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Transposição do rio São Francisco: licenciamento do IBAMA, artigo de Henrique Cortez
28/04/2005
Era mais do que óbvio que o IBAMA iria conceder a licença prévia para a
transposição. Sendo um projeto do governo, inclusive com o apoio formal
e público da ministra Marina Silva, não poderia ter outro desfecho.
A questão essencial não é hídrica, no sentido técnico, mas econômica e
política. O argumento de fundo para a transposição é “levar água a quem
tem sede”. A validade do projeto, portanto, depende da veracidade do
argumento. O argumento “levar água a quem tem sede” é verdadeiro? É
evidente que não.
As necessidades especiais da população do semi-árido são mais do que
justas e para atendê-las é necessário romper com as simplistas e
ineficientes megaobras na região e compreender que é possível
desenvolver modelos de convivência com a seca, tendo como resultado o
combate ao maior flagelo da região - a fome.
A fome no semi-árido está claramente associada à seca e, mais
precisamente, ao acesso à água. Água para beber, para irrigar, para
viver dignamente.
O acesso à água é a chave para o combate à fome. Mas esta observação não
é uma emocionada defesa da transposição do rio São Francisco. Ao
contrário, embasa minha oposição aos equívocos deste projeto porque, na
realidade, pouco ou nada significará para milhões de pessoas que
continuarão sem acesso à água.
Este projeto de transposição é, na essência e no conceito, o mesmo do
governo Fernando Henrique Cardoso, que foi concebido para oferecer
segurança hídrica aos grandes reservatórios, permitindo sua operação com
maiores níveis médios, independente da recarga pluvial. Tendo os
reservatórios como destino final, o projeto demonstra a manutenção do
histórico modelo de uso dos reservatórios - 70% para agricultura
irrigada, 26% para uso dos grandes centros urbanos e apenas os 4%
restantes para o uso difuso, ou seja, para a população isolada e
dispersa. E isto em apenas 5% do semi-árido.
A agricultura irrigada, neste caso, é a fruticultura e a carcinocultura,
o rosto do agronegócio exportador no semi-árido. O agronegócio já está
na região há mais de 20 anos e pouco ou nada contribuiu para a geração
de emprego e renda ou de padrões mínimos de verdadeira inclusão social.
Esta transposição segue a lógica centenária de que a seca no semi-árido
pode ser combatida com grandes intervenções, grandes obras e, agora, com
um salvacionista programa de obras, tão monumental quanto o problema da
seca.
Nisto está a essência da criação do Departamento Nacional de Obras
Contra a Seca – DNOCS, em 1945, com a concepção de combate à seca
através de obras, principalmente a construção de açudes e/ou reservatórios.
O DNOCS já construiu 291 açudes públicos, armazenando mais de 15,3
bilhões de metros cúbicos de água. Na verdade, o conjunto de açudes e
reservatórios, públicos e privados, do Nordeste possuem potencial de
armazenamento superior a 30 bilhões de metros cúbicos de água. Este
volume potencial de armazenamento já seria, em tese, mais do que
suficiente para atender à demanda da população do semi-árido.
O semi-árido brasileiro já conta com uma impressionante rede de
reservatórios e adutoras, mas pouco mudou para a maioria da população
sertaneja, mesmo depois de 60 anos da criação do DNOCS, que por sinal é
subordinado ao Ministério da Integração Nacional.
No entanto, mesmo com uma significativa açudagem, ainda são freqüentes
as imagens de açudes quase vazios, mas, ainda assim, com potentes
bombas, captado grandes volumes de água para irrigação, mesmo com a
maior parte da população do entorno sedenta e dependendo de carros e
jegues-pipa, em clara violação da lógica, da ética e da legislação.
Ainda hoje muitos dos reservatórios perdidos no inicio de 2004 não foram
recuperados e outros tantos possuem sérios problemas de segurança por
falta de manutenção, sempre sob o argumento da falta de verbas.
Não basta um gigantesco esforço para a construção de açudes e barragens,
porque é absolutamente necessário um modelo de gerenciamento que garanta
a sua eficiência, sua segurança e seu uso racional. Lamentavelmente isto
ainda não foi sequer debatido, quanto mais solucionado.
Ao longo do tempo e dos mais diversos governos federais, ficou
demonstrado que, independente dos problemas crônicos de gerenciamento da
açudagem, este conjunto de obras não atendeu à sua razão primeira –
garantir à população do semi-árido uma convivência minimamente digna com
a seca.
Em resposta ao fracasso das grandes obras contra a seca, retoma-se a
proposta de solucionar o problema com uma mega-obra. Pena que ela não vá
levar água aos que tem sede, porque não é este o seu objetivo. Ao ser
concebida para a segurança hídrica dos reservatórios, a transposição
servirá ao maior usuário dos reservatórios e adutoras – a agricultura
irrigada. Ela garantirá os crescentes volumes de água exigidos pelo
agronegócio exportador.
Este projeto, portanto, como todas as outras grandes obras que
pretensamente combateriam a seca, não atende aos maiores desafios da
região: a regularização fundiária, o acesso à água e a consolidação de
um modelo de desenvolvimento baseado na agricultura familiar.
Nas regiões Sul e Sudeste, os programas de convivência com a seca no
semi-árido são pouco conhecidos. O mais importante e significativo é o
P1MC – Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com
o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais, coordenado pela Articulação
no Semi-Árido Brasileiro – ASA (www.asabrasil.org.br). O programa P1MC,
lançado em 2000, tem como meta construir, em cinco anos, um milhão de
cisternas de placas na região, que proporcionarão água limpa e de
qualidade para cinco milhões de pessoas. O programa já construiu mais de
54 mil cisternas, que beneficiam 260 mil pessoas.
Sua importância pode ser compreendida a partir do fato que uma cisterna,
com 15 mil litros em média, pode garantir o fornecimento de água para
uma família de 5 pessoas por 8 meses, que é o período normal de estiagem
na região. Um amplo e bem organizado programa de apoio à construção de
cisternas, com plena integração federal – estadual – municipal, não
apenas seria uma micro-solução importante para a sobrevivência do
sertanejo, como também, ao eliminar a indústria dos carros e
jegues-pipa, seria um grande golpe no modelo mais demagógico do
coronelismo.
Pessoalmente, não acredito em soluções únicas e simples para problemas
complexos e no semi-árido não é diferente. O semi-árido precisa de
políticas públicas eficazes, concebidas de forma integrada e sistêmica,
que incluam incontáveis experiências de convivência com a seca. A
convivência com a seca exige várias ações e projetos, exige um eficaz
gerenciamento da açudagem e a integração com outros programas públicos
ou privados, dentre os quais as cisternas “de beber”, as cisternas
comunitárias, as cisternas de produção, micro-barragens, as barragens
subterrâneas, as mandalas, e por aí vai. Mas, acima de tudo, é
necessário garantir o acesso à água.
Um projeto equivocado, como a transposição do rio São Francisco,
atenderá os privilegiados de sempre e manterá as freqüentes imagens de
rios completamente secos, de açudes exauridos e de ricas áreas irrigadas
ao lado da mais impensável aridez, simplesmente porque não visa criar
garantias de acesso à água.
Se for para levar água a quem já tem acesso não há necessidade de
qualquer projeto, bastando aumentar a eficiência no gerenciamento e nos
usos da açudagem disponível. Para isto, não é necessário fazer nada
muito complicado, muito menos um projeto como a transposição do rio São
Francisco.
É necessário e fundamental que se foque nas efetivas soluções de
convivência com a seca, ou manteremos a atual lógica perversa, em que
vemos adutoras tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes de tantos.
Não adianta tangenciar o problema - precisamos garantir o acesso à água.
O acesso à cidadania.
Para nós o acesso à água é tão simples: abrir uma torneira. Para milhões
de brasileiros, continuará um sonho distante.
Henrique Cortez - Editor Chefe do EcoDebate