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Transposição: projeto tecnicamente ruim, socialmente preocupante e politicamente desastroso
Por João Suassuna
http://cartamaior.com.br/?/Coluna/Um-projeto-politicamente-desastroso/19786
As autoridades governamentais não reconheceram o mérito do conteúdo existente no documento elaborado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, quanto ao uso das águas fora dos limites da bacia do rio.
Quando o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco elaborou o Plano Decenal do uso de suas águas além dos limites da sua bacia, já sabia das limitações volumétricas existentes no rio. Tanto isso é verdade que não proibiu, pura e simplesmente, o uso de suas águas: apenas o restringiu para o abastecimento humano e dessedentação animal, isso em caso de escassez comprovada. Entretanto, essas deliberações do Comitê vieram de encontro às expectativas do Governo Federal, que vem trabalhando no sentido de usar as águas do rio São Francisco para o agro-negócio, num claro desrespeito às possibilidades técnicas e às restrições do Comitê na execução da obra.
Essas questões ficaram muito claras nas discussões havidas para aprovação do mencionado Plano. Simplesmente as autoridades governamentais não reconheceram o mérito do conteúdo existente no documento elaborado pelo Comitê, principalmente quanto ao uso das águas fora dos limites da bacia do rio, levando essa questão à esfera do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (instância superior à do Comitê da bacia) para análise e aprovação, com a inclusão do uso mais abrangente da água (inclusive para o agro-negócio). Isso foi conseguido com muita facilidade, pois no âmbito do Conselho o governo federal tem ampla maioria dos votos.
Esse desgaste inicial entre o Comitê e o Governo Federal não veio em boa hora. Realmente, o projeto irá ser executado em um rio comprovadamente limitado em termos volumétricos, tendo como principal prova disso a crise energética havida no ano de 2001, ocasião na qual a represa de Sobradinho - que regulariza a vazão do São Francisco -, chegou a acumular apenas 5% do seu volume útil. Nesse sentido, é bom lembrar que o rio São Francisco é responsável por mais de 95% da energia que é gerada no Nordeste. Essas questões vieram a ser comprovadas posteriormente através de uma reunião promovida no Recife, em agosto de 2004, pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, na qual foram reunidos 40 dos principais expoentes da hidrologia nacional, para discutirem a transferência de águas entre grandes bacias hidrográficas, com enfoque especial no projeto de transposição do rio São Francisco.
Nessa reunião, os volumes do rio foram exaustivamente analisados, tendo os técnicos chegado à conclusão de que o rio tem um volume alocável de apenas 360 m³/s, dos quais 335 m³/s já foram outorgados, ou seja, já estão com o direito de uso assegurado. O que resta nesse balanço volumétrico são apenas 25 m³/s para serem utilizados em um projeto cuja demanda média será de 65 m³/s, podendo a vazão máxima atingir cerca de 127 m³/s, ou seja, o rio já não dispõe, hoje, dos volumes necessários ao atendimento das demandas do projeto. O diferencial volumétrico para satisfazer tais demandas somente será obtido na represa de Sobradinho quando esta estiver com 94% de sua capacidade preenchida, ou seja, quando estiver praticamente cheia. De acordo com os hidrólogos da SBPC, essa aproximação volumétrica só será possível em 40% dos anos, pois a tendência da represa de Sobradinho, desde a época de sua construção, é de encher 4 vezes a cada 10 anos. Portanto, na nossa ótica, o projeto tem um orçamento demasiadamente elevado (estão previstos cerca de R$ 4,5 bilhões, numa primeira fase) para ser utilizado em atividades cujo funcionamento pleno só será possível em apenas 40% dos anos. Para se ter uma idéia dessa problemática, a represa de Sobradinho verteu em 1997 e voltou a verter em 2004. Nesses sete anos, a bacia do rio passou por secas sucessivas, culminando, em 2001, com a mais séria crise energética da nossa história.
Essas questões têm preocupado as populações ribeirinhas, principalmente as comunidades indígenas que habitam áreas próximas às tomadas das águas do projeto, cujo receio é o de o rio chegar às vias da exaustão e prejudicar a agricultura ali praticada. Essas comunidades de certa forma têm seus motivos de preocupação. A depender dos volumes que venham a ser retirados e de sua aplicação, pode-se ter, no rio São Francisco, os problemas já existentes nos rios Colorado, nos Estados Unidos, e Amarelo, na China, cujos caudais já não chegam mais à foz, por problema advindos do uso indiscriminado de suas águas ao longo de suas bacias. O rio Colorado, por exemplo, recuou 100 km de sua foz, dando lugar à formação de um deserto pelo processo de salinização a que a área de sua primitiva embocadura foi submetida.
No caso do rio São Francisco, essas questões irão depender da forma segundo a qual serão empreendidas as retiradas dos volumes, principalmente em épocas de estiagens. Quem irá coordenar e de que maneira será feita a abertura e o fechamento das torneiras? As comunidades ribeirinhas têm toda razão de ficarem preocupadas com as incertezas nos gerenciamentos volumétricos das águas e certamente ninguém quer para o Velho Chico a mesma sorte (ou azar) dos rios Colorado e Amarelo.
Finalmente, é preocupante a inquietação que o projeto está causando ao povo nordestino. As desavenças existentes entre os estados exportadores das águas do rio São Francisco e os estados receptores são enormes. E isso não é bom. Para pôr mais lenha nessa fogueira, o posicionamento oficial do Governo de Minas Gerais - o segundo maior colégio eleitoral do País -, contrário ao projeto da transposição, certamente irá abalar as determinações do atual governo em realizar a obra conforme vinha pretendendo. O projeto irá necessitar de novas rodadas de negociações por parte dos nossos dirigentes, sob pena de o governo sair arranhado em suas pretensões de criar uma obra grandiosa até o fim de seu mandato. É viver para crer. A cada dia que passa nos convencemos de que a vontade política não pode estar acima das possibilidades técnicas quando se trata de realizar as ações exigidas para o nosso desenvolvimento.
Recife, 10 de junho de 2005.