caminho por dentro da floresta de pinheiros.
Os pinus possuem uma dispersão muito mais agressiva do que o eucalipto e sua presença não admite concorrência arbórea. O alinhamento retilíneo e perfeitamente espaçado entre as árvores revela a mão do homem por detrás do plantio daquela pequena floresta com ares de bosque europeu. Independente dos valores ecológicos, a beleza da floresta é inquestionável e nos confere sombra e frescor para aplacar o calor, esse sim tipicamente brasileiro.
Nesse talhão de pinheiro estão alguns dos atrativos recém-instalados da Flona: um espaço de meditação, um redário e uma área de teatro ao ar livre, que recebeu o nome Marielle Franco, em homenagem à vereadora estadual assassinada no Rio de Janeiro em março de 2018.
Saímos da aura mágica do bosque para um curto trecho de Cerrado, seguido por uma mata de galeria no ribeirão Currais, uma amostra em apenas 2 km da rica diversidade de cenários florestais que podem ser vistos na Flona. E assim, depois de aproximadamente 4 horas de caminhada, concluímos nossa travessia do lado da sede, a poucos metros de onde havíamos iniciado a jornada no dia anterior. As pegadas amarelas haviam terminado, mas as dos voluntários – tenho certeza – estão apenas começando.
Trilha Sucupira
Onde: Floresta Nacional de Brasília (DF)
Distância: 36 quilômetros
Pernoite? Sim. O pernoite é feito em acampamento dentro da própria Flona, mediante agendamento prévio.
Por Por Duda Menegassi/O ECO
Comunicação ICMBio
(61) 2028-9280