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Revista Chico: Crônica de uma tragédia anunciada
De um lado, os moradores do sertão da Paraíba agradecendo de joelhos a chegada das águas do Velho Chico. Do outro, ambientalistas e pesquisadores que apontam na faraônica Transposição uma sucessão de erros que pode custar a vida do Rio São Francisco. Nossa reportagem visitou o açude do Boqueirão, em Campina Grande, abastecido pelo chamado Eixo Leste, que entrou em operação, ainda em fase teste, em abril de 2017.
https://cbhsaofrancisco.org.br/noticias/novidades/cronica-de-uma-tragedia-anunciada/
18/12/2018
“Transfusão” é a palavra que muitos moradores das comunidades ao redor do Açude Epitácio Pessoa, o Boqueirão, utilizam para se referir à Transposição do Rio São Francisco. Se considerarmos a definição da palavra no dicionário, “fazer passar um líquido de um recipiente para outro”, “espalhar, difundir, derramar, transformar-se, operar a transfusão do sangue”, a metáfora faz sentido. As águas do Velho Chico chegaram ao Boqueirão em abril de 2017, em meio às chuvas de março, que fecharam o verão do agreste após sete anos de uma das piores secas da história e quatro anos de severo racionamento.
O Boqueirão abastece Campina Grande e mais 18 cidades do entorno. Em 2017, o açude entrou em volume morto, com apenas 2,9% da capacidade total. Foi o pior volume registrado desde sua inauguração, em 1957, por Juscelino Kubitschek.
“Dava para andar nele, na terra rachada, a gente via cobra, casas da antiguidade”, rememora Dona Lourdes.
A solução imediata encontrada pelo Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs) foi escavar um canal através dos açudes Poções e Camalaú, em Monteiro (PB). O Eixo Leste da Transposição era, então, inaugurado, como medida emergencial, passando a funcionar em fase de pré-operação: “Foi feito uma espécie de rasgo nas represas destes açudes para a água passar mais rápido para Campina Grande”, explica João Fernandes, presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas da Paraíba (AESA): “Se fosse esperar que as obras estivessem prontas, a água não chegava a Monteiro e estaríamos em colapso total”.
“Não tem nada melhor que a transfusão. Isso é uma bênção para a gente”, diz Maria de Lourdes Santos da Silva, 62, pescadora – ou “pescadeira”, como ela diz. Na varanda de sua casa verde e azul, no Pasmado, comunidade da zona rural do Boqueirão, no Cariri paraibano, brota agora, entre as plantas originais, uma samambaia que diz ter vindo com a água da transposição do São Francisco. Assim como a semente da planta, peixes “estranhos” chegaram na corrente do Velho Chico: “Os primeiros peixes eram diferentes, peixe feio, mole, frio, todo mundo ficou com medo, com nojo, acostumado aos peixes duros do açude”, conta a filha de dona Lourdes, mãe de onze, Cristina Santos da Silva, 32 anos, também pescadora e agricultora.”
“Foram quatro anos de irrigação suspensa. Não tinha água para nada, não podia plantar, tudo secou, não tinha comida, não tinha peixe”, lembra Josemar de Souza Santos, agricultor e pescador, pai de uma família de 11 filhos em Mirador. Sua esposa, Josefa Maria Alves, 60, completa, diante do verde da plantação de feijão de corda, jerimum, acerola, laranja e macaxeira ao redor da casa: “Passamos muita dificuldade. A água estava gosmenta, com mau cheiro, a gente tomava banho e ficava fedido.”
“A água brotava do chão. Veio enchendo de baixo para cima, devagarzinho, sobre o chão seco…Foi uma bênção para nós”, diz Cristina Santos, ao redor de sua plantação de feijão, hoje verdinha. Seu marido, Linduarte, 43, o Lindo, agricultor e deficiente visual, mesmo com o glaucoma avançado, sentiu a chegada das águas caminhando sobre o açude. “Dava para sentir a diferença”. Para ele, a transposição parecia uma lenda. “A gente sempre ouvia falar, desde criança, mas eu já não acreditava que saía mais não. Por incrível que pareça, às vezes o mal traz o bem. Veio esta seca terrível, a gente etava sem água para plantação, para animal, até para a gente. E aí o São Francisco chegou”.
Vai-e-vem
Em março de 2018, praticamente um ano depois de inaugurada, a transposição das águas simplesmente paralisou. Foram detectados problemas e rachaduras nas estruturas de concreto nos açudes e o bombeamento acabou interrompido para reparos. O prazo inicial para a conclusão das obras era de 90 dias, mas foi constantemente adiado. Neste período, com a estiagem, o Boqueirão voltou a menos de 29% de sua capacidade, gerando insegurança nos moradores. “A gente fica preocupado, vê a água descendo, não avisam nada para a gente”, diz Garrincha, outro filho de Dona Lourdes, cuja renda depende do Boqueirão, o ponto turístico da cidade.
Seis meses depois, em 14 de setembro, a transposição voltou a funcionar. Mas a alegria durou pouco: na noite seguinte, o bombeamento era de novo interrompido. Novas avarias haviam sido detectadas em um dos trechos do canal, com suspeitas de vandalismo para beneficiar o agronegócio.
Segundo o Ministério da Integração, no mesmo dia em que os danos foram identificados, os engenheiros responsáveis fecharam a válvula que controla a saída de água e iniciaram as correções necessárias. “Os indícios apontam que o dano pode ter sido causado por terceiros e, por isso, foi registrado um Boletim de Ocorrência pela equipe técnica do Ministério da Integração”, informa a assessoria do MI. A captação irregular e desvios criminosos da água tem sido uma constante ameaça à segurança hídrica.
“Mal começou a transposição e os problemas já são muito evidentes”, comenta Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). “Aí entra uma discussão sobre se o conceito escolhido para esse empreendimento foi o melhor. O Comitê sempre advertiu que teríamos muito trabalho em administrar a transposição”.
Feijão de corda produzido por Dona Josefa Maria Alves com as águas da transposição. A pesca é fonte de renda para muitas famílias da região do Boqueirão.
Elefante branco
Para José do Patrocínio Tomaz, hidrogeólogo e mestre em Engenharia Civil na Área de Recursos Hídricos, há um problema quanto ao dimensionamento dos canais. “Eles foram projetados para a vazão máxima de cada um, uma vez que previam que o reservatório de Sobradinho poderia atingir o volume de espera (superior ao volume útil) ou mesmo sangrar”, afirma.
Segundo Patrocínio, o projeto das obras da transposição é, no mínimo, inusitado: “Os canais são, geralmente, projetados para transpor uma vazão constante, mantendo o perímetro das calhas molhado. Se isso não acontece, os canais trabalham com perímetros secos, tornando-se vulneráveis às quebras, por ação da dilatação e contração térmicas que inevitavelmente enfrentam naquela região. Além de, em termos de obra civil, assentarem-se em rochas pouco consistentes, não suportando o peso e o atrito das águas sobre o fundo e as paredes do mesmo”. Para ele, o melhor teria sido investir em projetos de distribuição e abastecimento a partir da adução das águas do São Francisco, e não da transposição.
João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, também teme que a transposição seja um “elefante branco”. Ele afirma que o São Francisco não tem capacidade para atender a demanda de água. Seria mais econômico promover obras nas regiões afetadas, buscando fontes de água mais próximas. “Com muito menos recursos, poderiam ter sido mais consideradas alternativas como a construção de cisternas para abastecimento humano e a pequena irrigação. As águas do Velho Chico seriam de uso complementar e não a fonte principal”, diz.
Segundo o Ministério da Integração, foram feitos estudos e alternativas como esta foram analisadas, assim como o uso de águas subterrâneas, a dessalinização, o reaproveitamento de águas, a integração com outras bacias hidrográficas e a implantação de novos açudes. Mas nenhuma apresentou melhores resultados do que a integração das águas.
Também um antigo crítico à transposição, o pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) João Abner Guimarães Jr. alerta para outro problema: as perdas de água durante o trajeto das águas de um local a outro.
“Há mais de 60% de perdas por condução, e somam-se a isso outras relacionadas à evaporação, infiltração, além de outras questões que não se consegue no projeto. Na época da elaboração do projeto, estimava-se que as perdas seriam na ordem de 15%, mas elas já chegam a 60%”, diz.
Segundo Abner, “tem prevalecido uma preocupação política, até eleitoreira, acima das discussões técnicas necessárias sobre a operação. Parecem evitar o debate sobre os problemas do Eixo Leste, pois essa discussão certamente atingirá a situação do Eixo Norte, que é uma obra ainda maior e mais complicada”.
Incertezas e fragilidades
Em abril de 2018, o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou o resultado da avaliação do atual sistema de gestão do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF), a cargo do Ministério da Integração Nacional.
Os exames evidenciaram que foi dado prioridade à execução das obras, mas postergado o planejamento para garantir a operação, manutenção e sustentabilidade da transposição a longo prazo. Há incerteza quanto ao impacto do custo de funcionamento e inadequação da estrutura necessária à gestão e operação do PISF.
Para reverter estas fragilidades, o MI tem adotado medidas de fortalecimento do sistema de gestão do PISF, a cargo da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF). Por e-mail, a assessoria da pasta informou que o Plano de Gestão de Riscos será colocado em prática quando do início da operação comercial do PISF e, atualmente, está incrementando sua equipe técnica para atender melhor a demanda.
Quem vai pagar a conta?
Há ainda pouca clareza sobre quem vai pagar a conta da operação, até então custeada pelo governo federal. Só os gastos com energia poderão atingir cerca de R$ 800 milhões por ano. O valor deverá ser pago pelos estados envolvidos (CE, PB, PE e RN). O PISF está hoje orçado em R$ 10,7 bilhões e o custo final estimado da obra é de R$ 20 bilhões. “A transposição pode ser um presente de grego”, diz o pesquisador João Abner. “Essa água pode sair muito cara para a população.
Durante esta fase de pré-operação, nenhum custo foi repassado pelos estados envolvidos. Ainda não existe mecanismo de cobrança. Minha hipótese é que estão esperando passar as eleições para que a fatura chegue”. Para ele , a gestão é complexa: “O maior desafio será separar as águas da transposição das águas naturais produzidas em cada região, que em condições normais serão dez vezes maiores do que a transposta. Nesse caso, como separar os diferentes usuários das águas misturadas?”.
Recentemente, em 19 de setembro, a Agência Nacional de Águas (ANA) publicou no diário Oficial da União a resolução 67/2018, que define as tarifas para a prestação do serviço de adução de água bruta para 2018. O valor definido para a cobrança da Operadora Federal, a CODEVASF, foi de R$ 0,801/m³ para a tarifa de consumo e R$ 0,244 para a tarifa de disponibilidade. As tarifas serão multiplicadas pelo volume entregue aos Estados beneficiados, para computar o valor a ser pago a partir do início da operação em cada Estado.
O custo total de operação para o transporte de água bruta em 2018 será de R$ 290,7 milhões, incluindo possíveis inadimplências, perdas de água e garantias para execução do serviço. Deste montante, serão pagos R$ 154 milhões pela Paraíba e R$ 24,7 milhões por Pernambuco. Os R$ 112 milhões restantes serão custeados pelo MI.
Segundo a CGU, o repasse desses valores para as contas de água dos consumidores poderão significar aumentos entre 5% e 21%. A Codevasf informou que está sendo realizado um estudo sobre o uso de energias renováveis para diminuir os custos da operação.
Comunidade Mirador, na Paraíba, é uma das beneficiadas com as águas da transposição. Açude Boqueirão chegou a acumular um volume dez vezes maior após receber as águas do São Francisco.
Verde é a cor mais quente
Um ano após as águas do rio São Francisco chegarem à Paraíba, o tom pardo da vegetação do semiárido ganhou novas cores. Pequenas plantações se destacam entre os xique-xiques, facheiros e mandacarus predominantes na paisagem. Segundo as regras da regras da Agência Nacional de Águas (ANA), cada agricultor só pode plantar e irrigar meio hectare, uma vez que a prioridade da transposição é o abastecimento humano e animal.
“Cuidamos da agricultura de subsistência das pessoas, porque não tínhamos ainda água suficiente para atender todo mundo. É uma solução provisória, para proteger os menores e mais vulneráveis. Acho que atingimos este objetivo”, diz João Fernandes, presidente da Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba (Aesa).
O modelo de irrigação liberado é limitado às técnicas de gotejamento e microaspersão, que os agricultores como José Alemar, 29 anos, hoje utilizam. “Agora a gente tem um pouco mais de esperança”, diz ele, que havia deixado a comunidade de Mirador para ser seminarista em São Paulo. As promessas de uma vida melhor com a transposição fizeram-no retornar. Assim como José outros fizeram o mesmo caminho de volta.
“A gente via pelo Facebook a alegria das pessoas, falando da transposição, da ‘chuvada’ e ficava doido para voltar”, conta o casal de agricultores Antônio Roberto de Araújo, o Tonhão, 37 anos, e Adinaílsa Araújo Vieira, a Naísa, 34 anos. Em 2015, sem ter como sobreviver em meio à seca total, migraram para o Rio de Janeiro com o filho de 16 anos, “fugindo do sofrimento”. Trabalharam como caseiros em um sítio na região de Teresópolis, mas, com as notícias de que a água ia chegar no sertão, decidiram regressar. A plantação de feijão ainda demora um tempo para a primeira colheita. Nem isso os faz titubear. “É uma vida sofrida, tem que ter coragem para trabalhar, nesse solzão de meu deus. Mas não tem nada como a casa da gente”, garante Naílsa.
Por Christiane Tassis
Fotos: Elisa Mendes