Revista Brasileira para Cegos Edição Especial 2022 -- 80 anos Ano LXXX Ministério da Educação Instituto Benjamin Constant Publicação Trimestral de Informação e Cultura Editada e Impressa na Divisão de Imprensa Braille Fundada em 1942 pelo Prof. José Espínola Veiga Av. Pasteur, 350/368 Urca -- Rio de Janeiro-RJ CEP: 22290-250 Tel.: (55) (21) 3478-4531 E-mail: ~,revistasbraille@~ ibc.gov.br~, ~,http:ÿÿwww.ibc.gov.br~, Livros Impressos em Braille: uma Questão de Direito Governo Federal: Pátria Amada Brasil

Diretor-Geral do IBC João Ricardo Melo Figueiredo Comissão Editorial: Geni Pinto de Abreu Heverton de Souza Bezerra da Silva Hylea de Camargo Vale Fernandes Lima João Batista Alvarenga Maria Cecília Guimarães Coelho Rachel Ventura Espinheira Colaboração: Carla Maria de Souza Daniele de Souza Pereira Regina Celia Caropreso Revisão Hylea de Camargo Vale Fernandes Lima Transcrição autorizada pela alínea *d*, inciso I, art. 46, da Lei n.o 9.610, de 19/02/1998. Distribuição gratuita. Arquivo da revista disponível para impressão em Braille: ~,http:ÿÿwww.ibc.gov.brÿ~ publicacoesÿrevistas~, Nossas redes sociais: Anchor: ~,https:ÿÿanchor.~ fmÿpodfalar-rbc~, Facebook: ~,https:ÿÿwww.~ facebook.comÿibcrevistas~, Instagram: ~,https:ÿÿwww.~ instagram.comÿrevistas{-~ rbc{-pontinhosÿ~, Youtube: ~,https:ÿÿwww.~ youtube.comÿ~ RevistasPontinhoseRBC~,

Revista Brasileira para Cegos / MEC/Instituto Benjamin Constant. Divisão de Imprensa Braille. n.o 1 (1942) -- . Rio de Janeiro : Divisão de Imprensa Braille, 1942 -- . V. Trimestral Impressão em braile ISSN 2595-1009 1. Informação -- Acesso. 2. Pessoa cega. 3. Cultura -- Cego. 4. Revista -- Periódico. I. Revista Brasileira para Cegos. II. Ministério da Educação. III. Instituto Benjamin Constant. ¨ CDD-003.#edjahga Bibliotecário -- Edilmar Alcantara dos S. Junior -- CRB/7 6872

Sumário Editorial ::::::::::::::: 1 Entrevista sobre audiodescrição ::::::::: 6 Pássaros Raros ::::::::: 16 Dia Nacional do Braille: por que "nossas" entidades não o comemoram? ::::::::::::: 26 Algodão Doce!!!! ::::::: 36 Trilhas da informação: um caminho à liberdade :::::::::::::: 44 Incluir ou não incluir, eis a questão :::::::::: 52 A união ou um divórcio dolorido ::::::::::::::: 64 Como gostaria que fosse a minha vida ::::::::::: 67 Supremacia Amorosa ::::: 72 Faça algo ::::::::::::::: 74

Editorial Caros leitores, O que dizer quando se está diante de uma senhora de oitenta anos que, durante toda a sua existência, dedicou-se a transmitir cultura, alegria, entretenimento, reflexão a quem cruzou seu caminho? No mínimo, muito obrigada. Pois chegou esse momento. Nossa querida RBC, sempre produzida em braille, jamais abrindo mão desta característica que mostra sua identidade com o público cego e seu empenho em ser esse símbolo de identidade desse segmento, completa oitenta anos e vem cheia de disposição com textos escritos por pessoas cegas. Uma publicação em que o cego conversa com o cego, de qualquer canto do Brasil e de

fora dele, trazendo talvez, descobertas para muita gente. O número especial traz a feição romântica de Pedro Calixto, com o único poema desta edição. Que criatura apaixonada! Traz, nos textos de Paulo Alberto Schimidt e de Hercen Rodrigues Torres Hildebrandt, a preocupação com a afirmação do Sistema Braille, não apenas como único veículo de leitura totalmente autônomo para os indivíduos cegos, mas também como marcador de uma política de inclusão que já é muito mais antiga do que querem defender alguns e partiu dos próprios cegos, sujeitos de sua história. O texto de Sara Bentes traz a necessidade de se “Fazer algo”, fazer o que se pode pelo outro, seja esse outro quem for, sem receio de aproximações, sem fantasias, com gestos simples, enxergando esse outro como alguém com desejos, necessidades bastante comuns, iguais às de todos nós. Marcos Lima, através de suas experiências de vida, nos fala sobre “Incluir ou não incluir”. Sem ditar uma norma ou regra para a questão, aborda o ponto de vista de quem frequentou as duas escolas, especializada e convencional, lembrando sempre a importância de se ouvir os que vivem a experiência. Carla Maria de Souza, através dos “Pássaros raros” de sua pitoresca experiência, nos faz refletir sobre amor, liberdade, respeito. Será que sabemos unir esses três sentimentos? O “Algodão doce” de Kátia Mattos nos coloca em contato com deliciosas reminiscências de nossa vida, naquela

nostalgia que nos enche de prazer e sonhos para o futuro. Lúcia Mara Fomighieri apresenta um texto empolgado com as tecnologias, mas, mesmo tempo, atento a problemas que esses recursos podem trazer, caso não sejam usados com sabedoria. Com um pequeno toque de humor, Nelson Newlands Carneiro une romance e divertimento em uma situação que poderia acontecer com qualquer um. Em entrevista especial a nós, Aparecida Leite fala da importância de um trabalho que vem se afirmando cada vez mais como instrumento de acessibilidade: a audiodescrição. Feita de maneira despretensiosa durante muito tempo por parentes e amigos para os cegos próximos, essa atividade merece nossa atenção, reflexão, comentários a fim de que possa atender de maneira cada vez mais eficiente àqueles a quem ela se propõe, aumentando-lhes a autonomia, oferecendo melhor qualidade a todos no momento da utilização de diversos recursos de comunicação. Teríamos mais a acrescentar à nossa publicação comemorativa, porém não estávamos autorizados a montar um livro e sim uma revista. Portanto, não desejando despertar a ira de nossos chefes com uma edição impossível de ser publicada, tivemos de restringir nossa seleção a estes trabalhos, na certeza de que podemos despertar em você, leitor, os mesmos sentimentos de satisfação, emoção, reflexão e desejo de ler cada vez mais, conhecer, aprender, discutir, transformar... Boa leitura e, mais uma vez, sejamos sempre gratos por termos ao nosso lado essa senhora sábia e revolucionária que preenche nossa vida com seu conhecimento e seu estímulo às descobertas debaixo de nossos dedos. Boa leitura! õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Entrevista sobre audiodescrição A audiodescrição vem se tornando, aos poucos, algo cada vez mais presente na vida das pessoas cegas. Feita de forma informal, por parentes e amigos, durante a vida da maioria de nós, essa atividade ganha agora caráter mais organizado e, tornando-se exigência em muitos eventos culturais, facilita de forma significativa a compreensão de filmes, peças, exposições etc. Aparecida Pereira Leite, ex-aluna do Instituto Benjamin Constant, formada em História e em Direito, fala um pouco sobre o trabalho com essa atividade em entrevista concedida à nossa revista, em junho de 2021. RBC: Fale um pouco sobre este grupo com o qual você trabalha: é uma organização não governamental? Uma associação? Quais são os objetivos desse grupo? Aparecida: Primeiramente, agradeço a oportunidade de abordar, ainda que brevemente, o tema da audiodescrição. Atualmente, contamos com pessoas com e sem deficiência visual interessadas em se capacitar para exercer as diferentes funções em uma equipe de audiodescrição. Entretanto, ainda há poucos cursos de formação, por essa razão, os esforços em se tornar um profissional em audiodescrição são bastante desafiadores. No Brasil, em âmbito nacional, não há uma associação representativa da categoria de profissionais. O que ocorre é a aproximação entre audiodescritores através de encontros e seminários, resultando daí, grupos temáticos nas redes sociais, principalmente, no *WhatsApp*. Utilizamos as redes sociais para divulgar e compartilhar conteúdos audiodescritos nas diversas modalidades em que são apresentados. É muito comum trabalharmos em parcerias, independentemente de empresas, que ainda são poucas também, e localidades. Por exemplo, participo de projetos realizados por profissionais de outros estados, como Paraíba, Rio Grande do Sul, Mato Grosso etc. RBC: Qual é o seu trabalho no grupo? Aparecida: Dentro do processo de produção da audiodescrição (AD), que é uma prática em equipe, atuo como consultora, mas há situações em que exerço o papel de produtora executiva e revisora. RBC: Há outras pessoas cegas atuando no grupo? Aparecida: Sim, e com baixa visão também. RBC: Vocês trabalham, basicamente, com filmes ou já trabalharam também com peças de teatro? Aparecida: Minha maior experiência é em produções audiovisuais para cinema, TV, canais de *streaming*, entretanto tenho trabalhado bastante em espaços e acervos museais nos últimos dois anos. Tenho participação também em várias produções acadêmicas, como dissertações e teses. RBC: Que leis dão amparo ao trabalho de vocês e de outros grupos semelhantes? Aparecida: Nas formações em que atuo, além de tratar das atribuições do audiodescritor consultor, assumo o papel de apresentar os marcos legais no Brasil que versam sobre o tema. Dessa forma, inicio com a Constituição Brasileira de 1988 para mostrar que a audiodescrição é um direito fundamental, nos termos do Art. 1º, III, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o Art. 5º, que elenca os direitos fundamentais individuais, dentre os quais, está o direito à informação. Encontramos amparo legal também na Lei 10.098 de 2000, denominada "LEI DA ACESSIBILIDADE", bem como o Decreto 5.296 de 2004, que a regulamenta nos dispositivos que determinam a obrigatoriedade de transmissão de audiodescrição nas TVs abertas e, nesse sentido, organizo as portarias publicadas pelo Ministério das Comunicações que apresentam um cronograma e um quantitativo mínimo de programação com audiodescrição na TV. De grande valor também é a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949, de 2009), porque traz de forma explícita a audiodescrição como um recurso de acessibilidade comunicacional. Para corroborar com tudo definido pela Convenção, a Lei 13.146/15, a Lei Brasileira de Inclusão, dispõe sobre a obrigatoriedade da audiodescrição em vários artigos, com destaque no Art. 42, no qual estão elencados os direitos de acessibilidade comunicacional em eventos e espaços culturais, desportivos e turísticos. Destaco também os arts. 67, 68 e 76 do mesmo Diploma Legal. Há ainda instruções normativas da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) que determinam a disponibilização dos recursos de acessibilidade comunicacional (AD, LSE e LIBRAS). Menciono tam- bém as ações judiciais que buscam respaldo jurídico para fazer valer o direito à audiodescrição nos programas de TV e nas salas de cinema. RBC: Você acha que ainda faltam leis para amparar melhor esse trabalho? Quais? Aparecida: Não precisamos de mais leis, precisamos de mais reconhecimento pela efetividade dos recursos de acessibilidade comunicacional a partir de medidas de fiscalização pelos órgãos competentes, e, sobretudo, pelos usuários dos recursos. RBC: Como os atores costumam ver o trabalho da audiodescrição? Aparecida: Felizmente, a cada dia que passa, a classe artística vem compreendendo mais que há um público ex- pressivo da audiodescrição. RBC: Vocês puderam avaliar se isso trouxe mais interesse das pessoas cegas por teatro e cinema? Aparecida: Sim. Ressalto que não apenas as pessoas cegas nos dão retorno do quanto a AD promove a sua autonomia na *fruição* de uma produção audiovisual, assim como em uma exposição de arte, por exemplo, mas pessoas com baixa visão, idosas, iletradas, com dislexia costumam solicitar o serviço, sobretudo, em teatro. RBC: Faça outras considerações sobre o trabalho da audiodescrição que você julgue importantes. Aparecida: A audiodescrição, além de ser um recurso de acessibilidade comunicacional, é uma modalidade de tradução intersemiótica, logo, tudo que for imagem deve ser transposto para pala- vras/escolhas tradutórias, de acordo com as diretrizes e os princípios da AD, levando-se em consideração fundamentalmente a intencionalidade autoral.

Por fim, além das produções audiovisuais e eventos socioculturais, destaco a importância da audiodescrição no ambiente escolar. Considero que a AD sirva de ferramenta pedagógica efetiva que promova a participação de quem for usuário do recurso, não apenas das descrições do material didático, mas de tudo que acontece. Evidentemente que um professor não dará conta de traduzir todas as imagens em palavras, por isso penso que a solução seja a formação de equipe capacitada para produzir conteúdos audiodescritos e orientar gestores e professores na forma de transmitir tais conteúdos e utilizar a AD como um recurso pedagógico também. Nota: LIBRAS: Língua Brasileira de Sinais. LSE: Legendas para Surdos e Ensurdecidos. Vocabulário Fruição: s. f. Proveito de vantagem ou oportunidade. õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Pássaros Raros Carla Maria de Souza Início de abril de 2020. Pandemia caindo sobre nossas cabeças. Empresas buscando um meio de trabalhar remotamente, ou de burlar o distanciamento social, ou, já naquela época, agindo como donos de bolas de cristal, já demitindo por conta de prejuízos, então supostos, afinal era melhor uma família de ex-empregados com fome do que patrões sem direito a *Prosecco* (acreditem, tem quem pense isso).

Nesse contexto mundial, ouvia diariamente, em vários horários, passarinhos que cantavam próximos à minha janela. Meu bairro sempre foi bem visitado por pequenos animais, e os passarinhos sempre fizeram festa por aqui. Aliás, o Grajaú é reconhecido como um bairro que ainda tenta preservar o modo antigo de viver. Todos os comerciantes me conhecem, como conheciam a minha mãe e como conhecem uma porção de gente, mesmo que não saibam o nome. Sabem os produtos que mais compramos, quem é meu pai, quem foi minha mãe. No meu caso, há um componente a mais que, nessa situação, ajuda: a cegueira. Pessoa cega sempre marca muito. Mas o pessoal antigo do bairro, seja cego ou não, é sempre conhecido dos prestadores de serviços locais.

Eu observava com contentamento a aproximação de um número maior de aves, saguis e até insetos do tipo inofensivo como os louva-a-deus, que andavam meio escassos e pensava que, se fôssemos mais conscientes, poderíamos aproveitar essa lição da pandemia e trabalhar para que os animais continuassem por aqui, mesmo com tudo funcionando normalmente. Sabia que os bichos estavam aparecendo porque o movimento humano estava menor, menos máquinas trabalhando, menos obras, menos... ué?! O que era aquilo?! De repente, um pássaro tão diferente... nunca tinha ouvido daquele tipo. Minha expertise em cantos de pássaros não é algo que se possa chamar de notável, mas não sou tão ruim assim. Aquele era novo. E parecia sempre bem igual...

Uma amiga me falou de um aplicativo que existe com cantos de pássaros registrados para que eu ouvisse e tentasse identificar. Não achei nada que fosse igual ao canto do meu pássaro misterioso. -- Olha ali na árvore. Vê se tem um passarinho diferente por ali -- falei um dia para uma prima. -- Nada. Só tem bem-te-vi, tucano, canário e não é nenhum desses -- ela falou depois de ter sua curiosidade atiçada também. Gravei o canto e mandei para uma amiga que mandou para vários amigos, alguns nascidos em outras regiões do Brasil, portanto capazes de conhecer aves que a gente não conhecia. Ninguém identificava nada. -- Vai ver, com os incêndios que estão acontecendo, ele fugiu de algum lugar e veio voando até chegar aqui -- comentou Carol, minha prima. -- E deve estar sem companheira porque parece que é um só. Temos que notificar o IBAMA – eu disse, morrendo de pena, talvez já influenciada pelo desenho animado Rio, pensando que estava salvando alguma espécie em extinção. -- Isso. Eles vão descobrir e levá-lo para o lugar certo antes que alguém faça mal a ele. Deve ser por medo que fica sempre escondido, coitado! A gente não consegue ver -- completou Carol apoiando. Mas, antes que eu tomasse essa providência, Rosa, uma outra prima, veio à minha casa. Eram tempos de pandemia, a gente evitava as visitas, mas, naquele caso, foi necessário. Era início de agosto, Dia dos Pais, e resolvemos abrir uma exceção para estarmos juntos. Grupo pequeno,

menos de dez pessoas, todo mundo espalhado pela casa. Falamos sobre o passarinho que acreditávamos ter fugido de algum grande perigo. Uma espécie rara que, talvez, nem fosse da região. Será que o IBAMA viria mesmo se chamássemos? Rosa ouviu o canto. -- Deixa eu olhar lá da janela porque acho que vocês estão prestes a pagar um grande mico e olha que este também está em extinção – brincou ela, chegando na janela do quarto do meio. Deu risada e chamou a Carol. -- Olha ali a espécie em extinção que vocês querem salvar. E Carol viu na casa da vizinha que mora ao lado do prédio, presa em uma gaiola, uma enorme calopsita.

-- Mas ela faz esse barulho? Pensei que ela falasse como os papagaios -- fez Carol meio decepcionada. -- Ela imita o que lhe ensinarem. Isso é assobio de gente. Provavelmente, alguém lhe ensinou a fazer -- falou Rosa com naturalidade, rachando de rir. Rimos também, aliviadas por não termos ainda contatado o IBAMA, pois o mico seria oficial, nesse caso. Prestando atenção, comecei a reparar que diariamente alguém conversava com o bicho e assobiava fazendo com que ele imitasse. No começo, sem dar atenção ao que era dito, achei que a conversa fosse com uma criança. Só então, percebi que era com a ave. É bem verdade que ela também estava presa, também não estava nas condições ideais para um pássaro (sempre acho que lugar de passarinho é solto e não na gaiola), no entanto era forçoso reconhecer que não era nenhuma ave fugindo de um desastre ecológico. Comecei a pensar, então, que, embora engraçado, o episódio trazia mais lições do que eu poderia imaginar: O que sabíamos sobre nossa fauna se não éramos capazes de desconfiar de algo tão simples? Que necessidades fazem com que um animal queira imitar um som humano? (Ouvi falar que é medo de ser agredido pelo homem. Será?) Se eu estava convicta de que havia um animal em perigo, por que demorei a chamar o órgão competente? Será que temia que eles levassem para longe meu pássaro de canto diferente e preferia que ele

ficasse ali só e sem outros de sua espécie a ir embora e eu correr o risco de nunca mais ouvi-lo? Aquilo foi um alerta para mim. Para que eu me olhasse melhor e percebesse até que ponto estaria disposta a abrir mão de um simples prazer pelo bem de outro ser, da mesma forma que o dono da calopsita não queria abrir mão dela, por gostar de ouvir suas imitações interessantes. Assim, quem era eu para criticá-lo por ter um animal na gaiola? Continuo ouvindo o som da calopsita, que agora ganhou um companheiro e uma gaiola maior (me contaram). Ela sempre me faz pensar, não só na forma como lidamos com os animais, muitas vezes *cerceando* sua liberdade, mas também como lidamos com amigos, filhos,

pais, companheiros, alegando amor, dedicação, medo da perda. Tratamos algumas pessoas queridas como não deveríamos tratar bichos de estimação. Não seria hora de mudar? Amores são como pássaros raros. Só faz sentido tê-los se eles estiverem livres, se puderem pertencer a si mesmos. Permitir que alcem voo quando se acharem prontos, que cantem como acharem melhor, que não dependam de nós para tudo é a melhor maneira de mantê-los conosco. Vamos pensar nisso? Vocabulário Cerceando: v. Limitando, diminuindo. õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo

Dia Nacional do Braille: por que "nossas" entidades não o comemoram? Hercen Rodrigues Torres Hildebrandt Escrito em 2018 Paris, 1781: Um fato novo e bem singular atraiu, há alguns anos, uma multidão de povo à entrada de um dos cafés e passeios públicos, onde a melhor gente costuma ir à tarde descansar um pouco das fadigas do dia. Oito ou dez pobres cegos, trazendo todos óculos, corpos postados diante de uma estante cheia de música, tocavam uma sinfonia desafinada que parecia excitar o riso dos *circunstantes*. Um sentimento bem diferente se apoderou de nossa alma e concebemos logo a possibilidade de realizar, com vantagem para esses infelizes, os meios dos quais eles se serviam aparentemente, e de uma maneira tão ridícula. Então dissemos conosco mesmo: "Não conhece o cego os objetos pela diversidade de suas formas? Por ventura engana-se ele quanto ao valor de uma moeda? Por que não distinguiria ele um *dó* de um *sol* ou um *a* de um *f*, se pudesse apalpar estes caracteres?" (Valentin Haüy, citado por Guadet, J. “O Instituto dos Meninos Cegos, sua História e seu Método de Ensino". Traduzido por José Alvares de Azevedo, impresso na gráfica de Paula Brito, 1851, pp. 7-8). Eis aqui um dos momentos mais importantes de nossa história: a adesão de um intelectual vidente à nossa causa, uma causa que, ainda, sequer existia. A partir daí, até o fim de seus dias, Haüy nos dedicaria sua vida.

Em 1784, ele fundaria o Instituto dos Meninos Cegos, cujos objetivos exponho, com suas próprias palavras: "Ensinar aos cegos a leitura em livros a relevo e, por meio desta leitura, ensinar-lhes a imprimir, a escrever, o cálculo aritmético, as línguas, a história, a geografia, as matemáticas, a música etc. Ensinar a estes infelizes as diferentes artes e ofícios, a fazer redes, meias, a *brochura* dos livros, a fiar, a tecer etc. Primeiro para que os das classes abastadas possam passar a vida de uma maneira agradável; segundo para arrancar à *mendicidade* os que não são favorecidos da fortuna e restituí-los à sociedade, dando-lhes meios de subsistência: tal é o nobre fim de nossa Instituição". (Guadet, op. cit, p. 24). A história não procede por fatos isolados. Haüy realizou pesquisas para informar-se sobre o que já se havia feito para a educação de cegos, encontrando interessantes precedentes a seu projeto. Ele mesmo expõe: "Saunderson tinha composto uma máquina de cálculo; era uma tábua dividida em pequenos quadrados colocados horizontalmente e em distâncias iguais, cada quadrado tinha nove *fusos*, e era pelas diferentes posições de *cavilhas* colocadas nesses fusos que ele exprimia toda a espécie de número; esta máquina servia igualmente para geometria por meio de fios, que, passados à roda das cavilhas, representavam ao tato as figuras que as linhas que, traçadas a lápis ou à tinta, representam à nossa vista. O cego du Puysseaux tinha ensinado a ler a seu filho com caracteres móveis em relevo. Mlle. de Salignac fazia também uso dos mesmos caracteres. Lamouroux também os empregava, mas só para música. Weissembourg tinha-se habituado tanto com os caracteres em relevo, que ele mesmo os traçara com uma pena; tinha aprendido a geografia em mapas ordinários divididos por fios conhecidos de pedrinhas de vidro de diferentes grossuras para indicar as diversas ordens de cidades e cobertas de areia gelada de diferentes maneiras para distinguir os mares, *comarcas*, províncias etc. Weissembourg calculava sobre uma tábua pequena quase como a de Saunderson. Mlle. Paradis, finalmente, tinha aprendido a soletrar com le- tras de papelão e a ler frases feitas com a ponta de um alfinete em papelão fino. Tinha uma pequena prensa e caracteres móveis com os quais imprimia em papel frases, que com- punha à maneira dos

impressores, e entretinha por este modo correspondência com seus amigos". (Op. cit, pp. 10-11). No prefácio que escreveu para sua tradução do livro de Guadet, aqui citado, Azevedo fala de resultados práticos da escola de Haüy. Refere-se a Moncouteau e Gouthier (músicos e compositores), Montale (premiado pianista), Foucault (criador de máquinas para aperfeiçoar a escrita dos cegos), cerca de 50 organistas, Rodembach (escritor belga que ocupava uma cadeira no parlamento de seu país), bem como diversos torneiros, tapeceiros, marceneiros etc. Mas o grande mérito de Haüy, talvez ele próprio não o tenha compreendido, foi reunir os cegos, o que lhes permitiu a oportunidade de debater, com relativa liberdade, a eficácia dos métodos que seus *preceptores* lhes ofereciam para seus estudos. A Sonografia surgiu no início do século XIX, criada por Charles Barbier, como código secreto para uso militar. Adequada à leitura pelo tato, passou a ser ensinada no instituto. Foi da discussão dos cegos sobre suas vantagens e desvantagens, comparadas às letras recortadas, em madeira ou papelão, adotadas por Haüy, que, em 1825, o jovem Louis Braille criaria o método que, apesar da resistência dos professores videntes, tornar-se-ia universal, levar- -nos-ia às universidades e contribuiria decisivamente para a abertura das portas do mundo do trabalho para nós. Ainda hoje, o braille é o recurso mais adequado para a compreensão pelas crianças cegas do que significa uma sílaba, uma palavra, uma frase, sem contar com suas inúmeras utilidades para nossa vida diária e profissional. A Lei n.o 12.266, de 21 de junho de 2010, cria o Dia Nacional do Sistema Braille, a ser comemorado em 08 de abril, data de nascimento de José Alvares de Azevedo, fundador do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atual Instituto Benjamin Constant (IBC), e introdutor desse importantíssimo método de leitura tátil em nosso país. Para mim, essa é nossa data nacional. Todos os segmentos discriminados da sociedade necessitam de uma data anual para comemorar suas conquistas e avaliar suas condições de vida. Por que o próprio IBC deixa passar "em branco" data tão importante para nós?

A Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB), entidade nacional que se apresenta como legítima defensora de nossos interesses junto ao Estado e à sociedade, é presidida pelo companheiro Antônio Muniz, com quem convivi durante muitos anos, quando participava do Movimento de Cegos em Luta por sua Emancipação Social. Sempre reconheci Muniz como um dos mais aplicados usuários do braille e seu *ferrenho* defensor. Mas não tive informação de que a ONCB tenha comemorado a data. Criado e consolidado por nós, o braille tem caráter emancipador. Mas, nos dias atuais, vivemos sob o regime da "autonomia assistida". Não é, portanto, tempo de comemorarmos conquistas. Nossas lideranças sem propostas preferem a gratidão aos feitos de nossos "generosos" tutores.

Vocabulário Brochuras: s. f. Tipo de acabamento em que o miolo do livro é coberto por uma capa mole, de papel ou cartolina, colada ao dorso. Cavilha: s. f. Haste ou pino cilíndrico, de madeira ou metal, usado para tapar orifícios ou juntar peças ou ligar elétrica ou eletronicamente algo. Circunstantes: s. m. Pessoas que estão presentes, que estão à volta. Comarca: s. f. Divisão territorial que está sob a responsabilidade de um ou mais juízes de direito. Ferrenho: adj. Implacável, duro. Fuso: s. m. Pequeno instrumento de madeira, arredondado, grosso no centro e pontiagudo nas extremidades, usado para fiar, torcer e enrolar o fio de trabalhos feitos na roca. Mendicidade: s. f. Estado, condição de que mendiga; pobreza, miséria. Preceptor: s. m. Educador, mentor, instrutor. õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Algodão Doce!!!! Katya Mattos Maio de 2021 Quando eu era criança e até mesmo no início da adolescência, quando participava de alguma festinha infantil ou em uma comemoração na escola, eu adoooooooorava comer Algodão Doce. Ah! Como era gostoso! Há mais ou menos uns dois anos, começou a circular aqui na rua onde moro, um hortifrutas móvel, que além de vender frutas, verduras e legumes, vende também Algodão Doce. Todas as vezes que esse hortifrutas passava aqui na rua onde moro e anunciava o algodão doce, eu ficava louca de desejo de comê-lo. Até que, numa tarde de sábado, eu comprei o algodão e, como uma criança, satisfiz o meu desejo. Ah! Como foi deliciooooooso comer algodão doce depois de tanto tempo! Quantas vezes, ao longo de nossas vidas, temos sonhos e desejos que vamos adiando e com isso perdemos a oportunidade de vivermos novas experiências. Adiamos para quando: terminarmos um curso de Graduação, Mestrado ou Doutorado; comprarmos a casa própria ou um carro novo; tivermos o nosso próprio negócio; passarmos num concurso público; os filhos entrarem para uma universidade; nos aposentarmos. Vejamos alguns exemplos: Exemplo 1: Minha mãe nasceu numa cidade no sul do estado de Santa Catarina e, nos anos 60 do século XX, veio para a cidade do Rio de Janeiro. Aqui casou e teve dois filhos (eu e meu irmão mais novo). Seu maior sonho era retornar a Santa Catarina e rever seus familiares, mas sempre adiava o mesmo, pois acreditava que nós não sobreviveríamos algumas semanas sem sua presença. O tempo passou, passou, passou e, no ano de 1995, minha mãe resolveu ir a Santa Catarina rever sua família, porém a viagem não aconteceu, pois ela morreu. Eu, ao contrário de minha mãe, quando estou com vontade de viajar, compro as passagens, arrumo as malas e tchau! Tchau! Tchau!

Assim quando chegar o dia da minha morte, eu pelo menos terei viajado um pouco, ao contrário de minha mãe, que se dedicou à família e era ressentida pelas coisas que deixou de fazer ao optar pelo casamento. Exemplo 2: Certo dia, participando de uma atividade em certo lugar, uma jovem senhora disse que seu sonho era ser enfermeira. Contudo ela casou e teve um filho. Posteriormente se separou e casou novamente e teve mais três filhos e, por essa razão, abandonou seu sonho de trabalhar como enfermeira, se dedicando totalmente à família e à instituição religiosa à qual pertence. Eu não tenho intimidade com essa jovem senhora, mas, nas ocasiões em que nos encontramos, fiquei com a sensação de que seria muito bom para ela, agora que seus filhos já estão adultos, dar uma repaginada no visual e finalmente realizar o seu sonho de ser enfermeira e, quem sabe, sonhar outros sonhos. Exemplo 3: Numa noite de dezembro de 2019, eu estava em determinado local, esperando um carro de aplicativo para me levar para casa e, de repente, ouço um homem que nunca havia falado comigo antes me chamar de: "Meu Amor!". Confesso que fiquei assustada, pois foi algo que não esperava, principalmente no meio da noite. Chegamos ao ano de 2020, e eu encontrei com esse homem algumas vezes, mas ele Nããããããão teve coragem suficiente de se aproximar de mim. Quem sabe o senhor X é tímido! Quem sabe já machucaram muito o coraçãozinho do senhor

X e agora ele fica receoso de se arriscar e ser rejeitado! Eu também sou muiiiiiiiiito tímida, mas ao longo desses meus 49 anos, eu aprendi a não deixar que a minha timidez fosse uma barreira que me impedisse de alcançar meus objetivos. Como se diz popularmente: "Quem não arrisca, não petisca." Contudo, não é por qualquer um que eu me arrisco. Então veio a pandemia e nunca mais tive notícias desse homem. Não sei se ele foi uma das vítimas da Covid, ou mesmo, com o distanciamento físico, arrumou um novo amor e está muito feliz. A titia vai aproveitar e deixar uma dica para homens SEM deficiência visual se aproximarem de uma mulher com deficiência visual: com ou sem pandemia, chegue perto da pessoa. Não grite, pois ela não é surda, tem apenas deficiência visual e diga: Oi! Fulana, eu sou o Fulano e estou louuuuuuuuco por você. Seria possível conversarmos?" Não apareça do nada gritando "Meu Amor". Ora bolas, ela tem deficiência visual e poderá se assustar. Se ela falar que não está interessada, não seja chato e insistente. Siga em frente, ao menos foi uma tentativa. Vocês devem estar se perguntando: "Onde a louquinha da Katya quer chegar com tudo isso?" Eu explico. Não existe nada pior para a nossa saúde emocional do que as suposições a seguir: se eu tivesse feito isto ou se eu tivesse feito aquilo; se eu

tivesse dito isto ou se eu tivesse dito aquilo; se eu tivesse agido assim ou se eu tivesse agido assado; se eu tivesse feito aquele concurso; se eu não tivesse casado; e muito mais. Se, Se, Se, Se, Se, Seeeee! As suposições servem apenas para nos aprisionar no passado e, desse modo, nos impedir de encerrarmos mais um capítulo de nossa vida. É necessário nos libertarmos do "Se", pois somente assim seremos capazes de mergulharmos profundamente em novas e maravilhosas experiências. Portanto, caríssimo leitor ou leitora, quando você tiver vontade de comer Algodão Doce, coma Algodão Doce. Coma muiiiiiito Algodão Doce.

Afinal, a Vida, pode ser um grande e saboroso Algodão Doce. õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Trilhas da informação: um caminho à liberdade Lúcia Mara Formighieri Em meados dos anos 2000, o norte-americano milionário Mark Zukerberg criou a primeira rede social de todos os tempos: o *Facebook*. De lá para cá, obviamente, muitas situações já se modificaram no mundo, mas somente hoje é possível perceber o quão importante e significativa foi essa mudança. De acordo com Zukerberg, “o maior objetivo do *Facebook* era conectar pessoas que há muito tempo não se encontravam”. E, de fato, isso tinha ocorrido. Entretanto, passados quase vinte anos de redes sociais das mais diversas (*Instagram, Twitter, Pinterest, Tik Tok*), o maior benefício sem dúvida foi a ampliação das vozes que não eram ouvidas. Democracias se consolidaram, presidentes foram eleitos por meio dos grupos das redes, mas, principalmente, as pessoas ganharam o direito à liberdade individual e coletiva. A confirmação desse fato verifica-se no livro de Patrick Kuerten “O efeito Facebook” onde um jovem colombiano utilizou as redes sociais para conseguir a medula para o próprio transplante. E, se há algo muito atual na fala do teórico da comunicação, Marshall M.C Louhan, que afirmava “que o meio é a mensagem”, então é possível aceitar, como fato indiscutível, que as redes sociais tiveram muita utilidade nesta época de pandemia, tome-se como exemplo o caso de uma norte-americana que, após infectar-se com o coronavírus, fez questão de utilizar os meios digitais para auxiliar pessoas doentes do outro lado do país. Aliás, as redes sociais também trouxeram modificações muito positivas em várias áreas. Agora, comprar em um supermercado, aprender idiomas e transferir dinheiro para a conta bancária nunca foi tão fácil. Por conseguinte, pudemos observar o quão importantes foram as tecnologias digitais durante os últimos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio, em que os atletas e paratletas interagiam com os(as) fãs por meio de postagens diárias. Outro aspecto da vida moderna que ganhou muito mais liberdade com as redes sociais está relacionado aos veículos de comunicação. O grande teórico Manuel Gasset costuma dizer que “vivemos em uma aldeia global”. Pois bem, hoje as pessoas encontram as músicas, as emissoras de televisão, de rádio e até mesmo os jornais somente no ambiente *on-line*. Por si só, isso já seria um feito, porém, o que dizer quando fãs de: jogos, músicas, filmes e livros encontram-se diariamente em grupos do *Facebook*? Na política, sempre o diálogo foi sobre “revolução”, mas já é possível afirmar, que as redes sociais revolucionaram os meios de produção. A economia compartilhada veio para ficar, e, talvez, nunca mais desapareça. Pessoas auxiliam quem necessita; outros(as) cidadãos(ãs) vendem os produtos manufaturados no ambiente digital, mas certamente muito além do varejo; transações internacionais por meio de *bitcoins* começam a surgir como as futuras possibilidades de negócios externos/internos. E se as redes sociais trouxeram uma revolução positiva, não se pode negar que as cri- anças foram atingidas em cheio por essa novidade. A *geração Z* (nascida entre os anos de 1997 a 2010) já cresceu no *Facebook*, o que as tornou muito mais engajadas e sensíveis. Mormente, abraçar uma causa social tem sido sem dúvida, a maior contribuição positiva neste século. Se as crianças e os(as) adolescentes já demonstram uma sensibilidade e inteligência mais agudas, o que dizer dos *millenials* (nascidos entre 1981 e 1996)? Os movimentos #kcomigonão e #kvidasnegrasimportam reforçam ainda mais a necessidade de um ambiente digital extremamente democrático e saudável, no qual todo debate possa entrar na pauta. Um caso muito interessante ocorreu no Paraná, onde um garoto de nove anos, João, entrou em contato com um corretor, através das redes sociais, para alugar uma casa para a família. Ele não apenas conseguiu, como enviou um vídeo para as emissoras de televisão na casa onde iria residir. É fato que poderíamos citar exemplos sem conta dos benefícios que as redes sociais trouxeram ao longo da evolução tecnológica, e a tendência, de acordo com uma teoria que já circula, a “teoria do transumanismo”, é a de que “nós nos tornaremos seres metade humanos/metade robôs”. Se isso realmente ocorrer, e, assim como na ficção científica, o mundo virar um planeta de *cyborgs*, certamente será incrível imaginarmos uma pessoa enxergando através de uma câmera instalada no rosto, ou, quem sabe, um(a) cadeirante andando com pernas biônicas, não é mesmo? De fato, a tecnologia traz momentos inesquecíveis, entretanto vão algumas dicas a seguir de como utilizar as redes sociais para nosso bem: • Encontrar pessoas desaparecidas: Por incrível que pareça, muitos crimes já foram solucionados através das redes sociais. Não vivemos ainda no filme *Minority Report*, porém é importante recordar sempre as mães e filhos(as) que se reencontraram após tanto tempo afastados(as), quer fosse por um sequestro, quer fosse por um assalto; • Também não vivemos na série *Click Bytes*,

entretanto a Polícia já consegue pegar criminosos, logo lembre-se de que as redes sociais são um ótimo meio para denunciar abusos, dos mais diversos. Em suma, as trilhas da informação seguirão sempre um caminho sem volta, cabe a nós aproveitarmos a nossa liberdade, com sabedoria e justiça, e sempre levar o melhor de nós para essa estrada, que certamente ainda é longa. Notas: *Bitcoins*: É uma rede de pagamento inovadora e um novo tipo de dinheiro. Geração Z: Envolve os nascidos entre 1997 e 2010. A partir de 2011 iniciou-se a geração alfa. *Millenials*: Envolve os nascidos entre 1981 e

1996; também chamados de geração Y õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Incluir ou não incluir, eis a questão Artigo de Marcos Lima sobre sua experiência em escolas especiais e regulares. Há alguns dias, em um pro- grama de televisão, estavam debatendo a inclusão das pessoas com deficiência nas escolas normais, ou seja, aquelas que não são adaptadas às suas necessidades de aprendizado. Isso permite que as crianças com deficiência conheçam e convivam com crianças sem deficiência, uma troca de experiências que pode ser muito boa para ambos os grupos. O programa só trazia mães de meninos e meninas com problemas mentais (alguns dos quais eu nunca ouvi falar), de modo que eu não vou entrar, especificamente, nesse mérito. Como o nosso papo aqui é deficiência visual, vou dar a minha opinião sobre o assunto no que tange a esse segmento específico. Antes, vale deixar claro que não sou pedagogo, nunca estudei essa questão pelo viés das teorias de educadores; eu quero, simplesmente, compartilhar alguns pensamentos, frutos todos da minha experiência como pessoa com deficiência visual. Antes de tudo, vale explicar a minha história, resumidamente. Nasci com glaucoma congênito, detectado quando eu tinha alguns meses de idade. Não obstante o esforço da minha família e às dezesseis cirurgias realizadas, com 5 anos eu perdi completamente a visão. Nesta época, já estudava no Instituto Benjamin Constant, escola especial voltada para o ensino de alunos cegos e com baixa visão. Ali permaneci até os meus 16 anos, quando completei a oitava série. Depois, prestei concurso para o Colégio Pedro II, onde estudei os três anos do ensino médio (ou segundo grau), até que, passando no vestibular para jornalismo, ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tudo isso para dizer que eu sou um grande entusiasta da escola especial. Para mim, ela foi fundamental no meu crescimento como pessoa e como profissional. Conviver com amigos que tinham deficiência visual me ensinou muito. Se eles podiam amarrar o tênis sozinho, eu também podia; se eles, moradores inclusive de municípios da Baixada Fluminense podiam voltar sozinhos pra casa, eu, que morava há menos de um quilômetro da instituição, também podia; se eles podiam jogar bola, por que eu também não podia? E foi assim que, mesmo sem saberem, os meus amigos, colegas e conhecidos me ensinaram muita coisa. Ali eu não era o cego, mas apenas mais um cego, de quem ninguém passaria a mão na cabeça por conta disso, já que existiam centenas de outros com as mesmas características. Fico pensando que, se o tempo todo tivesse estudado em uma escola comum, onde eu era o único deficiente visual, eu teria perdido uma chance de me desenvolver. Afinal, em meio a tantas crianças que enxergam, eu sempre seria o "ceguinho". E, sem exemplos nos quais me espelhar, talvez hoje eu fosse uma pessoa bem mais limitada. Se posteriormente, na minha vida, pude conviver com outras pessoas com deficiência, sem que eu fosse apenas o "ceguinho" do grupo, foi porque, enquanto estava na escola especial, tive as bases e a confiança necessárias para me posicionar na sociedade, com meus defeitos e qualidades, com minhas virtudes e deficiências (que infelizmente vão muito além da visual). Claro que devem existir pessoas que estudaram em escola normal o tempo todo, que nunca conheceram nenhum outro deficiente visual e que são mais safas e mais independentes do que eu, de modo que volto a frisar que essa é apenas uma opinião muito parcial sobre uma história específica: a minha. Se não fosse essa convivência, eu não teria aprendido a jogar futebol (e como seria a minha vida sem uma bola de guizo?) e, sem ingressar no esporte, eu não teria disputado tantos campeonatos e viajado três vezes para fora do Brasil por conta deles... Exagero? Pensem pois: como eu poderia jogar futebol em igualdade de condições se eu fosse o único cego do meu estabelecimento de ensino? Sem conhecer outros cegos, como eu poderia saber que se formavam equipes de futebol de 5 e que se disputavam campeonatos nacionais e internacionais? E, se não fosse assim, eu não teria visto o quanto o paradesporto precisa de apoio, o quanto o esporte muda a vida das pessoas e o quanto a gente pode fazer mais por isso. E, se não fosse tudo isso, hoje, seguramente, a Urece não existiria, mesmo porque o Anderson, o Gabriel, o Filippe, o Fábio, o Rafael, todos eles também não teriam sido parte da minha história e da história da Urece. Se não fosse a convivência diária com meus amigos com deficiência visual, eu não teria aprendido que para tudo se dá um jeito e que a maior deficiência é a sua capacidade de se limitar. Não teria aprendido que se pode colocar uma bola dentro de um saco plástico e jogar futebol, guiados pelo barulho que ela produz em contato com o piso ou, na ausência de uma esférica de verdade, nunca teria pensado que basta uma garrafinha plástica qualquer cheia de pedrinhas para garantir a diversão de uma tarde inteira. Se não fosse a convivência com meus amigos deficientes visuais, eu, provavelmente, teria me limitado a fazer o que as pessoas achavam que um cego podia fazer. "Eu não ando sozinho porque sou cego, os outros andam porque eles enxergam". "Eu não posso tirar notas boas porque eu não enxergo e então é difícil pra mim aprender matemática; os outros enxergam e então eles vão bem". E, embora estejamos apenas em um exercício de adivinhação, provavelmente não seria o que eu sou hoje. Apesar de eu destacar a importância da escola adaptada (ou especial ou seja lá qual for o nome correto para isso, embora esse troço de dar nomes politicamente corretos seja um pé no saco), acho que chega um momento em que é necessário dar um voo maior. E esse momento chegou, para mim, justamente ao final do primeiro grau. OK, já tinha vivido e crescido com meus amigos que também têm deficiência visual, já tinha apreendido os limites e principalmente as potencialidades da minha deficiência, de modo que chegara o tempo de quebrar os elos com o mundinho feito para você e se inserir na vida real. Não, o mundo não é feito de colegas e professores que têm a mesma deficiência que você, livros em braille, corredores adaptados... Pelo contrário, essa é apenas uma pequenina exceção. O mundo real é construído por uma maciça parede de preconceito, de injustiça, de falta de acessibilidade, mas tampouco adianta espernear contra isso, porque é nele que você vive. Então é necessário aceitar isso e buscar o seu lugar nele, por mais que pareça mais confortável continuar sempre agarrado ao maternal colégio onde tudo é feito para atender as suas necessidades. E, com meus 16 anos, entrando em uma escola normal, cercado de colegas que não apenas não eram deficientes como também nunca tinham visto um cego na vida, comecei a aprender que existe muito mais no mundo e em mim mesmo. Não tardei a descobrir na prática que sou muito mais que um cego, que podia sair na mão com meus amigos apenas por brincadeira e ganhar ou perder como qualquer outro... Aprendi que por mais difícil que fosse a matemática ou a física, sempre se podia dar um jeitinho para entender um gráfico, porque se eu tinha sido capaz de fazer antes quando meus companheiros de turma tinham deficiência visual, por que eu não conseguiria agora também? Aprendi que existem coisas socialmente aceitas e que outras não o são e que, ao contrário de você, as outras pessoas enxergam. E por isso que esses anos foram fundamentais para o meu crescimento como pessoa e como profissional. "Ué, eu já li isso antes", você deve estar pensando. E já leu mesmo, no início do texto, referindo-se exatamente à escola adaptada. E isso resume bem o que eu penso sobre o assunto: há hora pra tudo. Escola adaptada é fundamental para você crescer com outras pessoas que têm a sua mesma deficiência e aprender, com elas, a exigir-se ao máximo para se tornar o mais independente e autônomo possível. E existe também o momento de entrar no mundo real, em que nem sempre terão compaixão ou compreensão com a sua deficiência, pois, na verdade, é nesse mundo que nós vivemos assim mesmo, com suas injustiças e *idiossincrasias*, mas só é possível mudá-lo estando dentro dele. Este é apenas um relato das minhas experiências. Não digo aqui que pessoas cegas que estudaram a vida inteira em escolas regulares não podem ser grandes profissionais e, sem dúvida, existem aquelas que são muito mais avançadas e desenvolvidas que eu. O que eu quero dizer com esse relato é que, certamente, ter convivido com colegas cegos e com colegas sem deficiência foi importante demais para minha formação como pessoa, um atalho de que só me dou conta da importância agora que olho para trás (e não enxergo nada). Fonte: *Urece -- 21/07/2011 -- Imagem Internet* Postado por Carlos Alberto Raugust ~,https:ÿÿblogiad.blogspot.~ comÿ2011ÿ07ÿincluir-ou-~ nao-incluir-eis-questao.~ html~, Nota: Urece Esporte e Cultura para Cegos é uma associação sem fins lucrativos, localizada no Rio de

Janeiro, criada em 25 de outubro de 2005. Vocabulário Idiossincrasia: s. f. Comportamento, temperamento. õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo A união ou um divórcio dolorido Nelson Newlands Carneiro No último fim de semana, minha namorada e eu, como todo casalzinho apaixonado, resolvemos comemorar nossa união. O encontro ocorreu no apartamento dela, e a celebração foi bem diferente das tradicionais. Para começar não havia convidados. Estávamos completamente enclausurados. Dá para perceber que não se tratava de um casamento formal, daqueles que se faz para constituir família e tudo mais. Já assistimos a esse filme e não pretendíamos vê-lo novamente, nem que nos pagassem as entradas. Passamos da barreira dos cinquenta e formamos um casal de cegos que tem uma ótima visão do que é melhor nessa fase da vida: paz e amor! A nossa nova união foi involuntária, dolorida e incomum. Essa aliança juntou os sentidos da audição e do olfato, num consórcio sofrido de amor entre os que foram abandonados pela visão. Matrimônio que felizmente durou pouco. Eu estava sentado no sofá quando ela, com seu lindo par de brincos dourados no formato de meia-lua, repentinamente decidiu se abaixar para me beijar. Ao virar o rosto, seu brinco se prendeu na minha fossa nasal e como uma lança se cravou na carne, pregando meu nariz à sua orelha. Por alguns minutos, ficamos curtindo a dor da inesperada ligação sem podermos nos mexer -- ela em pé, curvada, e eu sentado. Cada movimento significava um puxão no ouvido ou uma forte agulhada na narina, que iniciou a sangrar. Tentava me livrar do brinco, e ela gritava que ia arrebentar a aurícula. Parecia que estávamos unidos para sempre, condenados a respirar os mesmos cheiros e ouvir as mesmas coisas. Era uma agonia insuportável, só dava para gritar e engolir o ar; balançar a cabeça nem pensar. Só depois percebi que, para obter aquele dolorido divórcio, tinha primeiro que soltar o brinco da orelha dela, e fui torcendo sem resultado,

enquanto escutava os gemidos e urros da minha querida. Nunca um casal rogou como nós pela separação. Finalmente, perguntei como desprender o brinco, e ela, parando de gritar, mandou puxar a parte inferior do diabólico enfeite. Pronto, ela estava livre, e eu, igual a um selvagem africano com uma argola no nariz! õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Como gostaria que fosse a minha vida Paulo Roberto Schimidt Estudei em uma época que as oportunidades de aprender eram escassas; consequentemente, atingiram-me, também em demais aspectos. Penso que hoje em dia, há uma maior compreensão dos amigos, professores e familiares para os direitos e deveres das pessoas deficientes daquilo presenciado no passado. Falo isso, porque éramos cobrados para a obtenção de resultados que nem sempre as condições atuais nos favoreciam. Lógico, tivemos boas conquistas advindas dessa visão da sociedade daquela época para com seus cidadãos. Todavia, estamos evoluindo. Nos dias atuais, estamos tendo a chance de aprender bastante, ajudar a quem necessita e procurar crescer e buscar em melhoria de vida. Percebo que atualmente as pessoas são mais compreensivas e conduzem melhor as pessoas que estão ao seu redor para aquilo que a existência insiste nos ensinar. Sou cego congênito e resido no interior do estado do Rio Grande do Sul, cidade de Santa Maria e estudei até a sexta série incompleta, tendo sido incluído numa escola regular, após os três primeiros anos em classe especial. Como os professores dessa escola não sabiam braille, percebo agora que não fui verdadeiramente incluído, pois faltou-me aprender matemática, física e química como os demais alunos aprendiam. Os conteúdos eram escritos no quadro, e eu não conseguia aprender bem. Agora, vendo as chances que os alunos de hoje encontram, sei que perdi e até na convivência com outros colegas não aconteceu como eu gostaria que tivesse sido. Mas, importa saber que aprende a leitura e escrita braille e também cálculos no soroban. Pratico esses conhecimentos até hoje. Possuo dois irmãos cegos que estudaram em classe regular. Meu irmão chegou até a

oitava série e minha irmã se formou na faculdade de pedagogia. Não cheguei a tanto, mas fui até onde consegui. Gosto de conversar com pessoas diferentes para aprender com elas. A convivência e as leituras nos ensinam e muito aprendemos. Somente adquire sabedoria quem procura aproveitar essas oportunidades. Aprecio ouvir tocar instrumentos musicais e gostaria de aprender um. Gosto de ouvir os sons da natureza e receber o bem que eles me trazem. Percebo que atualmente as pessoas cegas possuem mais dificuldade no aprendizado do método braille. Talvez isso aconteça devido ao tempo menor que elas dispõem para isso. Atualmente o tempo para cada atividade é restrito. Sinto-me feliz por estar podendo participar da

comemoração dos 80 anos da Revista Brasileira para Cegos! Que bom que os profissionais do Instituto Benjamin Constant conseguiram manter por tanto tempo uma revista tão maravilhosa como é a RBC. Quero aqui homenagear a todos esses profissionais que trabalharam pela continuidade desse instrumento de leitura para os cegos. É maravilhoso saber que existem ainda pessoas interessadas na leitura em braille. Em cidades do interior do Brasil, nem sempre encontramos os recursos digitalizados ou em braille. Felizmente, sei ler e escrever em braille e agradeço a Deus e aos professores que me auxiliaram com esse conhecimento que posso desfrutar. õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Supremacia Amorosa Pedro Calixto Borges Seu corpo é uma formosura, Sua beleza, sem fim! Essa doce criatura, É a rosa do meu jardim. Sua presença me fascina, Ausente, me faz sofrer; Se você está por perto Não sinto o tempo correr. Sua voz, terna e meiga, Seu sorriso encantador, Seu jeito me alucina, Fazendo morrer de amor. Eu não quero perder você Nem um instante sequer, Pois você é meu encanto, Minha linda "flor mulher." Às vezes fico pensando No seu jeitinho de ser; Ah! Que bom, se eu pudesse, Um dia, lhe pertencer! Estou à beira da morte, Sem forças p'ra resistir; O fim da minha existência, Só você pode impedir. Você é meu anjo amado, A minha supremacia; Razão, pela qual eu vivo, Dona da minha alegria. Quero poder, com ternura, Seu lindo corpo abraçar; Sentir a sua candura, Quando seus lábios beijar. Queria ter em meus braços Seu corpinho sedutor; Cobrir de beijos e abraços, Senti-lo *fremir* de amor. Sem os seus doces carinhos Sei que não posso viver; Suas carícias me acalmam, Seus beijos me dão prazer. A doçura de seus beijos É algo que me enlouquece; Se estou longe de você, O meu coração padece. Tudo que quero na vida, É estar sempre ao seu lado; Na cadeia do amor Eu fiquei aprisionado. Vocabulário Fremir: v. Estremecer, tremer. õoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõoõo Faça algo Sara Bentes Éramos seis amigos que apenas nos acomodávamos numa pizzaria em Ipanema e, animados, escolhíamos o que comer e beber. Essa era a cena na noite do último sábado, cena corriqueira, não fosse pelo que se sucedeu logo naqueles primeiros minutos: um jovem senhor se levantou da mesa ao meu lado e entregou um bilhetinho à minha prima, sentada à minha esquerda. O amigo à minha frente deu um risinho. Paquera à moda antiga? Só que não... Minha prima guardou o bilhete, e só lá pro fim do jantar, quando o autor do recadinho foi embora, ela leu pra mim as seguintes palavras: “Se eu pudesse fazer algo diferente hoje, emprestaria meus olhos para esta moça a seu lado. Ela não precisa saber, por certo, há de sentir. Deus a abençoe!!!” Num primeiro momento, minha prima até se comoveu, mas acho que minha reação estragou a poesia da cena pra ela. Não é a primeira vez que ouço essas expressões de compaixão, frases como “se eu pudesse, eu te dava meus olhos”, e, desculpem, mas elas sempre me incomodam, no sentido de que me fazem pensar, e aí decidi compartilhar com vocês minhas reflexões: “se eu pudesse...” Mas não pode! Então por que não fazer algo possível? Eu fico com a fala de uma coordenadora do curso de psicologia de uma faculdade onde palestrei e cantei; ao fim da minha apresentação, várias alunas, quase psicólogas formadas, choravam, e a coordenadora disse com firmeza: “Não precisa chorar não, pega essa emoção e transforma em ação.” Frieza? Claro que não; num momento difícil, qualquer que seja ele, na vida de qualquer um de nós, se a compaixão do outro não nos chega em forma de uma atitude positiva, ela serviu de quê? Quer me emprestar seus olhos? Será que eu preciso? Será que me falta algo aqui tomando um *chopp* e me divertindo com meus amigos? Será que sou incompleta sem a visão física? Ah, entendi, só queria que minha vida fosse melhor? Então faça algo por mim, e por qualquer pessoa cega, pela sociedade. Tem um estabelecimento comercial? Contrate uma pessoa com deficiência para dar um treinamento a seus funcionários para atenderem da melhor forma um consumidor com deficiência! É médico? Certifique-se de que seu consultório é acessível e de que você está capacitado pra lidar com a pessoa e não só com a deficiência ou com a patologia dela! É professor? Faça seus alunos pesquisarem sobre o tema, entrevistarem uma pessoa com deficiência e, de alguma forma, exercitarem a empatia! Aposentado com muito tempo livre? Procure um trabalho voluntário com pessoas com deficiência, existem muitos! É empresário? Contrate profissionais com deficiência independentemente da lei de cotas, e se surpreenda com o resultado, torne sua empresa uma referência em inclusão e acessibilidade. Compreendo e acolho a comoção das pessoas em relação à cegueira, uma leitura mais amadurecida de mim e da situação; e aí sim ele teria se dado a oportunidade de se comover, se fosse o caso; depois refletir sobre sua comoção e, quem sabe, decidir realmente fazer algo. especialmente das pessoas que não convivem com alguém com a deficiência (embora ainda muita gente que trabalha na inclusão ou familiares de pessoas cegas não se resolveram com certas emoções e conceitos), e essa comoção reflete uma mentalidade pautada em preconceitos historicamente explicados... a ideia de que todo cego vive em casa chorando, como ouvi outro dia de uma paulistana de aproximadamente 50 anos, ou de que todo cego é coitado, incapaz, dependente, digno de misericórdia, doente à espera da cura, tudo isso é fruto de questões históricas nas quais não vou me aprofundar aqui ou eu escreveria um livro inteiro. Mas o mundo está mudando, minha gente, e precisamos atualizar nossa mentalidade. Se o senhor naquela pizzaria viesse diretamente me perguntar se eu queria algo emprestado, eu provavelmente diria “sim, um bom dinheiro, por favor.” Visão ou os olhos dele seria provavelmente a última coisa na qual eu pensaria. Sim, precisamos de ajuda muitas vezes (e quem não precisa?), precisamos de um olho emprestado pra realizar algumas tarefas que ainda nos são inacessíveis por conta do despreparo do mundo, e não nosso. Mas o que preciso na vida é de autonomia, igualdade de oportunidades, acessibilidade, atitudes inclusivas, respeito à minha maneira diferente de ver o mundo. Se um dia vier a visão de volta, seja por células tronco, por chip implantado no cérebro ou por um milagre, será muito bem-vinda, mas, enquanto não acontece, o mundo gira, a vida corre, e meu papel é viver da melhor forma com o que tenho aqui e agora. Aquele senhor não me conhece, apenas me vê chegar e já decide que eu preciso de seus olhos, sua visão, sua ajuda, e, como muitos, acha mais fácil continuar na zona de conforto dos velhos conceitos e na ilusão da superioridade do que se aproximar do que é diferente e compreender uma outra forma de pensar e de estar no mundo, compreender que este “diferente” talvez nem seja tão diferente assim e que possivelmente tem até muito mais coisas a “emprestar” a ele do que o contrário. Se ele tivesse falado diretamente comigo, teríamos desenrolado uma conversa interessantíssima, e, quem sabe, até iniciado uma bela amizade; ou, se o medo de encarar os próprios medos, o próprio desconforto de não saber o que fazer ao se aproximar de mim fosse insuportável, bastava ele simplesmente me observar até o momento em que ficou na pizzaria e ele teria feito uma leitura mais amadurecida de mim e da situação; e aí sim ele teria se dado a oportunidade de se comover, se fosse o caso; depois refletir sobre sua comoção e, quem sabe, decidir realmente fazer algo. P.S.: E se você não é empresário, nem médico, nem comerciante, nem professor, nem aposentado com tempo livre, mas deseja fazer algo, comece compartilhando este texto. Fonte: Contraponto – Jornal eletrônico da Associação dos Ex-Alunos do Instituto Benjamin Constant (136ª Edição/Novembro de 2019) õxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxo Fim da obra Transcrição: Diogo Silva Müller Dunley Coordenação de revisão: Geni Pinto de Abreu Revisão braille: Carolina Herdy Produção: Instituto Benjamin Constant Ano: 2022