Concurso Público Nacional Unificado e a busca por um serviço público com a cara do Brasil
Cida Chagas[1]; Iara Alves[2]; Tatiana Dias Silva[3]
A democratização e a ampla participação são os objetivos básicos do Concurso Público Nacional Unificado divulgado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Esse formato inovador está previsto para ser realizado em cerca de 180 municípios estrategicamente distribuídos nas cinco regiões do Brasil, incluindo todas as capitais do país. No entanto, o seu apelo não se limita apenas à extensão geográfica; ele se distingue pela concepção de um processo seletivo que ocorrerá em um único dia, destinado a preencher mais de 8.000 cargos autorizadas em 2023 em um intenso processo de reconstrução de capacidades do Estado para a implementação e sustentação de políticas públicas federais.
Quem se inscrever pagará uma única taxa e terá a oportunidade de concorrer em múltiplas categorias temáticas, que agregam os diversos cargos e carreiras disponíveis, dispostas estrategicamente nas distintas áreas programáticas de atuação governamental. Ao reduzir os custos de participação em certames públicos, o Concurso Nacional surge com uma proposta alvissareira baseada no tripé: descentralizar, popularizar e otimizar. Descentraliza ao permitir que as pessoas prestem o concurso mais próximo de suas residências, possibilitando que diversas regiões se vejam representadas entre os candidatos sem os custos financeiros e de tempo que o deslocamento para capitais ou mesmo para Brasília implicam. Cabe destacar que esse ganho não é trivial, especialmente para candidatas e candidatos com responsabilidades familiares, com deficiência e com vínculos laborais menos flexíveis.
Populariza ao reduzir os custos diretos de inscrição, em que uma taxa única servirá para acesso a diversas oportunidades. Pode parecer banal para quem consegue investir dezenas de milhares de reais para se preparar para um concurso público, mas pode ser a diferença entre participar ou não do certame, para quem precisa avaliar que concurso prestar com taxas não raro superiores a 10% do salário mínimo corrente.
Otimiza ao possibilitar que o tempo destinado à realização do concurso - e dos consequentes deslocamentos e arranjos familiares e laborais - sejam concentrados em um único momento. Além disso, otimiza as chances de aprovação, pois as escolhas múltiplas de cargos permitem aproveitar os melhores candidatos em variadas posições, respeitando-se, inclusive, as suas preferências declaradas no ato da inscrição. Otimizam-se também as chances de ocupação de vagas reservadas para negros e pessoas com deficiência, especialmente ao possibilitar que esses grupos tenham mais chances de participação nos certames. Há riscos também. Ao concentrar várias oportunidades em um único certame, eventuais indisponibilidades terão peso maior. Para isso, pretende-se estabelecer Concursos Nacionais periódicos, para novas vagas que virão.
Esses pilares buscam ampliar uma representação mais fiel do perfil social, demográfico e territorial do povo brasileiro. No meio acadêmico, a busca por um perfil que reflita melhor a composição populacional é denominada de "burocracia representativa". Essa categoria teórica foi pioneiramente explorada na Inglaterra, no final da década de 1940, por John Donald Kingsley, com a finalidade de analisar, debater e compreender o papel desempenhado por servidores civis britânico. Ela se propõe a investigar como agentes públicos podem moldar interesses e ações com base em suas experiências, abordando aspectos sociológicos, como gênero, raça/cor, etnia, classe social e territorialidade. Esses elementos convergem na gestão de recursos humanos e nas práticas organizacionais, configurando uma visão sistêmica de gestão de pessoas no setor público.
A burocracia pode ter uma representação passiva e/ou ativa. A representação burocrática passiva acontece quando servidores públicos refletem as características sociais, demográficas e territoriais da população a que servem. No contexto brasileiro, por exemplo, em que há uma maior proporção de mulheres e pessoas negras na população, deveríamos esperar uma presença proporcional de mulheres e pessoas negras no serviço público. A representação passiva tem um efeito simbólico importante de legitimar políticas.
Além disso, estudos recentes sobre burocracia representativa evidenciam que a mera presença proporcional de mulheres e pessoas negras no serviço público impacta a percepção das pessoas sobre o serviço público prestado e motiva uma maior diversidade de pessoas a se envolverem de forma mais ativa e colaborativa na entrega do serviço público e na construção de políticas. Por exemplo, a presença de mulheres policiais aumenta a chance de as mulheres procurarem uma delegacia para denunciar uma violência sexual ou doméstica.
Por sua vez, a representação ativa ocorre quando servidores tomam decisões e emitem opiniões que representam os valores e interesses agregados dos grupos populacionais com os quais se identificam, favorecendo uma alocação mais democrática de recursos públicos. Por exemplo, estudos demonstram que mulheres em cargos públicos se mostram mais sensíveis a mudanças na gestão que afetam diretamente as mulheres como ações afirmativas, política de creche, divisão de tarefas e igualdade salarial.
Vale destacar que ampliar a presença de mulheres, de pessoas negras e de pessoas de todas as regiões do país é essencial para que os corpos da burocracia espelhem a demografia do país. No entanto, a presença de pessoas de grupos minorizados, como pessoas negras e mulheres, não implica na representação ativa automaticamente. Pessoas de grupos minorizados podem simplesmente buscar o empoderamento individual que advém com o cargo público, com todo o direito. Mas se servidores, ao representarem a diversidade da população, reconhecem as diferenças de acesso a oportunidades pelos diferentes grupos sociais, seu comportamento, atitudes e valores ao desempenhar o trabalho no serviço público resultarão em relações sociais mais justas e na transformação das estruturas estatais que reforçam as desigualdades entre homens e mulheres, entre pessoas brancas, indígenas e negras e entre territórios, com o fim de garantir direitos humanos e sociais a todos grupos populacionais.
Portanto, para que o serviço público mais diverso de fato represente mudanças no comportamento da burocracia de modo a aumentar a probabilidade de a gestão pública agir para mudar a situação de desigualdades no país é preciso transformar os padrões de ação na política, as interações discriminatórias na gestão, os estereótipos de gênero, raça, etnias e regionais construídos socialmente e que estão impregnados nas pessoas que atuam no serviço público, como em toda a sociedade. Para tanto, a capacitação e a formação de servidores são essenciais para a diversidade de servidores impactar na forma como a burocracia reconhece os problemas de desigualdade existentes e como propõe soluções por meio de políticas.
Estudo realizado na Universidade Federal da Bahia demonstrou que mulheres burocratas que têm como propósito claro agir sobre a realidade de desigualdade entre homens e mulheres e mudar os fatores que as estruturam por meio do seu trabalho no serviço público passaram por formações sólidas com conhecimento em estudos de gênero e feminismos. Outros fatores que favorecem a ativação da burocracia, segundo o estudo, são: a maior proporção de pessoas do mesmo grupo social nas equipes de trabalho, um ambiente de trabalho favorável, participação em redes e coletivos, e o acesso a cargos comissionados com maior poder de decisão. A combinação desses fatores com a formação de servidores é, portanto, chave para que grupos minorizados exerçam influência sobre a gestão pública de modo crítico e ajam em favor de interesses coletivos no planejamento governamental, na alocação de recursos públicos, no desenho e na implementação de políticas.
Junto com a proposta de um Concurso Nacional, o governo federal propõe uma formação básica para servidores públicos federais na Escola Nacional de Administração Pública na modalidade ensino à distância, com carga horária de 250h, a ser realizada no primeiro ano de exercício.
A meta é alcançar servidores de todo o país das mais diversas carreiras públicas. A formação proposta prevê disciplinas relacionadas a conceitos de Estado, democracia, organização do Estado, ciclos de políticas, planejamento e orçamento, ética e integridade pública, diversidades de raça, etnia e gênero, desigualdades regionais, entre outros. Objetiva-se formar servidoras e servidores públicos com reflexão crítica sobre o seu papel no Estado e que se comprometam com os interesses públicos e com a construção democrática de políticas de redução das desigualdades do país.
É imprescindível destacar que tanto os burocratas de nível de rua, que trabalham diretamente no atendimento ao cidadão, como aqueles da alta gestão do governo federal tomam decisões que influenciam diretamente na trajetória de vida das pessoas, ampliando ou limitando suas oportunidades. Em qualquer nível organizacional, servidores públicos desfrutam de algum espaço de liberdade de decidir - é o que chamamos de discricionariedade. De acordo com o cargo público ocupado e o poder de decisão atribuído a sua posição, a burocracia tem maior ou menor capacidade de definir a natureza, quantidade e qualidade dos benefícios e sanções distribuídos por suas organizações. Quem está à frente da gestão pública desempenha um papel fundamental na interpretação das legislações e normativas, transformando-os em procedimentos organizacionais e formulando políticas públicas.
A ideia de que servidores públicos devem ser neutros em suas decisões, baseadas unicamente na expertise e isentas de influências pessoais, prevaleceu historicamente na teoria da administração pública de diversas nações. Porém, decisões “neutras” voltadas para eficácia e eficiência na gestão, sem olhar se todos os grupos de uma sociedade e regiões do país estão sendo beneficiados pelo uso dos recursos públicos, geram desigualdades de classe, raciais, de gênero e territoriais. Buscar uma burocracia representativa é reconhecer que pessoas não são neutras, que elas têm opiniões e perspectivas de acordo com sua experiência vivida. Tomar decisões baseadas em interesses coletivos de determinados territórios e grupos não se contrasta com o princípio da impessoalidade dos servidores, que diz respeito a não utilizar recursos e bens públicos para interesse e promoção pessoal ou de partidos políticos.
Sabendo-se da máxima que concurso se faz até passar, espera-se incluir mais e mais representatividade de classe, raça, gênero e territórios entre candidatas e candidatos aprovados, com esperada repercussão na burocracia do executivo civil federal. Espera-se estimular, entre os grupos sub representados, o desejo, a expectativa e a motivação para compor a burocracia do nosso país. É um convite, um chamado. O espaço do serviço público deve ser de mais fácil acesso a todos e todas, proporcionando diversidade de perspectivas em todas as carreiras, órgãos e posições hierárquicas. Promover uma burocracia representativa é dever do Estado e, mais ainda, é condição essencial para a construção de uma nação democrática, que promova desenvolvimento com justiça social e igualdade de gênero, racial e territorial.
[1] Doutora em sociologia pela UnB. É servidora da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do MGI e, atualmente, é Diretora de Provimento e Movimentação de Pessoal na Secretaria de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI).
[2] Doutora em estudos sobre a mulher, gênero e feminismos pela UFBA. É servidora da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do MGI e Diretora de Educação Executiva da Enap.
[3] Doutora em administração pela UnB. É servidora da carreira de Técnica em Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e, atualmente, é Diretora de Avaliação, Monitoramento e Gestão da Informação, na Secretaria de gestão do SINAPIR, Ministério da Igualdade Racial.