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VAMOS TODOS NOS QUEIXAR AO BISPO, ARTIGO DE OSVALDO FERRERIRA VALENTE
Publicado no jornal O Tempo, de Belo Horizonte
02/11/2005
Nos meus tempos de criança, no interior, quando alguém começava a reclamar muito, ou mesmo com impertinência, de determinada coisa, era candidato a receber a seguinte recomendação – Vá se queixar ao bispo! Na verdade, nunca soube se alguém chegou a seguir o tal conselho, ou se o bispo estivesse disposto a se meter naquelas pendências diárias.
Os tempos são outros e, ao recorrer às diversas mídias para sofrer um pouco com os dramas diários, que despontam em profusão, acabo me deparando sempre , nos últimos dias, com as queixas de dom Luiz Flávio, bispo de Barra (BA), relacionada com a transposição de águas do rio São Francisco, o nosso maltratado Velho Chico. Será que o bispo recebeu as reclamações daqueles que se sentiam órfãos e resolveu passá-las adiante? Será que a surdez das autoridades federais, mesmo diante dos clamores de especialistas , vai ser curada com aquela posição firme e extrema do bispo? Será que os tempos modernos inverteram até o meu velho dito popular, ou seja, em lugar de ser um possível recebedor de queixas, é ele quem se queixa?
Mas deixando as brincadeiras de lado, a atitude do bispo trouxe aquilo que antes parecia impossível: a aparente disposição do governo em abrir verdadeiramente o diálogo com a sociedade. E talvez o comportamento dele acabe estabelecendo um ponto de convergência de opiniões e um chamamento do governo à racionalidade no trato de assuntos com forte componente técnico. Aquelas argumentações constantes de que as audiências públicas foram oportunidades de debate não passam de conversa fiada. Todos nós sabemos que as audiências são carregadas de sentimentos emocionais e não permitem análises mais aprofundadas das conseqüências das ações em pauta.
A clarividência do religioso, apesar da expressão radical durante a greve de fome perpetrada há dias, serve para reforçar a idéia de que decisões políticas ‘de fazer’ devem ser acompanhadas de soluções técnicas ‘de como fazer’. No caso em pauta, a decisão de disponibilizar água para a população do semi-árido nordestino é uma importante resolução política, e que já deveria ter sido tomada há muito tempo. Como viabilizar tal disponibilidade, entretanto, se com transposição, construção de cisternas, de açudes, de barragens subterrâneas ou de poços, por exemplo, não pode ser decisão de políticos, é assunto técnico e a ser discutido por especialistas. Criadas as alternativas técnicas, as comunidades serão chamadas para ajudar na seleção das mais adequadas às suas condições socioeconômicas. Mas, impropriamente, os políticos acabam decidindo ‘o como fazer’ e arregimentando os técnicos das instituições ligadas aos governos para justificarem e “venderem” as soluções nascidas em palanques eleitorais. E como esses técnicos são hierarquicamente pressionados, o bispo é sábio ao falar na necessidade de se ouvir entidades não governamentais, universidades etc.
Ele ainda está coberto de razão ao exigir compromissos firmados de que a revitalização da bacia vai ser tratada com o mesmo empenho dedicado à transposição. Ele desconfiou, e parece que ainda desconfia, de promessas de conteúdo genérico. Quantas já foram solenemente esquecidas por esse governo? Por exemplo, dos R$ 600 milhões previstos para a revitalização, desde 2004, só foram liberados R$ 68 milhões até agora, e nós já estamos em outubro de 2005. Também é preocupante o montante de R$ 4,5 bilhões, que facilmente serão dobrados por prorrogações de contratos, para criar rios perenes no semi-árido. A presença deles não é nenhuma garantia de boa distribuição de água, pois se isso fosse verdade, e muitos têm mostrado tal preocupação com insistência, quem já mora nas regiões cortadas pelo São Francisco não estariam mais sofrendo escassez de água, como é o caso do norte de Minas. Além disso, a obra é demorada, de manutenção cara, e os nossos amigos do nordeste vão penar ainda por muito tempo à espera de seus efeitos. Daí alternativa como a das cisternas parece uma boa pedida, pois permite maior envolvimento da comunidade e maior rapidez de ação. E com os R$ 4,5 bilhões poderiam ser construídas cinco milhões de cisternas, armazenando água para quinze milhões ou mais de pessoas. E olhe que a maior justificativa do projeto é o possível atendimento a doze milhões de habitantes do semi-árido nordestino.
O bispo tornou-se um intermediário fundamental nas discussões e decisões sobre o projeto. Vamos, portanto, resgatar o velho ditado e vamos todos nos queixar ao bispo para que ele possa continuar a reclamar por revitalização, por cisternas e por outras alternativas apontadas pelos especialistas.
OSVALDO FERREIRA VALENTE
Professor titular aposentado da UFV; Especialista
em hidrologia e manejo de bacias hidrográficas e
autor do livro “Conservação de Nascentes- Hidrologia
e Manejo de Bacias Hidrográficas de Cabeceiras”