O Novo Ministério da Gestão Pública, a Burocracia e o Desenvolvimento no Brasil
Por:
José Celso Cardoso Jr, Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA, atualmente é Presidente da Afipea-Sindical
Félix Lopez, Técnico de Planejamento e Pesquisa na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Diest/Ipea). Coordenador da plataforma Atlas do Estado Brasileiro
Passados pouco mais de 30 dias do início formal do terceiro mandato presidencial de Lula, o novo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), comandado pela economista e professora universitária Esther Dweck, realizou no dia 07 de fevereiro a reabertura oficial da Mesa Nacional Permanente de Negociação Coletiva com o funcionalismo público brasileiro.
Para além das pautas emergenciais ligadas à recomposição salarial dos servidores públicos do poder executivo federal, a maior parte há sete anos sem qualquer reajuste frente a perdas inflacionárias de mais de 30% no período, e à revogação ou revisão de atos normativos prejudiciais aos servidores e respectivas entidades de classe, que haviam sido implementados ao longo dos mandatos de Temer e Bolsonaro, também cabe destaque ao anúncio feito pela Ministra de que o governo Lula vai pedir oficialmente ao Congresso Nacional a retirada de pauta da PEC 32/2020 - a proposta de emenda constitucional para a reforma administrativa.
Amplamente criticada e combatida por entidades representativas do funcionalismo público de todos os poderes da União e em todos os níveis da Federação, a PEC 32/2020 visava promover uma reforma administrativa de impactos amplamente negativos - vale dizer: impactos abrangentes, profundos e velozes - sobre as formas constitucionais de organização e funcionamento do Estado brasileiro. Por razões que foram exaustivamente tratadas em ao menos seis livros publicados pari passu à tramitação legislativa dessa proposta[1], a mesma veio a ser caracterizada como autoritária desde a sua concepção e forma de tramitação, fiscalista em termos dos seus objetivos precípuos, e privatista do ponto de vista do legado que almejava deixar. Em suma, a proposta de reforma administrativa Bolsonaro/Guedes não trazia nenhuma perspectiva de enfrentamento dos problemas histórico-estruturais da administração pública brasileira, nem tampouco oferecia qualquer tipo de melhoria efetiva ao desempenho institucional agregado do setor público nacional.
Dito isto, com o intuito de virarmos essa página triste da nossa história, é que anunciamos com alegria e esperança o lançamento de um sétimo livro sobre o assunto. Trata-se do Trajetórias da Burocracia na Nova República: heterogeneidades, desigualdades e perspectivas (1985/2020)[2],editado pelo Ipea e organizado por Félix Lopez e José Celso Cardoso Jr., ambos pesquisadores desse importante órgão de Estado no Brasil. A partir de uma leitura e interpretação de conjunto dos vinte capítulos que compõem o livro, há ao menos três coisas muito importantes a se dizer sobre ele.
A primeira delas é que a tese principal do livro é demonstrar ser metodologicamente inadequado e politicamente indesejável generalizar afirmações e prognósticos sobre o funcionalismo público brasileiro. Tal como explicitado no subtítulo do livro, o que mais e melhor caracterizam esse importante subgrupo ocupacional do mundo do trabalho no país são as suas heterogeneidades e desigualdades intrínsecas. Isso deveria ser óbvio, a julgar pelo fato de que, no Brasil, tudo parece ser ao mesmo tempo heterogêneo e desigual. Mas como são características que se perpetuam e se reproduzem ao longo das décadas, elas vão sendo naturalizadas em nosso cotidiano, vão se amalgamando na paisagem ao ponto de quase desaparecerem aos olhos da crítica. Nesse sentido, parece pouco, mas o fato é que, ao se demonstrar a tese principal nesse livro, dá-se um passo enorme rumo a uma maior e melhor qualificação pública do debate sobre os temas que emanam desse objeto de estudo tão controverso e vilipendiado na conjuntura atual.
A segunda das coisas importantes a se dizer sobre o livro é que a sua tese principal está farta e solidamente amparada em evidências teóricas e empíricas de onde emergem as melhores interpretações possíveis sobre cada um dos subtemas aqui apresentados. Em particular, é possível afirmar que as heterogeneidades e desigualdades, que muito claramente caracterizam os perfis do funcionalismo público pelo Brasil, estão ampla e detalhadamente descritas nesta publicação a partir de recortes de análises que, juntos, combinam ineditismo de alguns temas (como nos casos dos capítulos sobre pessoal empregado nos poderes Judiciário, Legislativo e nos órgãos de controle), releituras interpretativas (como nos casos dos capítulos sobre gastos com pessoal, diferenciais de remunerações e carreiras públicas e seus recortes por gênero e raça no serviço público), além de desagregações estatísticas pouco usuais ou incomuns na maior parte de seus capítulos.
Em praticamente todos os casos, os textos utilizam dados do Atlas do Estado Brasileiro,[3] certamente o mais robusto acervo de informações hoje disponível sobre o funcionalismo público no país. Organizado e mantido pelo Ipea, trata-se de uma plataforma de dados que reúne, padroniza e disponibiliza séries estatísticas desde 1985 com diversos atributos pessoais e desagregações possíveis por níveis da Federação e poderes da República. A sua existência e consistência são uma das razões mais importantes por trás desse esforço coletivo de sistematização e reflexão sobre temas tão atuais quanto complexos para o entendimento acerca da estrutura e da dinâmica do funcionalismo público no Brasil.
Por fim, mas não menos importante, a terceira das observações gerais sobre o livro é que, seja isoladamente ou em conjunto, os estudos ali reunidos permitem derivar ou extrapolar uma compreensão mais acurada acerca desse objeto de investigação e suas implicações para um país igualmente heterogêneo e desigual como o Brasil. Em outras palavras, para muito além de se poder afirmar, com base nos melhores dados empíricos que hoje se tem a respeito, que nem o estoque de servidores nem o gasto agregado com pessoal no setor público são - ou um dia qualquer o foram - exorbitantes ou explosivos na realidade brasileira, é possível também dizer, com todas as letras, que este subgrupo ocupacional é tão relevante e necessário como qualquer outro para o cumprimento de tarefas indispensáveis ao desenvolvimento nacional.
Embora esse aspecto não esteja presente de modo explícito ou orgânico neste livro, e tampouco caiba aqui nesta breve resenha um alongado muito extenso sobre isso, algumas palavras rápidas são necessárias. Estamos aqui a propor, sem rodeios, que o funcionalismo público brasileiro, em todas as esferas da Federação e níveis de poder, ainda que guardados os ajustes e aperfeiçoamentos institucionais imprescindíveis a maior profissionalização e melhor desempenho individual e organizacional ao longo do ciclo laboral, deveria ser visto como agente ativo do desenvolvimento brasileiro. Para tanto, há pelo menos três níveis de abstração por meio dos quais se poderia perscrutar a correlação positiva entre emprego público e desenvolvimento nacional.
Ao nível micro ou estritamente individual, dados apresentados neste estudo mostram que, entre outras coisas, em função dos critérios de ingresso, da ampla concorrência e dos incentivos posteriores à formação, a escolarização média dos servidores públicos, em quaisquer dos recortes analisados, é superior à escolarização de trabalhadores similares no setor privado e vem inclusive aumentando, desde a Constituição Federal de 1988 (CF/1988).
É claro que há inúmeros problemas metodológicos e éticos nessa comparação, ainda mais em se tratando de um mercado de trabalho altamente precário, heterogêneo e desigual como o brasileiro, mas o que aqui se quer destacar é que o corpo de funcionários a serviço do Estado, no Brasil, já detém um dos atributos mais necessários - e mundialmente reconhecidos - para a deflagração de processos de trabalho e percursos profissionais que combinam inovação, produtividade e desempenho na realização de suas respectivas tarefas e missões institucionais.
Daí a importância de se ter, em países como o Brasil, um corpo de servidores públicos dotados de: i) estabilidade funcional e proteção contra arbitrariedades e assédio institucional do Estado empregador; ii) remuneração adequada e previsível ao longo do ciclo laboral; iii) qualificação elevada desde a entrada e capacitação permanente atrelada à progressão e ao interesse público; iv) cooperação interpessoal e intra/inter organizacional (e não a competição) como fundamento do processo de trabalho no setor público; e v) liberdade de organização e autonomia de atuação sindical.
Um segundo nível de abordagem/abstração é o que correlaciona positivamente as dimensões setoriais e territoriais do desenvolvimento com a presença ativa do Estado, por meio das inúmeras políticas públicas e servidores/funcionários que as engendram cotidianamente. Alguns desses casos, sobretudo em áreas sociais, como educação, saúde e assistência, estão explicitamente tratados neste livro. E nesse nível meso ainda entram funções permanentes e indelegáveis de Estado, como o planejamento governamental, a orçamentação, a implementação, a gestão pública, o controle e a avaliação, tanto setorial como territorial, das políticas de governo, que exigem especializações e competências típicas de Estado, bem como criatividade, iniciativa e distintas capacidades de atuação para enfrentar e transformar problemas complexos, os quais são impossíveis de serem superados apenas com a lógica de mercado.
Por fim, no nível macro de abstração aqui proposto, tem-se a máxima de que o Estado, suas organizações, políticas e servidores públicos são agentes e noções sem as quais debater valores normativos, como desenvolvimento, inclusão e progresso, perdem o sentido. Se é verdade que existem falhas de governo a merecer um olhar atento sobre problemas como patronagem, captura, corrupção, ineficiência etc., também é certo haver falhas de mercado tão ou mais graves do ponto de vista da construção de trajetórias nacionais de desenvolvimento que impliquem soberania, democracia, inclusão e equidade, sustentabilidade ambiental, produtiva, humana etc.
Nesse sentido, ao invés de contrapor modelos abstratos, é preciso caminhar em direção à uma institucionalidade sinérgica entre Estado, mercado, sociedade - e seus respectivos princípios estruturantes: autoridade, interesses e solidariedade -, tal que o desenvolvimento possa ser um resultado meritório, consensual e duradouro dos recursos, das energias e das capacidades instaladas e criadas nesse tempo/espaço específico da história. Para tanto, o Estado, suas organizações, políticas e servidores públicos precisam sair da prateleira dos problemas, em relação aos quais são sempre identificados e responsabilizados, para adentrar a seara dos recursos, dos instrumentos e das soluções para o país se alinhar a trajetórias de desenvolvimento e progresso exitosos e continuados. Na era dos Estados nacionais, a autoridade pública e suas capacidades foram protagonistas, não coadjuvantes, nas trajetórias de êxito coletivo.
Senão pelo resto, detalhar alguns processos que alinham Estado, burocracia pública e desenvolvimento socioeconômico é também um dos objetivos centrais deste livro, com o que acreditamos que ele traz contribuições importantes para o novo MGI em sua tarefa de propor e conduzir uma transformação efetiva do Estado brasileiro, tanto melhor quanto mais republicana, democrática e voltada à cidadania e ao desenvolvimento nacional ela estiver.
Notas
[1] Os livros são os seguintes: 1) Desmonte do Estado e Subdesenvolvimento: riscos e desafios para as organizações e as políticas públicas federais (Afipea, 2019); 2) Mitos Liberais acerca do Estado Brasileiro e Bases para um Serviço Público de Qualidade (Afipea, 2019); 3) Rumo ao Estado Necessário: críticas à proposta de governo para a reforma administrativa e alternativas para um Brasil republicano, democrático e desenvolvido (Fonacate, 2021); 4) Reforma Administrativa Bolsonaro/Guedes: autoritarismo, fiscalismo e privatismo (Afipea, 2021); 5) Reforma Administrativa do Governo Federal e suas Implicações Econômicas, Sociais e Territoriais no Brasil (REBAP, vol. 13, num. 25, edição especial, out 2020); 6) Assédio Institucional no Brasil: avanço do autoritarismo e desconstrução do Estado (Afipea, 2022).
Publicado originalmente no site Gestão, Política & Sociedade, do Estadão