Homenagem a Daniel Kahneman
Kahneman marcou
Elizabeth Krauter e Vera Rita de Mello Ferreira
“Kahneman marcou todo mundo”.
Essa percepção, provavelmente, é ‘enviesada’ e vem da nossa própria bolha. Mas vamos pensar: será que haveria alguma bolha significativa de ciências comportamentais, em 2024, sem a influência desse psicólogo social que recebeu o Prêmio Nobel de Economia, em 2002?
Daniel Kahneman – por mais de uma década, com seu grande amigo e colega de área, Amos Tversky, além de outros coautores ilustres – realizou pesquisas, experimentos e análises detalhadas sobre o funcionamento mental e a tomada de decisão. Deixou diversos artigos publicados em importantes periódicos científicos e o livro de divulgação científica para o grande público – Rápido e Devagar: duas formas de pensar, de 2011 – best-seller, traduzido para o português1. Deixou, também, inúmeras entrevistas e vídeos de palestras que podem ser encontrados no Youtube, alguns com tradução para o português.
Kahneman esteve entre nós, algumas vezes, no Brasil. Todos que o conheceram pessoalmente [uma de nós teve esse privilégio!] são unânimes em elogiar sua simplicidade e seriedade ao tratar dos temas dessa fronteira entre psicologia e economia. Era atencioso e acessível a quem não tinha tanta familiaridade com o assunto, rigoroso e honesto nos seus estudos, reconhecia as próprias limitações, tinha interesse em conhecer visões diversas das suas (desde que bem fundamentadas) e, ainda por cima, era gentil e modesto. Inspirador como pesquisador e pessoa.
Mas por que Kahneman teve tanto impacto na ciência?
Seguindo o caminho aberto por Herbert Simon, Prêmio Nobel de Economia em 1978, Kahneman e Tversky concordavam que a racionalidade humana é limitada, o que leva as pessoas a se afastarem dos comportamentos esperados pela teoria econômica tradicional.
Na tentativa de simplificar e agilizar o processo de tomada de decisão, as pessoas utilizam heurísticas (atalhos mentais). Segundo Kahneman e Tversky, as heurísticas “são bastante úteis, mas às vezes levam a erros graves e sistemáticos”, os chamados vieses. Eles identificaram 3 grupos de heurísticas: representatividade, disponibilidade e ancoragem. O julgamento a partir de estereótipos, em diversas formas (pela heurística da representatividade); nossa suscetibilidade à saliência ou ao ‘bombardeamento’ de notícias sobre determinados fatos, que nos levam a considerá-los mais frequentes ou prováveis de ocorrer (heurística da disponibilidade); ou a influência exercida sobre a nossa avaliação, por algum número, valor, imagem ou outro estímulo, muitas vezes de forma inconsciente, embora sejam irrelevantes para essa avaliação (heurística da ancoragem), são exemplos desses vieses. A esse respeito, cabe observar que Kahneman e Tversky descreveram pouco mais de uma dúzia de vieses, e não centenas, como apresentados atualmente em redes sociais, por exemplo....
Em 1979, Kahneman e Tversky publicaram o famoso artigo sobre a Teoria da Perspectiva, em que apresentam o conceito de aversão à perda. Segundo esse conceito, as pessoas são sempre avessas à perda, o que pode levá-las a se expor a riscos que, normalmente, não correriam. Eles introduziram também o conceito de framing (ou enquadramento): o modo como as informações são apresentadas pode influenciar a decisão das pessoas.
Em seu livro Rápido e Devagar: duas formas de pensar, Kahneman descreve o sistema dual de pensamento: Sistema 1 e Sistema 2. Essa maneira de sistematizar os dois modos de funcionamento mental mostra-se muito útil, em especial para aqueles que não possuem formação em psicologia, pois chama a atenção para importantes diferenças entre estas duas maneiras como nossa mente opera [lembrando que não se refere a funcionamento ou localização cerebral].
O Sistema 1 é rápido e jorra sem esforço ou controle, por associações e encaixe (muitas vezes, emocional), só enxergando o curto prazo. Ele é a sede dos impulsos e repositório da experiência humana ao longo de milênios. Mas não é sempre preciso, exato, em suas avaliações, além de não ter facilidade para aprender – no máximo, pode ser treinado. No entanto, é o lado executor, o responsável por nossas ações.
Já o Sistema 2 é lento, justamente porque é capaz de funções cognitivas mais sofisticadas, como o raciocínio, a deliberação, o acesso à linguagem, a noção de tempo (por exemplo, pode visualizar, mentalmente, o longo prazo) e, portanto, pode planejar e ter intenções. Aqui temos a possibilidade de aprender, de inserir a educação e as informações.
Mas... o Sistema 2 não é o executor das ações que, como vimos, cabe ao Sistema 1. E aqui tem-se vários desafios – como reduzir a distância entre intenção e ação em tantas situações, inclusive relacionadas às políticas públicas? Outro aspecto importante é que o Sistema 2 administra o autocontrole e ambos – Sistema 2 e autocontrole – são finitos. Isso significa que há esforço exigido, o que pode gerar cansaço e, mesmo, esgotamento. Em outras palavras, além de falível, é impossível viver apenas com o Sistema 2.
Por fim, depois de vários anos dedicado aos aspectos ditos cognitivos, que podemos entender como associados ao ‘intelecto’, relacionados ao processamento do conhecimento, Kahneman reconheceu a importância e a força do lado emocional. Em seu discurso do Prêmio Nobel, por exemplo, ele se refere à heurística afetiva, um conceito desenvolvido por seu amigo, o psicólogo Paul Slovic, que propõe que todo estímulo evoca uma avaliação afetiva, que não seria sempre consciente. Kahneman considera esse conceito como “provavelmente o desenvolvimento mais importante no estudo de julgamentos por heurísticas nas últimas décadas”. Ele também havia estudado, com outros colegas, esse processo de “avaliação afetiva automática” e “centro emocional subjacente às atitudes”, que seria o principal determinante de muitos julgamentos e comportamentos. Em seu discurso, Kahneman destaca, também, o conceito de avaliação de risco como se fosse um sentimento (desenvolvido por George Loewenstein), reconhecendo afeto e emoções como fundamento e matriz dos pensamentos. Segundo ele, foram necessários trinta anos para obter-se uma visão mais integrada do papel do afeto nos julgamentos intuitivos (que é como ele se refere ao funcionamento do Sistema 1).
As ideias de Kahneman não chegam a revolucionar o campo da psicologia, até porque ele e Tversky beberam na fonte da psicologia cognitiva, uma importante abordagem dentro da área, além de já existir, há muitas décadas, a psicologia econômica, em especial na Europa. E, numa apresentação em 2013, Kahneman admitiu que a teoria dos dois sistemas seria uma versão moderna da teoria freudiana...
A partir do encontro de Kahneman e Tversky com o economista Richard Thaler (que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2017) temos o nascimento da economia comportamental e aí, sim, houve um terremoto na economia tradicional, desafiada em seu âmago pelas propostas desse trio incrível.
Kahneman, Thaler e alguns outros pesquisadores coroam seu trabalho ao propor aplicações práticas de todo esse conhecimento reunido – de preferência, para o benefício dos cidadãos, das populações.
No Brasil, a CINCO nasce com a vocação de honrar essa proposta.
1. Kahneman, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.