Revista Brasileira
para Cegos
Edição Especial:
Nossos Poetas II
-- 2019 --
Ministério da Educação
Instituto Benjamin Constant
Publicação Trimestral de
Informação e Cultura
Editada e Impressa na
Divisão de Imprensa Braille
Fundada em 1942 pelo
Prof. José Espínola Veiga
Av. Pasteur, 350/368
Urca -- Rio de Janeiro-RJ
CEP: 22290-250
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Livros Impressos em
Braille: uma Questão
de Direito
Governo Federal: Pátria
Amada Brasil
Diretor-Geral do IBC
João Ricardo Melo
Figueiredo
Comissão Editorial: Geni
Pinto de Abreu, Heverton de
Souza Bezerra da Silva,
Hyléa de Camargo Vale
Fernandes Lima, João
Batista Alvarenga, Maria
Cecília Guimarães Coelho e
Rachel Ventura Espinheira.
Colaboração: Carla Maria
de Souza, Daniele de
Souza Pereira e Regina
Celia Caropreso.
Revisão: Carla Dawidman.
Transcrição autorizada
pela alínea *d*, inciso I,
art. 46, da Lei n.o 9.610,
de 19/02/1998.
Distribuição gratuita.
¨ I
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¨ III
Revista Brasileira para Cegos / MEC/Instituto Benjamin Constant. Divisão de Imprensa Braille. n.o 1 (1942)
--. Rio de Janeiro : Divisão de Imprensa Braille, 1942 --. V.
Trimestral
Impressão em braille
ISSN 2595-1009
1. Informação -- Acesso. 2. Pessoa cega. 3. Cultura -- Cego. 4. Revista – Periódico. I. Revista Brasileira para Cegos. II.
Ministério da Educação. III. Instituto Benjamin Constant.
CDD-003.#edjahga
Bibliotecário -- Edilmar Alcantara dos S. Junior -- CRB/7 6872
¨ V
Sumário
Apresentação :::::::::::: 1
Antônio Carlos
Hildebrandt -- *in
memoriam*
Confissão ::::::::::::::: 2
Jura de amor
eterno ::::::::::::::::: 4
Augusto José Ribeiro --
*in memoriam*
Explicação :::::::::::::: 5
O ninho ::::::::::::::::: 6
Zaíra ::::::::::::::::::: 7
Ary Rodrigues da Silva
Abraçoneto :::::::::::::: 9
Males necessários ::::::: 10
Promessa :::::::::::::::: 11
Sucessão :::::::::::::::: 13
Celso Cosme das Chagas
Silva
A chave ::::::::::::::::: 16
Gosto de tudo em
você ::::::::::::::::::: 17
Nada me abala ::::::::::: 18
Climério da Silva
Rangel Jr.
Depois do carnaval :::::: 19
Lógico sem nexo ::::::::: 20
Panorama geral :::::::::: 20
Eduardo Ventura
Com todo amor ::::::::::: 22
Quero ver você
agora :::::::::::::::::: 22
Francisco Ferreira da
Silva
Desalento ::::::::::::::: 23
Gabriel dos Santos --
*in memoriam*
Delírio ::::::::::::::::: 25
Minha história :::::::::: 26
Glauco Cerejo
Na curva do tempo ::::::: 27
¨ VII
Inês Helena
Eterno cantar ::::::::::: 30
Sublime saudade ::::::::: 31
João Batista Alvarenga
Dona Dorina :::::::::::: 32
Irmãos no mundo ::::::::: 34
Paradoxo :::::::::::::::: 36
Vida :::::::::::::::::::: 37
José Walter de
Figueiredo
Bendito seja :::::::::::: 38
Ei você ::::::::::::::::: 40
Ilusão sem ilusão ::::::: 41
Meu mundo ::::::::::::::: 42
Para dores do
Indaiá :::::::::::::::: 44
Leniro Alves
Cinzas :::::::::::::::::: 45
Livre tradução :::::::::: 47
Medida :::::::::::::::::: 48
Retrato ::::::::::::::::: 50
Manoel Alves Guirra
A porta ::::::::::::::::: 52
Marli ::::::::::::::::::: 53
Maria da Trindade
Rebouças -- *in
memoriam*
Compensação ::::::::::::: 55
Exaltação à Urca ::::::: 57
Primeira mulher ::::::::: 58
Mayá Devi de Oliveira
-- *in memoriam*
Ironia dos sonhos ::::::: 60
Neyde Raymunda
Do tempo :::::::::::::::: 61
Pedro Olímpio -- *in
memoriam*
Quase madrugada ::::::::: 63
Apresentação
Os leitores gostaram, pediram mais e nós atendemos. *Nossos poetas II* vem trazendo novos textos de pessoas cegas, principalmente
aqueles que nunca se preocuparam em publicar, mas que têm tanta coisa boa a nos oferecer.
Desta vez, porém, incluímos na publicação três presentes deixados por José Augusto Ribeiro, um por Mayá Devi de Oliveira e quatro
pérolas do nosso Ary Rodrigues, ao contrário do que foi feito no primeiro volume de *Nossos Poetas*.
O mundo precisa tornar-se um lugar mais poético, onde nossos sentimentos tenham mais espaço. Esperamos que esta publicação ajude
você, leitor, a refletir sobre vários temas, reencontrar amigos através da leitura, aumentar seu gosto pelo texto em verso, enfim,
que ele lhe traga muitos momentos agradáveis.
Se você gostar dos textos, reúna seus amigos, promova a divulgação deles em uma tarde de sarau agradável como se fazia antigamente,
mostre a todo mundo como é gostoso ler e conhecer autores novos que falam de coisas, por vezes, sentidas por todos nós.
Curta muito esta publicação e viaje com ela.
Boa leitura!
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Antônio Carlos Hildebrandt
-- *in memoriam*
Confissão
Eu confesso que nunca te sonhara
porque não cria que pudesses ser.
Por isso, quando me surgiste, inédita,
devo dizer-te que fiquei *atônito*.
Eras distinta de todos os seres
que a vida colocara em meu caminho.
Mas, mesmo assim, te amei como o impossível
que *inusitadamente* fez-se real.
Desde então meu viver é compreender-te,
é *perscrutar* teus *sítios* mais secretos,
é visitar teus sonhos, teus anseios,
teus medos tuas *idiossincrasias*.
Não te sei traduzir inteiramente.
Porém, o amor não se traduz, intui-se!
Vocabulário
Atônito: adj. Tomado de grande admiração.
Idiossincrasia: s. f. Particularidade comportamental.
Inusitadamente: adv. De modo incomum.
Perscrutar: v. Procurar saber, descobrir.
Sítios: s. m. Locais.
::::::::::::::::::::::::
Jura de amor eterno
Se algum dia perceber
a minha ausência ao seu lado,
se afaste dela correndo
e chame a minha presença
de volta ao lugar que é seu.
No entanto, se acontecer
de tudo, enfim, dar errado,
fique, desde já, sabendo,
seja qual for sua crença,
que o meu amor não morreu.
Ele é tão eternidade
quanto o tempo que não para
e quanto o espaço infinito,
onde os astros vão brincando
eternamente de roda.
Ele é feito da verdade
abundantemente rara
da jura em que eu acredito:
enquanto houver onde e quando,
amo você sempre e toda!
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Augusto José Ribeiro -- *in
memoriam*
Explicação
Aqui tens o teu soneto.
Chegou com grande demora,
Mas se permites, prometo,
O "porquê" dizer-te agora.
Em sua forma primeira,
Estes versos eram pobres,
Feitos a toda carreira
Com certas ideias nobres.
E tu querias achá-los
Tais e quais eu escrevi;
Mas eu buscava trocá-los,
Porque os erros conheci.
::::::::::::::::::::::::
O ninho
Eu vi, por entre a ramagem,
Como suspenso no ar,
Um ninho, mimoso berço,
Que a brisa vem balançar!
Eu tive desejo, tive
De alcançar o leve ninho,
Pra tirar de dentro dele
Os ovos do passarinho.
Mas pensei; e a tempo ainda,
Me lembrei que na verdade,
Satisfazer meu desejo,
Seria grande maldade!
Que seria da avezinha
Que um ninho tão belo fez?
Na tristeza da saudade,
Talvez morresse, talvez...
Pensei, e por fim eu disse:
-- Passarinho, passarinho,
Cria teus filhos mimosos
No berço desse teu ninho!
Ensina-lhes teus gorjeios,
E um dia, cantando amor,
Seus ninhos, suspendam eles
Também aos ramos em flor.
::::::::::::::::::::::::
Zaíra
Eu gosto das crianças. O sorriso
De uma boca infantil, pura, inocente,
Na vida trabalhosa é para a gente,
Um *refrigério*, às vezes tão preciso!
Faço às vezes do mundo tal juízo
Que desanimo e torno-me descrente;
Mas surge uma criança em minha frente,
E então eu sinto perto o paraíso!
Bem hajas tu, que arrancas o poeta
Ao sombrio pensar d'alma inquieta,
Oásis desta vida na aridez!
De teus pais sê encantos e alegria,
E eles que te digam algum dia:
"Olha, Zaíra, os versos que ele fez!"
Vocabulário
Refrigério: s. m. Alívio, conforto.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Ary Rodrigues da Silva
Abraçoneto
Nesta manhã de luz e alegria
Que exibe o esplendor da primavera,
Com a emoção de uma afeição sincera,
Te abraço com os braços da poesia.
Nesta manhã de sonho e euforia,
Do verdadeiro amor a atmosfera,
Tua beleza de mulher impera
Resplandecendo mais que o próprio dia!
O teu sorriso é luz inigualável;
Emana de uma fonte inesgotável,
Fonte que eu peço a Deus pra conservar
Para que, até meu derradeiro instante,
Eu possa, deslumbrado e radiante,
Feliz como agora te abraçar!
::::::::::::::::::::::::
Males necessários
Estranhas luzes que brilham,
Sedutoras e fatais,
Guiando tolos que trilham
Caminhos sempre iguais;
Tolos que se maravilham
Com as visões irreais
Que nos sonhos se empilham...
Sonhos que a vida desfaz.
Mostram visões encantadas,
Quase sempre transformadas
Em frustração, pranto e dor,
Mas, infelizes vivemos,
Se em nossas vidas não temos
Os brilhos do ouro e do amor.
::::::::::::::::::::::::
Promessa
Quando estivermos juntos finalmente
E, assim, eu me livrar da solidão;
Quando, no auge da paixão ardente
Pulsar mais forte o meu coração;
Quando eu escutar tua voz quente
Fazendo-me a sonhada confissão
Deste amor que, ansiosamente,
Espero qual faminto espera o pão,
Os nossos corações enternecidos
Hão de cantar, pulsando sempre unidos,
O nosso amor em *mavioso* dueto!
E, entre os instantes de plena ventura,
Eternizando esta afeição tão pura,
Escreverei, meu bem, nosso soneto.
Vocabulário
Mavioso: adj. Doce, suave, harmonioso.
::::::::::::::::::::::::
Sucessão
Brilha a inocência no olhar de Margarida!
Quanta ternura no seu modo de brincar,
Neste momento de ternura em que a vida
Mostra a criança, flor que vai desabrochar
Porém o brilho da inocência, se apagando,
Irá deixar um novo brilho em seu lugar.
Brilham os sonhos no olhar de Margarida!
Que encantamento no que vive a sonhar,
Neste momento de ternura em que a vida
Mostra a mulher, botão de flor, a *vicejar*!
Porém os sonhos, um a um, se desvendando,
Irão deixar um novo brilho em seu lugar.
Brilha a paixão no ardente olhar de Margarida!
Quanta magia no seu jeito de amar,
Neste momento de delírio em que a vida
Mostra a mulher no apogeu do fascinar.
Porém o brilho da paixão, se apagando,
Irá deixar um novo brilho em seu lugar.
Brilha a saudade no olhar de Margarida!
Quanta tristeza no que vive a recordar,
Neste momento doloroso em que a vida
Não deixa, ao menos, o direito de sonhar,
Porque o brilho da saudade, se apagando,
Fará talvez a própria vida se apagar.
Já não há brilho no olhar de Margarida...
Quanta amargura nos que sempre a vão lembrar.
A cada instante, uma lágrima caída
Parece que seu brilho quer reavivar
Enquanto longe, uma nova Margarida
Mostra o brilho da inocência no olhar.
Vocabulário
Vicejar: v. Viçar, florir.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Celso Cosme das Chagas
Silva
A chave
Por que é que eu estou aqui parado
No meio de tanta gente que passa
Sem sequer olhar pra trás?
Preciso sair depressa daqui
E esperar o próximo trem
Que não tarda a chegar
Por que é que eu estou aqui parado
Se as noites são tão frias
E não vejo nenhuma estrela
Cintilando no céu?
Preciso encontrar a chave
Da porta deste horizonte
Perdida aí pelo chão
Para sair depressa daqui de onde estou
Antes que tudo se acabe.
::::::::::::::::::::::::
Gosto de tudo em você
Gosto quando você solta os cabelos
Gosto quando você pisa no chão
Gosto quando você fica zangada
E faz carinha de bicho papão
Gosto quando você se esconde no armário
Gosto quando você diz que é o meu neném
Gosto quando você acende o meu cigarro
Eu me amarro no jeitinho que você tem.
Acho que eu gosto de tudo em você
Só não consigo é dizer o quê.
::::::::::::::::::::::::
Nada me abala
Traçando uma reta em minha vida
Ao analisar calmamente os problemas
Cheguei a um Máximo Divisor Comum
E concluí que o amor é um sistema.
Comparei simetrias e tangentes
Determinantes, secantes e escala
E cheguei a uma bela conclusão
Que neste mundo nada me abala.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Climério da Silva Rangel
Jr.
Depois do carnaval
Depois do carnaval nós dois,
a porta entreaberta,
o corredor e a sala.
E a gente se dá e se recebe,
se sente e se percebe,
depois se cala.
Três dias, uma corrente quebrada
um turbilhão de samba,
uma roda de bamba e mais nada.
E a gente se chora e se perdoa
jurando que a vida é boa;
mas, agora é tarde,
eu vou me embora;
amanhã eu volto apaixonado.
Um beijo por despedida
e a vida se vai naturalmente.
::::::::::::::::::::::::
Lógico sem nexo
Você é tudo lógico sem nexo
é o brilho sem reflexo
é a minha confusão
é como terra firme com tremores
feito discos voadores
minha alucinação
você é como tudo inexplicável
como o dia inadiável de fazer não sei o que
você é a história do passado
o futuro esperado
o presente por viver.
::::::::::::::::::::::::
Panorama geral
A vida é sempre assim, é o mesmo sol,
a mesma luz, e o calor que se repete;
a mesma terra que se cultiva,
o mesmo amor que se cativa
e é sempre a mesma solidão.
A vida é sempre assim, a mesma história,
a mesma gente sem memória;
é a fuga infinda lá do norte
a busca enfim de nova sorte
nas terras verdes cá do sul,
a vida é sempre assim.
E se mudasse!
e se a sede, e se a fome se acabasse,
e se o mundo fosse bom
mas, bom sem dono,
e se a gente sentindo o mesmo sono
tivesse o mesmo leito pra dormir;
a vida é sempre assim:
o mesmo rio, o mesmo calor, o mesmo frio;
a mesma gente mas com outra fantasia.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Eduardo Ventura
Com todo amor
Adoro muito minha namorada
Ela é todo meu amor
Todo dia quando posso
Levo pra ela uma flor
Eu estou sempre com ela
E sem ela vivo sozinho
A minha maior alegria
É lhe dar o meu carinho
Todo dia vou passear
Na rua onde ela mora
E me encontro com ela
Sempre na mesma hora
Eu escrevo para ela
Várias cartas amorosas
Ela corre pra janela
E me espera toda prosa
::::::::::::::::::::::::
Quero ver você agora
Quero ver você agora
Meu grande amor
Quero ver você agora
Para lhe dar uma flor
Meu bem, você é linda
Linda, linda de morrer
Espero nunca em minha vida
Nunca, nunca lhe perder
Espero que nunca me deixes
Porque sempre te amarei
Vamos dançar uma música
Para ti eu cantarei
Você me pediu um beijo
Eu disse agora, não
Não gostaria de te beijar
Na frente do teu irmão
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Francisco Ferreira da Silva
Desalento
Mais uma noite, mais uma insônia
Chamo por teu nome, onde estás?
O silêncio me envolve em teu semblante
Lindo como só eu sei olhar
Mais um cigarro,
Em breve, mais um amanhecer
Segunda-feira, preciso ler
Te espero na incerteza e na angústia
Vejo que não vens
Procuro
e o telefone está mudo
Não atende ninguém
Mais um dia se vai
Mais um dia se vem
Vem mais uma noite
E você não vem para mim
Com a noite, mais uma insônia
Chamo por teu nome
Mas o silêncio me diz
Que nada mudou
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Gabriel dos Santos -- *in
memoriam*
Delírio
Ah! como um rio deságua no mar
e um beija-flor procura o jardim
busquei você pra mim
ah! e eu morria de tédio
e eu delirava em febre
e era você o remédio.
E, te sonhei pelos mares,
te busquei pelos bares,
até que te encontrei.
Mas, era fogo de palha;
me queimei neste fogo,
perdi outra batalha.
Hoje só o meu violão
cala dor e traz vida
para o meu coração
e, quero lhe agradecer
pela paz que, perdida,
encontrei na canção
que agora ofereço a você.
::::::::::::::::::::::::
Minha história
E eu vinha tão cansado,
descrente, desconfiado
quando apareceu você
e de novo me fez crer
e o dia que pra mim
nunca mais tinha nascido,
no céu, se fez tão azul
quanto o azul do seu vestido.
E de novo me senti acobertado de glória
mas, agora já quer me contar outra história.
Acho que querem de vez
acabar com o meu amor
mas, Deus me livre,
esse prazer não dou.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Glauco Cerejo
Na curva do tempo
Nos encontramos justamente hoje, na curva do tempo
presos a uma frágil noção de espaço
Sem que pudéssemos, teu olhar horda fez-se um laço
De repente, em torno de nós, era o nada absoluto
Nem passado, nem futuro, só o presente a se desembrulhar...
Apenas os nossos olhos se tocavam
Apenas as nossas peles se falavam
Deste ponto infinito, jorrava a luz de um só vulto
Brilho de rubi, que radioso, luzia escondido
*devassando* os desejos mais ocultos
desnudando nossas almas atrevidas
E nesse *istmo* de tempo, nossa curva se alonga
Pelo espaço relativo, duas linhas seguem o fluxo
Duas cordas de viola a vibrar de energia
propagando-se em ondas, contrapondo melodias
Paralelas cadências de suspensão e repouso, tensão e relaxamento
em precisos movimentos, entretecem a trama da vida
fiando o dia, desfiando a noite...
arrojando-me ao açoite do silêncio de tua partida
Mas sei que a vela que ao longe o vento leva
descreverá sobre seu próprio eixo as curvas de teu corpo sedento
*volvendo* um dia, livre como ave, ao seio do seu ninho de nuvem
gravitando *perene*, na órbita do nosso infindo espaço tempo
Vocabulário
Devasar: v. Invadir, penetrar.
Istmo: s. m. (figurado) Espaço de tempo.
Perene: adj. Duradouro, eterno.
Volver: v. Retornar.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Inês Helena
Eterno cantar
Me entregou muitas sementes,
sorrindo, sereno, a falar:
"Vá sem medo pelos campos do universo, as espalhar;
em silêncio, confiante, pois todas elas vão brotar."
As primeiras semeei no jardim da minha infância;
e em pouco tempo colhi: Paciência, esperança.
E saí pelos caminhos, crescendo feliz a sonhar;
plantando ternura, meiguice,
colhendo saber e a cantar, as verdades que
aprendi, sem jamais me intimidar.
Quantas vezes tão cansada, precisando de alguém
pra falar da caminhada, para amparar-me talvez;
me senti abandonada, mesmo assim, não fracassei.
Este cantar é sincero, ouça o que ele tem a dizer:
Se tão grande é o sofrimento, bem mais forte é o querer.
Confiante, em paz espero, o eterno amanhecer,
sob uma árvore frondosa
que comigo, eu vi crescer;
é a mais verde de todas, por Deus, é a árvore da fé.
::::::::::::::::::::::::
Sublime saudade
Hoje eu vi a saudade, linda, vestida de branco;
conversando com a ternura
e nesse diálogo franco, falavam com muito carinho
de uma sublime criatura.
Nem tocaram no seu nome, mas na beleza que possuía.
E agora, o que fazer, se uma vontade imensa me consome,
de retroceder o tempo, pois o ser em evidência,
era aquela árvore, tão minha?
Não a esqueço, saudade!
Nem da surpresa sem graça que reservava-me a vida naquela tarde tão
linda, quando ao chegar no meu quintal,
tinham levado pra sempre, a minha eterna amiga.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
João Batista Alvarenga
Dona Dorina
(Acróstico dedicado à Professora Dorina Nowill; personalidade marcante e realizadora, ícone das pessoas cegas do Brasil!
-- *in memoriam*).
Dona do sonho de ver realizado,
o ideal que os cegos de todo o Brasil pudessem ler e escrever.
Rigor neste objetivo traçado,
incrível força a lhe empreender.
Novos e grandes desafios foram alcançados,
abertos os caminhos da cultura e do saber.
Na luta pelo Sistema Braille elevado,
orgulho de quem por ele pôde aprender,
*wonderful*: magnânima, tu tiveste sempre a teu lado,
incansáveis e fiéis companheiras, que fizeste por merecer.
Longevo é também o nosso amor por ti guardado,
ligando-nos ao teu honrado exemplo de querer!
::::::::::::::::::::::::
Irmãos no mundo
Quem é o meu irmão?
Quem está aqui ao meu lado,
ou quem mora lá no Japão?
Quem cresceu em meio a agrados,
ou quem só conheceu o não?
Quem mantém os ânimos acirrados
durante uma discussão,
ou quem é mais ponderado
e busca uma conclusão?
Quem tem o espírito armado,
alimentando a incompreensão,
ou quem disso já é apartado,
e se empenha pela união?
De quem eu sou irmão?
De quem eu puder ajudar,
tendo por ele gratidão.
Das pessoas que eu amar,
sendo elas como são.
De quem contra mim praticar
qualquer tipo de má ação,
porque é para modificar
em mim alguma imperfeição.
De quem eu conseguir relevar
a maledicência e então,
o pensamento elevar,
sinal de evolução.
Sei que falar é fácil,
e fazer é difícil.
Porém no dia a dia, subindo degrau por degrau,
a cada vez imprimindo esforço igual,
eu vou sentindo o difícil ficar um pouco mais fácil,
e a subida tornar-se menos difícil.
::::::::::::::::::::::::
Paradoxo
Homem cheio de tecnologia
e vazio de cortesia.
Homem cheio de fobias
e vazio de empatia.
Homem cheio de filosofias
e vazio de sabedoria.
Homem perdido, vadio.
Homem preenchido pelo vazio.
Homem com o mundo conectado,
porém distante de quem está ao lado.
Homem cheio de ansiedade,
sobrevivendo nesse "mar bravio".
Homem cheio apenas da própria verdade,
e na maioria das vezes muito hostil.
Homem cheio da falta de vontade,
de saber do outro qual é o vazio.
Homem cheio de vaidade,
dono de um destino sombrio.
Mas ele pode mudar!
Os maus pensamentos expurgar.
Se libertar!
Se harmonizar.
A cada dia, o seu interior transformar!
E o sabor da paz experimentar.
::::::::::::::::::::::::
Vida
Nascer,
crescer,
se desenvolver;
no dia a dia, tudo absorver.
É um eterno aprender,
um constante querer,
o necessário fazer,
do que se sabe, nada saber;
Eis aí o que é viver.
Nesta vida, o que temos?
O que com nossa vontade somamos.
De coração, o que oferecemos.
Aquilo a que não nos apegamos,
e aparentemente esquecemos.
Desta vida, o que levamos?
Os erros que reconhecemos.
O que concluído deixamos.
O desejo: que nos amemos!
O que para construir nos esforçamos.
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
José Walter de Figueiredo
Bendito seja
Bendita crise que me fez
Dar mais valor à paz do coração
Bendita mágoa que trouxe o perdão
Bendita espera que trouxe a minha vez
Bendita queda de Babel
Dando o cuidado pra eu não mais cair
Bendito amargo que me fez sentir
Toda doçura que me trouxe o mel
Bendita prova que me trouxe a dor
E a distância que trouxe a saudade
E a procura que trouxe a verdade
E a felicidade de enfim sentir o amor
Bendito seja o amor...
Bendito pranto que nasceu
Do grande orgulho que me derrubou
Trouxe a certeza de que nada sou
Pois nem o corpo que utilizo é meu
Bendito medo de sofrer
Que me deu forças pra me libertar
Trouxe a coragem pra eu poder lutar
E a vontade que me faz crescer
::::::::::::::::::::::::
Ei você
Ei você que vai passando
Com seus pés tudo esmagando
Sem pensar que no momento
Morrem uns e nascem outros
Para o mesmo sofrimento
Ei você, fale comigo
Eu preciso de um amigo
Marginal ou indigente
Não me importo com os defeitos
Só exijo duas coisas
Ser sincero e muito gente
Ah meu chapa, é de mais
Tanta gente sem ser gente
Tanto cego para ver
Tanto surdo para ouvir
E ninguém sem se entender
É preciso ter coragem
E mais que isso, muito amor
Me permita que lhe peça
Seja gente, gente à beça
Estando aqui ou onde for
::::::::::::::::::::::::
Ilusão sem ilusão
Pelas ruas mortas da vida
Você já passou, você já passou
Passou sem nada ver
Que tudo foi nada
Diante de tudo
Que havia pra ser
As gargalhadas sem graça
O palavrão em profusão
Mulheres despidas de corpo e de alma
Pelo vão das janelas
Em vão elas olham
Olhos tristes sem brilho
Brilham sem ver o que veem
¨
Por hoje chega
Amanhã tudo outra vez
Seu amanhã foi ontem
E ontem se foi sem amanhã
E outras virão
Mulheres iguais
Todinhas iguais
Pro nada de sempre
E pra sempre sem nada
::::::::::::::::::::::::
Meu mundo
Quando me envolvo no silêncio mais profundo
Tudo muda de repente, me deparo com meu mundo
Sou ao mesmo tempo a criança e o adulto
O juiz e o culpado cujo erro está oculto
Quantos descaminhos pra se caminhar
Quantos nós tão apertados pra se desatar
Quanto mar *encapelado* eu preciso navegar!
Mas tantos perigos não me fazem recuar
Vou em busca de mim mesmo pros mistérios decifrar
Como a águia sabe suas penas renovar
Eu também renovo as minhas pro meu voo continuar.
Vocabulário
Encapelado: adj. Agitado, enfurecido.
::::::::::::::::::::::::
Para Dores do Indaiá
Como é lindo se viver
Onde a brisa vem brincar
Onde a paz vem se esconder
Onde a lua vem brilhar
E o dia adormecer
E a noite vem velar
E o sol vem de manhã acordar
Passarinhos a cantar
Leite à beça pra tomar
Fruta fresca pra comer
Campo aberto pra correr
E depois pra descansar
Uma rede pra embalar
E entre as flores do jardim, sonhar
Um dia ainda volto a te ver
Um dia ainda fico por lá
Um dia eu nem quero saber
E em Dores lavo as minhas dores no teu Indaiá
Ver a terra a fecundar
Ver a plantação crescer
Ver a criação pastar
faz a gente enternecer
E depois de galopar
Sem ter ponto pra chegar
De tardinha ir ao açude pescar
Como é bom a gente ver
Que esta gente do lugar
Sabe amar e receber
O que a natureza dá
E pra quem nunca chegou
Onde a felicidade está
Vá a Dores, que ela mora por lá
õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo
Leniro Alves
Cinzas
Mantenho bem guardado em meus porões,
Com o zelo de um bom colecionador,
Os quadros que, pintados pelo amor,
São primaveras de dois corações.
Dançávamos ao som dos passarinhos
Que se banhavam nas águas do leito
Do rio farto de um amor perfeito
Que, sendo flor, de certo tem espinhos.
Sem atentar, no entanto, pro detalhe
(Que no amor não há pois quem não falhe!)
Nos machucamos, nos ferimos fundo.
E as cicatrizes dessas tais feridas
É coleção, presente em nossas vidas,
Marcas benditas que nos deixa o mundo.
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Livre tradução
se a mim me fosse dada a incumbência
de traduzi-la dentro de uma norma
onde um país, por pura experiência,
tivesse a flor pra se expressar por forma
eu tentaria, num jardim que tenho,
bem escondido no fundo de mim
fusões, tantas e tais, onde o engenho
de um jardineiro mestre fosse assim
¨
o dom maior. Quem sabe então fizesse
na conjunção de flores certa prece
que ao ser rezada assim a definisse:
muitas *essências* compostas de um jeito
que dessem rosa e o amor perfeito
e, a nova flor, talvez a traduzisse.
Vocabulário
Essência: s. f. (figurado) Natureza de um ser.
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Medida
Nestes meus versos, faço dela o *mote*
Buscando um pouco mais compreendê-la.
Somente o homem a tem como *dote*,
Diz coisas tristes mas, diz coisas belas.
Não há aquele que a não adote,
Tanto liberta quanto é uma cela.
Afaga, ou é cruel chicote.
Quem neste mundo poderá detê-la?
É dom divino e endiabrado,
Sem ela o homem se mantém calado,
Sem ela ao menos um sentido míngua.
Não é que a vida assim perca o sentido
Porém, por certo, o homem é medido
Pela medida como usa a língua.