Iniciativa pioneira busca exterminar espécie invasora, que coloca em risco a reprodução de aves marinhas.
Ramilla Rodrigues
ramilla.rodrigues@icmbio.gov.br
Os ratos estão conosco desde quando os humanos deixaram de ser nômades e começaram a estocar alimentos. Silenciosos e sorrateiros, eles conseguiram aproveitar cada migalha que deixamos para trás. Hoje, são um dos mamíferos com maior distribuição do mundo, graças à sua versatilidade e capacidade de se adaptar a vários ambientes e alimentação.
Na Idade Média, o rato-preto (Rattus rattus) deixou seu nome na história da humanidade ao ser um dos protagonistas de uma das maiores pandemias já vistas sobre a terra. Entre os séculos XIV e XVII, a peste bubônica (conhecida como peste negra) foi responsável pela morte de um 1/3 da população europeia. As pulgas do rato-preto eram portadoras da bactéria Yersinia pestis, que transmitiam a moléstia. Ao longo da história, os animais também foram relacionados a outras zoonoses, como o tifo e a toxoplasmose.
O pequenino acompanhou os primeiros navegadores que desbravaram o novo mundo vindos como clandestinos nos navios e caravelas. Eles se espalharam não só por novos continentes, mas também Ilhas Oceânicas. Mesmos as desabitadas também foram infestadas. É o caso do Arquipélago de Fernando de Noronha. O conhecido berçário de aves marinhas e de uma beleza cênica ímpar enfrenta desafios históricos com a presença de espécies exóticas e invasoras que colocam em risco o habitat de espécies nativas e endêmicas.
Os ratos que se estabeleceram em Fernando de Noronha encontraram ampla oferta de comida ao invadir ninhos de aves marítimas em busca de ovos e filhotes indefesos. Aves como o atobá-marrom, o atobá-mascarado e as ameaçadas atobá-do-pé-vermelho, rabo-de-junco e cocoruta são as principais vítimas dos ratos.
Apesar de estar em todos os lugares, especialmente nos que possuem ocupação humana, havia um número alarmante de ratos na Ilha do Meio. É um local relativamente pequeno – com área total de 16 hectares, e, apesar de relativamente próxima à Ilha principal, é de difícil acesso. Não possui habitantes.
“É aceito que a espécie tenha chegado ao arquipélago de Fernando de Noronha já nas primeiras viagens de reconhecimento e exploração da costa brasileira, trazido pelos navios portugueses e de outras nacionalidades europeias. Ratos não são grandes nadadores, mas algumas espécies podem realizar percursos de alguns quilômetros e o rato-preto pode nadar distâncias de até 500 m”, informa o professor do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília (UnB) Jader Marinho-Filho. Especula-se também que os animais possam ter chegado à Ilha “de carona” em materiais embarcados no local. No caso da Ilha do Meio, os animais podem ter atravessado nadando, dadas as curtas distâncias de outros territórios habitados.
“Os pesquisadores nos alertavam da grande quantidade desses animais quando iam fazer trabalhos de campo”, lembra o chefe da unidade, Felipe Mendonça. A ação foi fruto das discussões no I Encontro de Pesquisa de Fernando de Noronha, realizado em setembro de 2015, com apoio da Diretoria de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade (DIBIO) e do WWF. A partir daí, tomou corpo um projeto que une ICMBio, WWF e o Instituto Brasileiro para Medicina da Conservação – Tríade. O WWF foi responsável pelo aporte financeiro enquanto os outros dois ficaram com o planejamento técnico de como iriam exterminar os ratos de vez da Ilha do Meio.
A primeira etapa foi dimensionar o tamanho do problema. Os pesquisadores espalharam armadilhas para capturar e definir a população de animais na Ilha do Meio. O resultado foi estarrecedor. Foram estimados de 12 a 14 mil indivíduos, quase mil por metro quadrado, uma densidade muito elevada para qualquer ambiente no mundo. Nesta etapa, os pesquisadores também trabalharam na logística para estimar quantas e onde seriam colocadas as armadilhas, a fim de capturar o máximo de ratos que fosse possível.
Foram quatro expedições para espalhar as iscas pela ilha. A equipe utilizou um alimento semelhante a ração de coelho misturado com brodifacoum, que funciona como anticoagulante específico para ratos. O veneno leva à morte por hemorragia interna após poucos dias de consumo e é utilizado em outras ilhas pelo mundo para esta finalidade. “Como não existem outros roedores, não houve impacto para outras espécies”, esclarece Mendonça. Em casos como esses, o veneno se mostra uma alternativa mais eficaz. “Embora haja outras técnicas de controle, estas são menos eficazes e mais dispendiosas”, esclarece o professor Marinho-Filho.
Os últimos meses foram destinados ao monitoramento da ação e os resultados agradaram os pesquisadores. “Embora seja cedo para falar de erradicação, nas duas etapas de expedições nenhum rato foi encontrado pelas equipes, o que diz que estamos no caminho certo”, comemora Mendonça.
“Esta tendência não foi observada na Ilha Rata, que serviu de área controle da ação realizada na ilha do meio, indicando novamente que o aumento da população de aves pode estar relacionado à redução da predação de ovos e filhotes por ratos”, destaca a analista ambiental do ICMBio, Thayná Mello, integrante da equipe de manejo. Thayná ainda destaca outro fato: indiretamente a eliminação de ratos e o consequente aumento de aves marinhas contribui para o processo de fertilização promovida pelo guano produzida pelas aves marinhas.
Este monitoramento está sendo feito com a instalação de blocos parafinados de brodifacum espalhados por toda a ilha. “Será especialmente importante durante a estação seca na ilha, quando a oferta de alimento diminui e a detectabilidade dos roedores aumenta”, ressalta Thayná.
A Ilha do Meio foi uma espécie de teste para o emprego desta metodologia, já que o local é relativamente pequeno e não possui muitas variáveis. O passo seguinte é levar o método para a Ilha da Rata. “É um local mais complexo que a Ilha do Meio, com um ambiente mais diverso e mais variáveis envolvidas”, conta Mendonça. A experiência em Fernando de Noronha também pode servir de modelos para outras ilhas oceânicas. “Nesta última expedição tivemos a visita de um técnico de Abrolhos, para trocar experiências e subsidiar o planejamento da desratização lá também”, conta Thayná.
Invasores do paraíso
Chama-se de espécie exótica um animal ou planta que não pertence a um bioma e que é introduzido por acidente, propositalmente ou ainda animais e plantas que acompanham seres humanos nas áreas de ocupação. Na história da humanidade, foi relativamente comum que espécies sejam transportados de uma região para a outra, principalmente, com motivos comerciais.
Uma espécie exótica se torna invasora quando ela inviabiliza a manutenção de outras espécies nativas. Fatores como dieta flexível, rápida maturação sexual, capacidade de gerar vários filhotes por ninhada, ausência de predadores ajudam uma espécie exótica se fixar a um local. Assim, elas podem competir com espécie nativas ou até mesmo predá-las, provocando a mudança ou dispersão e até mesmo a extinção. O risco é tão grande que estudos apontam que as espécies invasoras são o segundo maior risco à biodiversidade, atrás apenas das mudanças climáticas.
Essas características ajudaram os ratos, pois, uma vez que colocaram as patinhas na ilha, começaram a se multiplicar. O rato-preto possui uma gestação que dura entre 21 e 29 dias e as fêmea podem ter até 6 ninhadas por ano, cada uma com 6 a 12 filhotes. A maturação sexual também ocorre rapidamente, entre 3 a 5 meses de idade.
Sua dieta também é altamente diversificada: podem comer legumes, frutas, grãos e, no caso de Fernando de Noronha, os ratos conseguem um banquete rápido e fácil já que as aves costumam colocar seus ninhos ao nível do solo.
Além dos ratos, a Ilha enfrenta problemas com os gatos domésticos, ratazanas, teiús, garças-vaqueiras, camundongos e mocós. Os felinos, assim como os ratos, também possuem rápida maturação sexual (aos cinco meses, fêmeas já entram no cio) e podem ter vários filhotes de uma vez. Um levantamento feito pelo Instituto Smithsonian e pelo Departamento de Pesca e Vida Selvagem nos EUA indica que o número de aves e mamíferos caçados por gatos domésticos todos os anos está na casa dos bilhões. Mas já foi constatado que a esterilização de 70% da população de fêmeas pode reduzir drasticamente uma população de felinos, em especial, os chamados ferais.
O lagarto teiú foi introduzido em 1950 na Ilha como forma de controle para sapos e ratos, mas virou uma grande dor de cabeça, pois os teiús possuem hábitos diurnos, ao contrário dos ratos e sapos. Os teiús não só não foram eficazes no combate, mas como se juntaram à lista de espécie invasoras do arquipélago ao predar ovos de aves e tartarugas. Em 2015, o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Anfíbios (RAN/ICMBio) publicou boletim com o impacto desta espécie. O artigo aponta que aproximadamente 8 mil teiús vivem no Arquipélago e podem transmitir patógenos para espécies endêmicas como a mabuia-de-noronha e amphisbaena-de-noronha.
Comunicação ICMBio
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