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Transposição? Por enquanto, sou contra. Artigo de Denise Neumann
14/10/2005
No final de março deste ano, os repórteres Chico Santos e Leo Pinheiro, do Valor, percorreram, durante 11 dias, 2.200 quilômetros nos Estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Bahia. O roteiro incluiu, basicamente, a área a ser beneficiada pelo Eixo Norte da transposição do rio São Francisco, estendendo-se até Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), onde o uso das águas do mesmo rio já provocou fortes mudanças sócio-econômicas.
Da riqueza do material colhido na região - publicado neste jornal nas edições dos dias 4 a 7 de abril - duas certezas ficaram, uma delas surpreendente: há muito desperdício de água na região, inclusive no semi-árido nordestino; e, quando o poder público não pára um programa no meio por conta de disputas políticas, projetos de irrigação trazem emprego, renda e recuperação de cidadania ao sertão. Mas o projeto de R$ 4,5 bilhões apresentado pelo governo para a transposição do São Francisco não contempla - na versão atual - uso para irrigação.
Na região dos municípios de Sousa e Aparecida, no sertão da Paraíba, o Canal da Redenção - obra de R$ 55 milhões, com 90% de recursos bancados pelo governo federal - há dois anos joga água fora. Sua vazão é de 4 mil litros de água por segundo, 40% da água que se planeja levar pelo eixo Leste da transposição fora dos períodos de cheia do lago de Sobradinho. A água deveria irrigar o projeto Várzeas de Souza, que consumiu outros R$ 50 milhões em desapropriações. Como o assentamento não prosperou, até março, a água era desviada, mas depois ia embora.
No Ceará fica o maior açude do país, o Castanhão, com capacidade para 6,7 bilhões de metros cúbicos de água. Quase ao lado dessa imensidão, vive a família de Raimunda Erundina Araújo, que, apesar da proximidade, usa água da chuva ou de carro-pipa. A do açude - um dos que receberá água da transposição - não pode ser usada pela população vizinha. Que também não tem terra para ser irrigada e plantada.
No mesmo Ceará, o projeto de Tabuleiro de Russas começou a sair do papel após 12 anos de obras e gastos de R$ 320 milhões. As primeiras lavouras começaram a ser plantadas apenas nos últimos meses de 2004. Quando estiver pronto (serão 11 mil hectares), a demanda por água será de 14 mil litros por segundo (14m3/s), mais da metade de toda a água que será drenada do São Francisco em períodos normais (26m3/s). E a expectativa é que gere 22 mil empregos.
Esses três casos são apenas alguns dos relatados e fotografados na reportagem de Chico Santos e Leo Pinheiro. Mas eles ajudam, e muito, a pensar o projeto da transposição e os problemas de desenvolvimento do Nordeste. Eles confirmam o desperdício de dinheiro público, mostram que além de existir água é preciso que a população - e não apenas os grandes fazendeiros com disponibilidade de capital - tenha acesso à ela e também ajudam a questionar a "grandiosidade" da transposição.
Diz o governo que 12 milhões de pessoas serão beneficiadas. A maior parte dessa população está nas médias e grandes cidades do Nordeste. No semi-árido, vivem 9 milhões de brasileiros. Desses, no entanto, apenas 5% (cerca de 450 mil) estão nas regiões que serão beneficiadas pelos eixos Leste e Norte do projeto. O restante está em outros Estados do Nordeste
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Água vai chegar a 5% da população do semi-árido
Ao mesmo tempo, o programa de um milhão de cisternas, coordenado pela Articulação do Semi-Árido (ASA), tem custo total de US$ 424,3 milhões e planeja atingir cinco milhões de pessoas em cinco anos. Desde julho de 2003 foram construídas 100 mil cisternas, em dois anos de projeto. Não valeria a pena um maior apoio federal? O custo-benefício parece muito mais correto, se estamos falando de projetos para garantir água para o uso das famílias e dos animais.
Cisternas e transposição não são projetos, por si, excludentes. Eles atendem problemas distintos e podem ser complementares. Mas a discussão é de prioridade e foco.
Se o foco for irrigação, o projeto da transposição fica ainda mais capenga. A vazão de 27 metros cúbicos por segundo (m3/s) é insuficiente. Apenas um projeto como o de Tabuleiro de Russas, por exemplo, vai consumir metade desse total. Para um uso que contemple irrigação (e o conseqüente acesso das famílias a uma oportunidade de geração de renda na região onde moram hoje), o volume de água a ser desviado do São Francisco deveria ser maior. Isso poderia ser feito, diz o governo, nos períodos de cheia do lago de Sobradinho. Só que os períodos nos quais os rios do Nordeste perdem água - e secam ou viram filetes d'água - são os mesmos em que o São Francisco "encolhe". Seis por meia dúzia.
Usar uma vazão maior do São Francisco - os canais planejados teriam capacidade para levar adiante até 127 m3/s - não é possível, dizem pesquisadores sérios, como João Suassuna, do Instituto Joaquim Nabuco (Recife-PE), e Aziz Ab´Sáber, professor-emérito da USP. O argumento é a incapacidade do rio. É preciso, primeiro, revitalizá-lo.
A transposição do São Francisco é uma boa e correta ideia. O projeto atual, tal como está, não o é. Antes de novas obras mirabolantes, é preciso planejar, terminar obras inacabadas, pensar no uso da água, gerenciar projetos que desperdiçam esse bem precioso, tratar o esgoto de 450 cidades da bacia do rio que não possuem saneamento básico, entre uma infinidade de pequenas ações que, integradas, podem ajudar muito mais.
Talvez a visão de revitalizar o rio, planejar melhor o uso de recursos, propor soluções mais amplas, apoiar um programa massivo de construção de cisternas seja postura fácil para quem mora no Sudeste, em um apartamento cujo prédio possui caixa d'água capaz de armazenar volume suficiente para suportar, inclusive, os rodízios propostos pelo governo paulista em épocas de seca nas represas que cercam a região metropolitana. Mas, por enquanto, fico à espera de argumentos melhores e mais consistentes que aqueles que têm sido oferecidos à opinião pública para vender o atual projeto.
Denise Neumann – Colunista do Valor Econômico