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Transposição do São Francisco: as incoerências e os peixes, artigo de Carlos Bernardo Mascarenhas Alves
20/07/2005
Quadro Geral
Muito tem sido dito sobre a inviabilidade do projeto de Transposição do rio São Francisco, ou agora maquiadamente denominado “Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional” (1). O que se pode vislumbrar em meio à névoa que se formou em torno do assunto são posições variadas, calcadas em argumentos técnicos, sentimentalismos, denúncias de vantagens políticas e beneficiamentos econômicos, entre outros. Nessa breve exposição de idéias, pretendo levantar algumas questões e colocar uma nova, pouco ou nada comentada, a respeito da biodiversidade de peixes e de outros elementos da fauna aquática.
Antes de qualquer consideração sobre os temas acima mencionados, é importante esclarecer que regiões áridas não são próprias para incentivo de adensamento humano. Poucos são os exemplos de regiões áridas com grande população residente ou grandes metrópoles. O atual projeto, além de teoricamente melhorar a condição de vida dos que lá já se encontram pode, por outro lado, incentivar o aumento de sua população. Isso acarretaria novos problemas e necessidade de mais água no futuro. Em ecologia, o conceito de capacidade suporte define que uma área não comporta mais do que um número definido de organismos vivos, por serem finitos os recursos disponíveis na mesma. Não adianta querer tirar do ambiente mais do que ele pode oferecer!
Pelo lado político-partidário, fica difícil entender que um partido há pouco tempo quando estava na oposição era frontalmente contra o antigo Projeto de Transposição do Rio São Francisco e agora, no poder, muda o seu nome e o defende como salvação para a região nordeste do Brasil. Soma-se a esse fato a famosa amnésia da população em relação às posições de seus representantes ou partidos; quem se lembra o que assumiram os candidatos Ciro Gomes e Lula em debates do primeiro turno da última campanha para a presidência? Pois bem, não vou responder, mas só lembrar que eles tinham, àquela época, posições antagônicas. Qual seria o interesse por detrás dessa rápida mudança de posição? “Salvar” o povo nordestino e interromper o velho ciclo da “Indústria da Seca” ou, de uma forma sorrateira, apropriar-se de um cacife eleitoral de mais de 50 milhões de votos. Nesse caso seria o maior investimento da “Indústria da Seca” em toda a história brasileira!
Considerando o plano econômico, alguém se lembra ou tem exemplos de obras desse porte que tenham sido instaladas no Brasil com recursos próprios? O custo inicial estimado de R$ 4,5 bilhões (2) é relevante em termos da economia nacional, podendo alcançar US$ 10 bilhões em 15 anos. A grande maioria dos empreendimentos de grande porte nesse país, senão todos, contaram com recursos da iniciativa privada ou de financiamento externo (Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Agências Internacionais Norte-Americanas, Européias ou Japonesas). Mesmo que o atual governo pleiteasse financiamento ou empréstimo, não conseguiria, pois esses organismos já se posicionaram contra o projeto, face aos impactos ambientais que ele causará.
Também muito se ouve de especialistas, inclusive nordestinos, que é possível aumentar a oferta de água para a população da região através da interligação mais eficiente dos açudes existentes, coleta de água de chuva e armazenamento, e perfuração de poços artesianos (3). Diz-se que a água armazenada atualmente é bastante para manter a população e que não é utilizada para reservar para épocas de seca mais severa. Se isso é verdade, então não se confirma que a capacidade suporte do ambiente está esgotada ou próxima de seu limite.
A água que atualmente flui pelo rio São Francisco, abaixo do ponto de captação previsto, passa por 5 grandes usinas hidrelétricas. Além de restringir a produção energética numa região ainda carente desse insumo, a elevação da água por meio de potentes bombas (160 m no eixo norte e de cerca de 300 m no eixo leste) consumirá, por outro lado, porção relevante da energia produzida na região. É bom não esquecermos que passamos recentemente por um “apagão” e que o atual ritmo de construção de novas hidrelétricas encontra-se atrasado em relação à previsão do governo, também em função de problemas ambientais.
Surgem também suspeitas de que o equipamento a ser comprado para o bombeamento teria sido adquirido por outro país e não foi utilizado. Será que essas bombas são dimensionadas para o volume projetado para a nossa transposição ou para o projeto do outro país? Ainda em relação ao volume a ser bombeado paira uma dúvida: será retirado um volume constante de 26 m3/s, que passa a um volume médio de 63 m3/s, caso a barragem de Sobradinho alcance seu NA (Nível de Água) máximo e houver vertimento. A capacidade máxima das bombas é de 127 m3/s, caso haja excesso de água. Se, por um lado, você utiliza apenas a quinta parte de seu potencial há uma superestimação do equipamento, por outro, quem acredita que não seriam utilizados os 127 m3/s da capacidade total. Em se tratando de Brasil, pelos exemplos que temos, é difícil acreditar que a segunda opção seria adotada, ou seja, as máquinas seriam utilizadas a todo vapor o tempo todo. Ressalte-se nesse ponto a dança dos números de vazões médias históricas, e seus picos nas estações chuvosas e mínimas nos períodos de estiagem; aos que interessam a transposição utilizam-se certos dados e àqueles contrários, outros (4, 5). Para os leigos, fica apenas a confusão!
A despeito da “criação de empregos” que se apregoa na fase de construção, há uma névoa densa pairando nos interesses escusos por trás do Projeto. O Governo jura, de pés juntos, que o projeto visa exclusivamente o abastecimento humano. Mas sabe-se que outros grandes grupos têm seus interesses: as fazendas de camarões e de criação de tilápias em larga escala, hoje incentivadas pela Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP) (1, 6), os grupos produtores de frutas irrigadas, as empreiteiras que conduzirão a obra e os fornecedores de grandes volumes de cimento e ferro, entre outros. É bom também se prestar atenção nesse ponto, ou seja, a diferença entre o discurso e a prática!
Mesmo desconsiderando tudo o que foi dito acima, quem garante que os 720 km de canais a céu aberto, revestido de concreto, não serão ocupados pela população carente? Ponha-se no lugar de um habitante da região: diante da miséria em que se vive, você não mudaria sua casa para próximo de uma fonte constante de água? Pois bem, existe o risco de uma verdadeira favelização desses canais, trazendo junto o lixo e esgotos produzidos. A possibilidade de perda da qualidade da água é iminente. Sem se considerar a presença de animais, também muito provável. Em se falando dos canais, numa região de temperaturas médias elevadas, haverá evaporação de grande quantidade da água originalmente bombeada. Esse aspecto é abordado nos estudos, mas nem todos têm conhecimento dele.
Dos 44 impactos listados no Relatório de Impacto Ambiental, somente 11 são considerados positivos (1, 6), e muitas incertezas ainda pairam inexplicadas nessa discussão (7). Como a intenção dessa matéria é esclarecer, vou agora mencionar um tema negligenciado até o presente: a fauna de peixes. No relatório de impacto ambiental o tema é abordado, mas nas discussões que até hoje se viu nos jornais, televisão e internet, muito pouco ou quase nada é exposto. O grande público está alheio a essa discussão, não por opção, mas por desinformação.
Os Peixes
A fauna de peixes da bacia do rio São Francisco é composta potencialmente por 250 a 300 espécies. Cerca de 200 dessas são conhecidas e formalmente descritas na literatura técnica. Por experiência própria, através dos estudos realizados pelo Projeto Manuelzão (UFMG)*, em menos de 7 anos de estudos na sub-bacia do rio das Velhas, localizado no Alto São Francisco e com altos níveis de poluição, foram registradas 115 espécies, 8 delas novas para a ciência. Se extrapolarmos esse dado para o restante da bacia, facilmente se explica o potencial de 300 espécies de peixes para o São Francisco como um todo.
As bacias receptoras possuem uma fauna significativamente mais pobre, com apenas 53 espécies nativas (6). Agrava-se a situação o fato de que há um alto grau de endemismo, ou seja, espécies cuja ocorrência se limita a uma dessas bacias ou região (23 espécies ou 43%). Então estamos falando da possibilidade de introdução de centenas de espécies em bacias onde ocorrem somente algumas dezenas. Esses peixes vão ser “captados” no São Francisco, através de ovos, larvas e formas jovens, e lançados nas bacias receptoras. Porém, hoje se sabe que a segunda maior causa para extinção de espécies e perda de biodiversidade é justamente a introdução de espécies exóticas (aquelas que ocorrem naturalmente em outras bacias ou mesmo países e continentes e, pelas mãos do homem, alcançam outras áreas). Ressalte-se que a introdução de espécies exóticas é crime previsto na legislação ambiental Brasileira. Dessa forma, o projeto estará submetendo a fauna existente nas bacias receptoras a outro impacto, talvez irreversível, com potencial de extinção de espécies endêmicas. Introdução de espécies de peixes é tema de vários artigos científicos que relatam a extinção local de peixes. Em Lagoa Santa (MG), por exemplo, dentro da bacia do São Francisco, houve extinção de 70% da fauna original nos últimos 150 anos, e uma das causas foi a introdução de espécies de peixes, como o tucunaré (8). O problema não se restringe aos peixes, e sim à fauna aquática como plâncton e invertebrados. Esse tema é tão importante, que o próprio governo estabeleceu uma Força Tarefa Nacional (9) para combate do mexilhão dourado, uma espécie invasora de molusco que têm causado graves danos econômicos no sul, sudeste e pantanal.
Os estudos realizados prevêem uma forma de controle dos peixes que passariam pelas bombas. Mas ainda não está definido qual sistema será utilizado. Filtração, controle com espécies carnívoras nos canais, barreiras elétricas, etc. A filtração de grandes volumes de água é extremamente dispendiosa. Na minha opinião, uma barreira elétrica é capaz de matar esses peixes, mas seria altamente desgastante para o governo assumir que pratica tal ação. Pior ainda é retirar esses ovos, larvas, alevinos e jovens do rio São Francisco, que já apresenta sérios sinais de queda na produção pesqueira, e que poderiam se tornar adultos em sua bacia de origem.
Mas eu poderia, irresponsavelmente, não me importar com introdução de espécies exóticas, visto que as bacias a serem afetadas serão as nordestinas e não a do São Francisco. Mas como biólogo tenho o dever de trazer essa possibilidade à tona, para que o público adicione mais essa variável à sua avaliação de viabilidade da Transposição. E vou além: já foi dito que há a possibilidade de uma outra transposição vir a compensar o rio São Francisco, no futuro, pelas águas que ora lhe estão sendo subtraídas. É a Transposição do Tocantins (10).
Pelos mesmos motivos já expostos, a transposição do Tocantins para o São Francisco seria outra tragédia ambiental. E de proporções ainda maiores, já que a bacia do Tocantins-Araguaia é mais rica que a do São Francisco. Nesse caso estamos falando na introdução de 400 a 500 espécies de peixes numa bacia que possui entre 250 e 300 espécies. Você já pensou nisso? Ou já viu esse tema ser abordado nas inflamadas discussões e controvertidas audiências públicas realizadas sobre o Projeto de Integração de Bacias? Essa é a razão desse artigo e espero que seja dada a devida importância a essa causa. Fico tranqüilo por externar essa opinião e prevenir que no futuro digam que esse tema nunca tenha sido colocado à mesa. Espero que essas informações sejam úteis para dar base ao julgamento do Projeto pelos cidadãos brasileiros.
Referências bibliográficas
(1) EcologyBrasil / Agrar / JP Meio Ambiente. 2004. Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Relatório de Impacto Ambiental, 136 pp.
(2) http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/perguntas/index.asp
(3) Suassuna, J. 2004. Potencialidades Hídricas do Nordeste Brasileiro. http://www.sfrancisco.bio.br/aspbio/arquivos/pothidric.pdf, 20 pp.
(4) Magalhães, P.C. 2005. A transposição das águas do rio São Francisco. Ciência Hoje, 37(217):40-47.
(5) Suassuna, J. 2003. Transposição do rio São Francisco na perspectiva do Brasil real. Observa Fundaj, 108 pp.
(6) Centro de Recursos Ambientais / SRH. 2004. Parecer Técnico DIRCO Nº 1.028/2004 http://www.cbhsaofrancisco.org.br/Download/transposicao/Estudo%20e%20documetos%20Tecnicos/CRA%20parecer%20eia%20rima.pdf, 100 pp.
(7) SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). 2005. As incertezas do Projeto de transposição. Ciência Hoje, 37(217):48-53.
(8) Pompeu, P.S. & Alves, C.B.M. 2003. Local fish extinction in a small tropical lake in Brazil. Neotropical Ichthyology, 1(2):133-135.
(9) Ministério do Meio Ambiente. 2003. Força-Tarefa Nacional para Controle do “Mexilhão Dourado”. http://www.mma.gov.br/port/sqa/projeto/lastro/mexilhao.html
(10) Molion, L.C.B. 2003. Águas do Tocantins para o São Francisco. Ciência Hoje, 33(197):58-61
Carlos Bernardo Mascarenhas Alves, Mestre em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre pela UFMG. Trabalha na área de ictiologia desde 1986, entre outras atividades de consultoria na área ambiental e pesquisa científica. Coordenador do Subprojeto S.O.S. Rio das Velhas, do Projeto Manuelzão (www.manuelzao.ufmg.br), da UFMG.