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Transposição do Rio São Francisco:Um projeto desnecessário e maléfico para o Nordeste, artigo de João Suassuna Filho
08/02/2006
Nos primeiros anos do século XX, o Governo Brasileiro criou a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) destinada a tentar resolver os problemas das secas no Nordeste.
A ideia era construir grandes açudes para armazenar água suficiente para todas as necessidades, inclusive irrigação das lavouras.
O que aconteceu foi um desperdício total e uma roubalheira que foi uma das maiores que já houve no nosso país, em todos os tempos.
Engenheiros estrangeiros, contratados a peso de ouro, viajaram por nossas péssimas estradas de barro daquele tempo em carros de luxo.
A sigla da Inspetoria (IFOCS) era traduzida na Paraíba como Instituição de Furtos
Organizados Contra os Sertanejos e no Ceará como Impossível Fazer-se Outra “Cavação” Semelhante.
Um porto foi projetado e começado na capital paraibana para receber o material para os trabalhos, que vinha do sul.
Todas as obras, todas mesmo, foram abandonadas, inclusive as do porto. O porto que ainda hoje serve à capital é o antigo porto de Cabedelo, distante quase 30 km do centro da cidade.
Quando eu era rapazinho vi as obras inacabadas dos grandes açudes de São Gonçalo, Coremas, Boqueirão de Piranhas e Pilões, na Paraíba, nos arredores das quais vi imensos veículos, grandes máquinas e enormes guindastes, cobertos pelo mato e corroídos pela ferrugem e pelo abandono. Confesso que nesses momentos o sentimento que me invadiu foi uma grande vontade de chorar.
Vi também as dragas nas obras do porto, no rio Sanhauá, semi-afundadas, entregues ao tempo e à lama.
Isso que citei foi só uma parte do que aconteceu na Paraíba, sem falar do Ceará, do Rio Grande do Norte e de outros estados.
Por ser paraibano e sertanejo como sou e apesar de morar no Recife há muitos anos, essas coisas me sensibilizaram de modo muito intenso.
Aquelas obras, entretanto, foram concluídas algumas décadas depois e o Nordeste está hoje às voltas com a ideia de transpor as águas do rio São Francisco, que tudo leva a crer seja um projeto absurdo, maluco, inútil e maléfico para os nordestinos. Vejamos: cada ano (!) temos armazenados nos açudes do Nordeste (e são cerca de 70.000 ao todo) algo em torno de 37 bilhões de metros cúbicos de água de boa qualidade, que é água suficiente para aguentar 4 anos de secas contínuas (!).
A água do rio São Francisco é atualmente poluída, por causa das escórias que são jogadas dentro dele, nas suas margens, desde as suas nascentes na Serra da Canastra em Minas Gerais.
Houve um tempo em que o surubim, que é um peixe característico do “Velho Chico”, de carne excelente, chegava a pesar 70 quilos. Hoje, por causa da poluição e das barragens construídas ao longo de seu trajeto, dificultando a piracema e, portanto, a sua reprodução, quando um pescador pega um surubim de 10 quilos é uma festa para ele...E querem agora desviar essa água, mais do que poluída do rio São Francisco para dentro do Nordeste. E, pasmem os meus leitores, querem colocá-la exatamente dentro dos maiores açudes da região, onde já existe, todo ano, água acumulada para suportar 4 anos de secas contínuas. E a água que já temos nesses açudes é de boa qualidade!!
O custo do projeto está calculado em cerca de 4 bilhões e meio de reais e só Deus sabe o quanto vai custar no fim, sem contar o que vão roubar durante a execução do mesmo.
O Governo sofre uma grande pressão das grandes e ricas empreiteiras que querem se encarregar dos trabalhos para ficarem mais ricas do que já são e dos políticos que querem os votos dos ingênuos e humildes sertanejos que pensam que vão ter água dentro de casa.
Em todo o Nordeste temos, com já dissemos atrás, 70.000 açudes, entre grandes, médios e pequenos com bastante água de boa qualidade para enfrentar 4 anos de seca contínua.
E vão poluir essa água existente nos açudes com a água do rio São Francisco a qual vai continuar a se evaporar e a fugir para o mar.
Dos 37 bilhões de metros cúbicos armazenados cada ano nos açudes, só 30% são utilizados. Os outros 70% estão lá evaporando ou fugindo pelos sangradouros para o mar.
Se esse projeto for executado, tudo leva a crer que vamos continuar a ter a mesma quantidade d´água, só que, desta vez, uma água de má qualidade, 70% da qual vai embora também: só vamos ter de nos desfazer de uma água boa e receber uma água ruim, e mais nada!...
Felizmente ainda existe alguma gente de bom senso no Brasil, que é contra o projeto e que não pensa só em ganhar dinheiro, fama e poder.
Os estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas são contrários a ideia do projeto.
A Igreja Católica, que é uma religião muito sábia, quando elege um de seus sacerdotes ao cargo de bispo, nunca outorga esta responsabilidade a um homem comum: quem a recebe é sempre um homem mais inteligente, mais capaz, mais culto, com mais jeito para a arte de comandar e levar o seu rebanho, enfim um homem mais danado do que os outros.
Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da cidade de Barra, à margem do rio São Francisco no oeste da Bahia, observou o “Velho Chico” e se apercebeu do desmantelo do projeto de desvio das suas águas poluídas, águas que vão contaminar as águas sadias armazenadas nos principais açudes do Nordeste.
O Bispo resolveu protestar a seu modo, para chamar a atenção de todo o país: fazer uma greve de fome, que durou 11 dias, como todos sabem. Passar um dia de fome já é ruim e ele passou isso multiplicado por 11, com a agravante de que cada dia era pior do que o anterior, o que vem confirmar que não se tratava de um homem comum.
Vamos rezar, pedindo a Deus, Pai Celeste de todos nós – se estivermos certo, é claro - que o sacrifício desse bispo não tenha sido em vão.
O que será dos peixes e camarões vivendo – ou melhor, morrendo – em águas poluídas, em vez de servir para alimentar os pobres sertanejos?
Se esse projeto absurdo for executado, os pobres nordestinos vão continuar a ver suas mulheres e filhos carregando na cabeça a água que vão buscar longe e também vão continuar, na época da seca, a depender de caminhão-pipa, que às vezes não chega, porque um prefeito safado e desonesto o desvia para seus eleitores.
Tudo indica que o Governo deve abandonar esse malfadado projeto e partir para uma política de aproveitamento dos 37 bilhões de metros cúbicos de boa água que temos cada ano – repetimos – nos 70.000 açudes que possuímos e que estão só esperando quem vá buscá-los.
Tudo leva a pensar que o governo que fizer isso vai passar à nossa história.
João Suassuna Filho, 90, é médico otorrinolaringologista aposentado. Atualmente está escrevendo o seu terceiro livro de memórias. O presente artigo faz parte de seu terceiro livro.