Anais do Colóquio
O mundo vive hoje uma das maiores crises sanitárias da história da humanidade. Apesar de todo o progresso tecnológico que se alcançou, o número de vidas humanas que se perderam (e que continuam a perder-se) para as doenças direta ou indiretamente associadas à pandemia do COVID-19 só aumenta diariamente, em escala crescente variável, mas sempre trágica.
Chamada a posicionar-se, a Filosofia, cuja vocação histórica tem sido, com poucas mas importantes exceções, o conceitual e o universal, carece de acervo suficiente de reflexões específicas sobre eventos de desastre. Uma dessas exceções, muito famosa, foi o Terremoto de Lisboa em 1755, que suscitou debates filosóficos a respeito de suas causas, de sua conciliação com a bondade divina e de nossa posição na multiplicidade dos mundos possíveis, melhores ou piores, de que tomaram parte pensadores como Immanuel Kant, na esteira das contribuições de Voltaire e Jean Jacques Rousseau.
As milhões de vítimas fatais e de vítimas cotidianas das experiências de sofrimento, da exposição ao risco sanitário, da asfixia do sistema de saúde e do desemprego e fome impõem fazer da pandemia um tema privilegiado de reflexão, crítica e discussão. É muito intensa e dolorosa a nossa experiência coletiva, à luz de tudo que testemunhamos e aprendemos a partir do início de 2020.
Em 12 de abril de 2020, Jürgen Habermas concedeu entrevista ao jornal francês Le Monde em que abordou questões filosóficas importantes a partir da pandemia de COVID-19. Habermas enfatizou que eventos catastróficos como uma pandemia obrigam os seres humanos a considerar com seriedade e posicionar-se com responsabilidade perante questões sanitárias, políticas e jurídicas, geralmente restritas aos respectivos círculos de especialistas.
Todos precisam refletir sobre a melhor conduta e tomar decisões com a presença de uma doença infecciosa de grande contágio e letalidade no espaço social. Todos precisamos encontrar formas de zelar pela proteção da vida humana, inclusive em situações que entram em conflito com os interesses econômicos, tanto dos agentes políticos individuais que debatem na esfera pública, quanto das grandes corporações capitalistas que procuram sobrepor-se ao debate democrático.
O Estado de direito não está autorizado, afirma Habermas, a tomar decisões que resultem diretamente na morte dos cidadãos sob sua proteção. Governos responsáveis devem, em tese, adotar todas as medidas necessárias para preservar o maior número de vidas. Na prática, contudo, presencia-se cotidianamente que nem todos os governos e burocracias estão comprometidos, para além da retórica protocolar, com os princípios fundamentais do Estado de direito, entre os quais o princípio da dignidade humana.
Habermas indica que não apenas as autoridades políticas, mas também as pessoas comuns se encontram diante da importante decisão de respeitar as regras sanitárias ou não, seja por interesses econômicos (em alguns casos por necessidade extrema, pela pobreza), seja por convicções ideológicas (como os negacionistas). A não obediência às regras sanitárias, incluindo o isolamento social, acarreta consequências generalizadas, muitas vezes fatais e massivas, que tornam essas decisões mais graves e relevantes. Assim, aumenta o número de infectados e se cria enorme pressão sobre o sistema de saúde. Impõem-se escolhas de vida ou morte por médicos em função da forte demanda sobre recursos escassos, como leitos de terapia intensiva e equipamentos de suporte respiratório.
A persistência da priorização dos imperativos sistêmicos do dinheiro e do poder no debate em torno da pandemia evidencia que vivemos numa sociedade carregada de patologias, as quais neste contexto se tornam mais salientes. Embora a pandemia atual venha causando doenças e óbitos de pessoas de diferentes estratos sociais, os efeitos de morte, sofrimento, privação e exposição são, como sempre, mais intensos entre os mais pobres.
É a partir deste panorama que Habermas destaca na citada entrevista: “A solidariedade é a única solução”. É nas pegadas desta sugestão de Habermas que se justifica a escolha do tema central do XVII Colóquio Habermas e do VIII Colóquio de Filosofia da Informação, realizado entre 14 e 16 setembro de 2021: “Patologias da razão e direitos sociais durante a Pandemia”.
Embora, como costuma ocorrer todos os anos, os eventos recebem com alegria contribuições diversas a partir da obra de Habermas e de outros importantes pensadores críticos (em especial, neste ano, as contribuições sobre a teoria da justiça de John Rawls, dado o aniversário de sua obra principal), gostaríamos que o espaço de discussão dos eventos servisse para reflexão qualificada e coletiva sobre as causas e consequências econômicas, sociais e ambientais da pandemia.
É necessário investigar e discutir as responsabilidades (e os meios de sobrevivência) de Estados, mercados e cidadãos para controlar a disseminação da doença e reduzir os seus danos. Deve-se discutir e avaliar profundamente os obstáculos que os imperativos do dinheiro e do poder, especialmente na forma atual do capitalismo neoliberal, representam para a proteção da vida e do trabalho e a preservação da dignidade no quadro excepcional da pandemia.
Cabe destacar o papel da esfera pública e de filósofos e cientistas como intelectuais públicos no combate à desinformação e ao negacionismo e na orientação sobre formas de enfrentamento coletivo e solidário dos desafios locais e globais da tragédia sanitária. Cabe-lhes também discutir o papel que direitos e políticas sociais, especialmente aqueles voltados para grupos sociais mais vulneráveis, podem e devem desempenhar para aliviar ou superar os efeitos das patologias sociais emergentes ou agravadas pela pandemia.
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03 de novembro de 2021.
André Luiz Souza Coelho
Charles Feldhaus Clóvis
Ricardo Montenegro de Lima