Por que a desinformação “cola”?
Por Elizabeth Krauter e Vera Rita de Mello Ferreira
A desinformação não é um fenômeno novo. Notícias falsas sempre existiram. No entanto, o avanço das plataformas digitais mudou seu alcance e impacto.
Tradicionalmente, jornais, rádio e televisão eram os principais fornecedores de informações. Hoje, qualquer pessoa com conexão à internet pode criar e distribuir conteúdo com enorme alcance.
A prática de desinformação é comum em várias plataformas, incluindo mídias sociais, sites de notícias e mensagens instantâneas.
Por desinformação entendemos a disseminação de informações falsas ou enganosas com a intenção de manipular ou induzir ao erro.
A desinformação pode colocar em risco a vida de pessoas. Estamos assistindo a uma enxurrada de desinformação sobre as enchentes no Rio Grande do Sul, o que tem atrapalhado os serviços de ajuda e resgate, prejudicando ainda mais a população da região.
A desinformação pode polarizar opiniões e levar a conflitos entre grupos. Pode, também, influenciar eleições e ameaçar a democracia. Além disso, pode reduzir a confiança nas instituições, na mídia e nas autoridades.
Como vimos durante a pandemia de Covid-19, a desinformação sobre saúde pode afetar a adesão a medidas preventivas e a tratamentos, quando informações falsas lançaram dúvidas sobre tratamento, distanciamento social, uso de máscaras, vacinas, colocando vidas em risco e dificultando ações de enfrentamento.
Da mesma forma, desinformação sobre a crise climática pode atrasar a adoção de medidas necessárias para garantir o futuro do planeta.
Do ponto de vista psicológico, como podemos entender esse fenômeno tão deletério?
O viés de confirmação pode ajudar a explicar esse comportamento. Ele consiste na tendência a prestar mais atenção, a valorizar e a considerar como verdadeiras – ou prováveis, quando se trata de futuro – apenas as informações que não questionem as crenças já existentes, e a ignorar as informações que as desafiem. Em outras palavras, acredita-se somente nos dados que confirmem e se encaixem naquilo que já era, anteriormente, pensado.
A heurística afetiva1 – destacada por Daniel Kahneman, em seu discurso do Prêmio Nobel de economia, em 2002, como sendo uma das mais importantes descobertas sobre tomada de decisão –, é outra denominação desse modo de funcionar psiquicamente. Ela se refere a uma avaliação automática, nem sempre consciente, e baseada em afetos e sentimentos, que julga, com base em emoções, as informações que seriam consideradas no processo de escolha. Esta ideia se aproxima da teoria psicanalítica do pensar, proposta desde Freud2, passando por Klein3 até Bion4, e sintetizada na imagem de um semáforo emocional5 – ao se defrontar com um estímulo, a mente reage de forma imediata, automática, inconsciente e mirando apenas o curto prazo, conforme um critério binário. Se houver concordância, se a informação combina com crenças, valores, expectativas e desejos, é como se acendesse uma luz verde, que permite a entrada na consciência, considerando que aquele dado é válido, verdadeiro, confiável – mesmo que não passe de uma ilusão ou equívoco. Se houver discordância, isso gera desprazer e desconforto, que não são bem-vindos e, nesse caso, é como se acendesse uma luz vermelha, sendo os dados prontamente descartados – ainda quando sendo reais e trazendo consequências ruins no médio ou longo prazo.
Esse viés, em suas diferentes formas, é comum nas redes sociais. Os algoritmos tendem a mostrar conteúdo com base em interações anteriores. Isso pode reforçar as crenças já existentes e limitar a exposição a pontos de vista divergentes, amplificando a disseminação de desinformação.
Além disso, num mundo de mudanças tão rápidas – e, com frequência, drásticas –, incertezas, volatilidade e senso de urgência contribuem para pressionar nossa mente, que já possui fragilidades e limitações, aumentando a sobrecarga psíquica de lidar com os desafios cotidianos. Assim, as redes sociais surgem como válvula de escape, uma espécie de ‘recreio’ onde pessoas exaustas se refugiam para escapar de tantas demandas. Já sabemos que as redes sociais atuam de forma equivalente a vícios, mantendo-nos prisioneiros naquele espaço por muito mais tempo do que o pretendido. Decorre daí o cuidado que se deve ter com crianças e adolescentes expostos às ‘tentações’ do celular e, naturalmente, à desinformação, também.
A partir do que conhecemos sobre a psicologia da escassez6, podemos observar que mentes exauridas funcionam com menor eficiência, perdendo capacidade cognitiva – o próprio QI é reduzido –, e esgotando sua capacidade de autocontrole, que é limitada. Dessa forma, de um lado dispõe-se de menor nível de inteligência para avaliar as informações recebidas (pode-se acreditar que a Terra é plana, que os ETs podem nos salvar, a vacina tem chip etc.) e, de outro lado, o autocontrole reduzido contribui para o compartilhamento imediato e automático da desinformação, que sequer passa por um exame mais cuidadoso.
Outros elementos, que também podem impactar na disseminação em massa de desinformação, são o comportamento de manada, que pode induzir a ações de imitação e contágio, que se retroalimentam, e o F.O.M.O. (fear of missing out, em inglês), que é o medo de ficar de fora. Afinal, ninguém gosta de não saber, ao mesmo tempo em que acredita que os outros saibam, do que quer que seja. Assim, as redes sociais, que parecem trazer ‘informações confiáveis’ se tornam fonte de conforto e aparente controle sobre o mundo cada vez mais em transformação rápida e constante.
Lutamos com as armas que temos para não submergir em meio a tantos desafios. Infelizmente, essas armas são, muitas vezes, precárias, resultando em lamentáveis tiros no pé, como tem sido o caso no desastre do Rio Grande do Sul e em tantas outras situações em todo o mundo. Desinformação pode até matar, além de desmanchar redes civilizatórias que deveriam nos sustentar.
Notas
1 O conceito foi estudado pelo psicólogo americano Paul Slovic, amigo e colega de Kahneman, citado aqui: Kahneman, D. “Maps of bounded rationality: a perspective on intuitive judgment and choice”. Prize lecture – Nobel Prize, Dec.8th, 2002. Disponível em http://nobelprize.org/economics/laureates/2002/kahnemann-lecture.pdf
2 Freud, S. (1911, 1976) “Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental”. v.12. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
3 Klein, M. (1963, 1985) “Nosso Mundo Adulto e suas Raízes na Infância”. In: O Sentimento de Solidão – Nosso Mundo Adulto e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Imago.
4 Bion, W. (1961, 1967) “A Theory of Thinking”. In: Second Thoughts - Selected Papers on Psychoanalysis. London: William Heinemann Medical Books Limited.
5 Ferreira, V.R.M. (2023) A Cabeça do Investidor. Rio de Janeiro: Alta Books, 2ª.ed. (1ª. ed. 2011. São Paulo: Évora).
6 Mullainathan, S., Shafir, E. (2016) Escassez: uma nova forma de pensar a falta de recursos na vida das pessoas e nas organizações. Rio de Janeiro: Best Seller.