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Testemunho acerca do bispo Dom Cappio, por Leonardo Boff
2007
Foi meu aluno de teologia por 5 anos. Sempre trabalhava nas favelas de Petrópolis. Como vocação adulta, vindo de uma família rica de Guaratinguetá, sua opção franciscana era límpida e sem os vícios da formação convencional seminarística. Já na época o cercava uma aura de santidade pessoal, de extrema simplicidade e pobreza. Era estudante assíduo. Mas até hoje me deve o trabalho final, uma espécie de tese de fim de curso, que todos deviam fazer. Eu insistia que se pusesse a trabalhar. E foi protelando até o último dia, quando foi transferido para S. Paulo para trabalhar nas favelas.
Antes de sair, pela madrugada, me deixou debaixo na porta escrita em português, latim e grego o texto do Pai-Nosso. Dizendo: “depois de 5 anos de estudo, oração e meditação foram o que me restou: a oração de Jesus que o Sr. nas aulas nos ensinou ser a essência da mensagem de Jesus”. Sempre que o encontrava lhe cobrava o trabalho. Depois que ficou bispo me desmoralizei e me edifiquei pelo grave “erro” cometido pelo Vaticano. Este não avaliou quem era Frei Cappio, aquele que na quinta-feira santa desapareceu de S. Paulo, levando apenas o burel franciscano, a Bíblia e a Regra de S. Francisco. De carona com caminhoneiros foi para onde achava que estavam os pobres dos pobres em Barra da Bahia. O Provincial o descobriu apenas 2 meses depois. Telefonou-me dizendo: “devemos ir pegá-lo pois ficou louco”. Eu lhe respondi: “Provincial, abra Marcos 3,21 onde se diz: os parentes saíram para pegar Jesus porque diziam: ele está louco”. Acrescentei: “ele está em excelente companhia, com Jesus e ainda com S. Francisco que se chamava a si mesmo de “pazzus” que em latim medieval e italiano significa louco. Lógico, louco para certo tipo de ordem deste mundo, não para a ordem do Reino.”
Bem, isso ocorreu já há uns 30 anos. Ele percorria todo o vale do Rio, pregando de lugar em lugar, dormindo em lugares ermos, até em cima de árvores como o fazem “os loucos de Deus”, categoria importante da Igreja ortodoxa russa, como para nós os mártires, os confessores e as virgens... que para nós, em nossa pobreza espiritual, possui apenas valor psicanalítico.
Por ocasião dos 800 anos da morte de S. Francisco, organizou um pequeno grupo que foram das nascentes do rio na Serra da Canastra até a sua foz, andando durante todo um ano,levantando dados da região, econômicos, políticos, nomes de lideranças, problemas ecológicos, tradição populares, identificação de vilas quilombolas e agrupamentos indígenas. Tudo isso resultou num material enorme, bem detalhado com dados feitos em cima da realidade vivida, sentida, sofrida e analisada.
Quando o candidato Lula fez a caravana no S. Francisco na eleição que perdeu para FHC participei desde as nascentes até Petrolina. Subimos o rio de barco. Descíamos quando estava totalmente assoreado, íamos de ônibus, de carro e até a pé. Foram 13 dias intensos. Eram dias de estudo. Em cada lugar Lula se reunia com as lideranças populares, com os empresários, com as cebs e outros grupos. Quando chegamos em Barra, intermediei um encontro do então ainda Frei Cappio e o seu grupo com Lula. E foram entregues a ele todos aqueles materiais. Lula os mandou analisar pelos especialistas que nos acompanhavam, gente do quilate de Aziz Ab’Saber, Graziano, Patrus, Roberto Malvezzi e outros que vinham da área da sociologia, da geografia, em fim, quem tinha conhecimentos específicos sobre o rio e a bacia hidrográfica do S. Francisco. Lembro-me que dedicamos um dia inteiro sobre o barco para discutir a eventual transposição do Rio. Ab’Saber, nosso melhor geógrafo e outros cientistas analisaram os argumentos pró e contra. No final Lula quis deixar a coisa aberta. Mas os que analisaram os materiais de Frei Cappio testemunharam: “é material da melhor qualidade”. Lula comentou: “isso servirá de base empírica para as políticas que queremos incrementar no vale todo”.
Digo isso para testemunhar: se há alguém de Igreja que entende do rio, de seus problemas, de seu povo, das alternativas pensadas, discutidas e construídas pelos movimentos sociais, com a melhor assessoria em questão de água é o bispo Dom Cappio.
Então não se trata de um ingênuo, tomado pelo fervor religioso-franciscano. É alguém que se enche de iracúndia sagrada quando se deu conta de que o Governo bolou o seu projeto, enfiou-o goela abaixo no povo, inventou audiências, discussões no Congresso que nunca houveram (perguntei a vários deputados que negaram absolutamente que houve tal discussão). Não tomou em conta a opinião da comunidade científica como a de Aldo Rabelo, nosso maior cientistas em águas, Ab’Saber e de outros do próprio Nordeste, não considerou a proposta da ANA (Agencia Nacional de Águas) que fez o Mapa de Águas do Nordeste com a proposta de abastecimento urbano (omitiu a inclusão da área rural) envolvendo 34 milhões de pessoas ( a do Governo apenas 12 milhões) beneficiando mais de 1300 municípios (o do Governo são algumas centenas) a um preço que é metade daquele orçado oficialmente (cerca de 6 bilhões de reais contra 3,6 da ANA), não incluindo o que já está em curso – o projeto da ASA (Articulação do semi-árido) - com a construção de um milhão de cisternas (já se construíram 200 mil) num projeto inteligente (2 em um: duas cisternas, uma para beber, outra para irrigar e um pedaço de terra). Uma audiência propalada pelo Governo foi feita na quinta-feira de carnaval (imagem o carnaval da Bahia..) num hotel cinco estrelas, em Salvador, a 800 km do rio S. Francisco. Quem iria participar deste audiência? É pura formalidade....E assim outras atitudes autoritárias vindas de cima, desconsiderando a acumulação feita pelas comunidades, com discussões impositivas, cooptação de lideranças comunitárias e políticas.....algo, portanto, nada democrático.
Os que vivem na região conhecem as elites econômicas da região, os interesses das grandes empreiteiras, os planos do agronegócio de exportação, e a parca destinação, apenas 4% da água para a dessedentação humana e animal.
O bispo não é contra qualquer transposição de águas do rio. Não quer este tipo que reproduz e fortalece as relações de dominação e submetimento daquela população. Exigia uma ampla discussão na sociedade e em toda a bacia hidrográfica, coisa que o Presidente prometeu por escrito e que nunca cumpriu. Basta ler as duas cartas oficiais do Bispo, publicadas no JB Ecologia do último sábado.
Seu jejum não era martirial. Era para a sociedade despertar e se responsabilizar por aquilo que estava sendo feito pelo Governo, manipulando sentimentos como “ prefiro ficar com os 12 milhões de sedentos do semi-árido do que com o bispo”, quando a alternativa era e é :”prefiro ficar com os 34 milhões de sedentos do semi-árido do que com o agro-negócio”.
Se não houvesse o engajamento pessoal da atriz Letícia Sabatella que esteve com o bispo em Sobradinho e a polêmica que provocou com Ciro Gomes no jornal O Globo, nada ou bem pouco teria saído pela imprensa. Eu pessoalmente tentei por todos os modos romper o círculo férreo da mídia, sem qualquer resultado. Agora, pelo menos, já está prometido um debate no programa Painel da Globonews com William Waack que vai ao ar sempre aos sábados às 23,10 e aos domingos às 20,10. Aí deverão estar representantes da posição do governo, do bispo e da comunidade científica.
O jejum do bispo não foi em vão. Nem misturou fé e política. Seu móvel era ético-espiritual, mas sua argumentação era estritamente política e, se quiserem também técnica (qual é o melhor projeto que mais beneficia pessoas com custos menores). Dos 8 pontos apresentados por ele e seu grupo numa difícil negociação na CNBB 6 foram acolhidos, materiais que circulam pela internet e me dispenso de referir.
Estimo que a questão não se aquietou. O governo tem poder econômico, militar, político e até judicial (o Supremo não analisou o mérito da questão apenas a questão do impacto ambiental, mas é, via de regra, amplamente favorável ao governo). Pode fazer o que se propõe. Mas se deixar de fora os tantos milhões que não receberão água em suas casas e o projeto beneficiar preponderantemente os que já são há séculos beneficiados na região, será a transposição da maldição que pesará na biografia do Presidente. Pelo que já fez de bem para o povo brasileiro, ele não merece este castigo. Mas o poder cega e a vaidade de querer se perenizar na história pode se voltar contra quem pratica essa hybris.
O que está em jogo entre dom Cappio e o Governo?
Leonardo Boff
(Publicado no Jornal do Brasil, dia de Natal, 25 de dezembro 2007 p. 4.)
A liberação das obras de transposição das águas do Rio São Francisco pelo Supremo Tribunal Federal e a suspensão do jejum do Bispo dom Luiz Flávio Cappio aparentemente produziu calmaria na discussão acerca deste megaprojeto. Mas ela seguramente continuará. O jejum e as orações do bispo não foram totalmente em vão. Sobre 8 pontos apresentados ao Planalto pelo bispo e seu grupo de apoio, 6 foram acolhidos, o que facilitou sua tomada de decisão. Estimo que a atriz Letícia Sabatella que sempre apoiou a causa do bispo, indo ao local do jejum, interpretou o sentimento de muitos, em sua resposta à carta aberta ao deputado Ciro Gomes, publicada em O Globo do dia 21 de dezembro: “no dia 19 de dezembro de 2007, o que presenciei na Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi a insensibilidade do Poder Judiciário, a intransigência do Poder Executivo e a omissão do Congresso Nacional”.
Há um transfundo nesta questão que ficou ocultado no debate e que deve ser explicitado. Ninguém é contra levar água aos sedentos do semi-árido, muito menos o bispo que, livremente, há 30 anos optou viver entre os mais pobres dos pobres, ribeirinhos, quilombolas, indígenas e camponeses. Ele conhece como poucos os problemas do semi-árido e as alternativas de convivência com ele, maduradas pelos movimentos sociais da bacia do rio e apoiadas pelos estudos de notáveis pesquisadores da área. O que ele questiona é o modo como isso vem sendo conduzido.
Por detrás de tudo estão duas visões de mundo e de política que se confrontam.
O governo busca o grande, um crescimento que atende primeiramente os interesses de grupos do agronegócio e das indústrias e em seguida as necessidades do povo sofredor, o que configura falta de equidade. Os dados falam por si: 70% da água deve ser destinada a projetos de irrigação, 26% para a indústria e abastecimento urbano e 4% para populações rurais do semi-árido. Esta posição é chamada de modernização conservadora, teórica e praticamente superada.
O bispo dom Cappio encarna o pequeno, com uma postura ética que visa a dar centralidade ao social especialmente àquelas populações que sempre foram preteridas pelas políticas públicas. Apóia os projetos que sejam amplamente inclusivos e que preservem o patrimônio social, cultural e ecológico da bacia do rio São Francisco.
Esses projetos existem. A Agência Nacional de Águas (ANA) no seu Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água mostrou que o projeto do governo custaria R$ 6,6 bilhões, atenderia apenas a quatro Estados e beneficiaria 12 milhões de pessoas de 391 municípios. Enquanto o projeto alternativo da ANA custaria 3,3 bilhões, atingiria nove Estados e beneficiaria 34 milhões de pessoas de 1356 municípios. Existe ainda o projeto da Articulação do Semi-Árido (ASA) que prevê a construção de um milhão de cisternas, sendo que 220 mil já foram construídas com o apoio de 800 entidades e também do Governo que a partir de setembro deste ano retirou sua contribuição.
Por que o governo não levou à discussão estes projetos alternativos? Eles são muito mais baratos e mais includentes. Essa desconsideração levou o bispo ao jejum de protesto. Suspeitamos, pois esta é a lógica de nosso estado, historicamente refém dos interesses de poucos, que subjacentes estejam volumosos capitais, grandes empreiteiras e aqueles industriais ligados ao comércio de exportação que teriam vergado o governo para o seu lado.
Por isso soa demagógica e no fundo falsa a alternativa colocada publicamente pelo Presidente: entre o bispo e os 12 milhões de nordestinos sedentos eu, Presidente, fico do lado dos 12 milhões. A alternativa é outra: entre o agronegócio e os 34 milhões de sedentos que podem ser atendidos, o bispo fica do lado dos 34 milhões.
Esta é a questão de fundo que mereceria ampla discussão pública, profunda discussão no Parlamento e eventualmente um plebiscito por envolver vários estados e um grande símbolo nacional que é o Velho Chico.
Neste ponto o governo foi autoritário, pouco democrático e republicano negando-se a este percurso.
O bispo dom Cappio com seu jejum quis chamar atenção para esta questão ocultada nas iniciativas do governo. E o fez de forma consciente e serena, pois é um franciscano de eminente santidade pessoal que associou sua vida e destino àqueles que injustamente menos vida tem e que são condenados a morrer antes do tempo. Os projetos devem servir às pessoas e não as pessoas aos projetos.