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Pelos canais do Rio São Francisco, ao menos três espécies de peixes chegam a lugares onde não existiam
Pesquisadores da Univasf monitoram peixes nas áreas de influência da transposição. Alguns animais conseguem passar por barreiras de proteção e migram entre bacias hidrográficas do Nordeste. Impactos dessa mudança na fauna ainda são desconhecidos.
Por Filipe Domingues, G1
22/12/2019
Pesquisadores identificam espécies de peixes mais comuns no Rio São Francisco — Foto: Divulgação/Cemafauna/Univasf
Com as águas do Rio São Francisco, os dois grandes canais da transposição também abrem o caminho para que alguns peixes se movimentem (quase) livremente de um lugar para outro.
Monitorando os rios antes e depois dos canais da transposição, pesquisadores da Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) já descobriram que pelo menos três espécies de peixes foram transportadas involuntariamente até áreas do Nordeste brasileiro onde, antes, não existiam.
Isso ocorre mesmo após a implantação de barreiras nas estações de bombeamento, que serviriam justamente para impedir a passagem dos peixes. A transposição do Rio São Francisco é a construção de dois grandes canais (um Eixo Norte e um Eixo Leste, totalizando 477 km em obras) que levam águas desse rio essencial para o Nordeste brasileiro até outra área, tradicionalmente bem mais seca.
Pequenos peixes acabam superando as grades de contenção e podem passar também em forma de larvas ou ovos. Diferentemente dos maiores, eles sobrevivem às hélices das bombas nos canais do São Francisco.
Essas três espécies não são carnívoras. Seus nomes só serão revelados em um artigo científico no ano que vem. Mas os impactos dessa mudança de habitat de alguns peixes e a interação com outras espécies em novas águas ainda são desconhecidos.
Por isso, é necessário manter o monitoramento em médio e longo prazos, conforme contou ao G1 o pesquisador em Ciências da Terra e Meio Ambiente, Augusto Luís Bentinho Silva.
Com uma equipe formada por cinco profissionais ele trabalha no laboratório do Centro de Conservação e Manejo de Fauna (Cemafauna), que fica no Campus de Ciências Agrárias da Univasf, em Petrolina (PE), e monitora dezenas de pontos nas bacias da região. O Cemafauna faz um trabalho de observação da fauna na região da transposição do São Francisco desde 2008. E, desde 2012, os peixes são objeto de estudo dos pesquisadores.
Mapa da transposição do Rio São Francisco — Foto: Aparecido Gonçalves/G1
Peixes migrantes
O plano do governo federal que levou à transposição do Rio São Francisco, de 2004, já previa uma série de impactos ambientais, tanto positivos quanto negativos, desse megaprojeto. Isso inclui a chamada "ictiofauna", ou seja, o conjunto de peixes das bacias doadoras e daquelas receptoras de águas.
Além de seu importante papel ambiental, os peixes são o sustento de populações ribeirinhas: as águas do São Francisco são usadas tanto para a pesca quanto para encher açudes, especialmente nas bacias receptoras.
"Os peixes de rios e açudes do semiárido já sofreram grandes impactos gerados pela atividade humana. A redução das matas às margens dos rios, a prática da açudagem e, principalmente, a introdução de peixes de outras regiões causaram inúmeras alterações diretas e indiretas na sua composição", diz o Relatório de Impactos Ambientais (Rima) do então Ministério da Integração Nacional (hoje Ministério do Desenvolvimento Regional, MDR). Ele indicava que seria essencial monitorar a natureza em toda a área de influência da transposição.
Bentinho Silva revelou que há espécies de peixes que não existiam na bacia do Rio Paraíba, mas que, agora, por causa da transposição do Rio São Francisco, já são encontradas.
"São três espécies que ocorriam só no São Francisco, mas passaram pelas barreiras dos canais e agora aparecem também no Paraíba. Elas não são carnívoras. Por isso, num primeiro momento não parece que estejam causando dano nas espécies que são do local receptor", afirma.
Impactos imprevisíveis
Segundo Bentinho Silva, as pesquisas ainda não encontraram peixes jovens de espécies carnívoras após as estações de bombeamento dos canais. Isso indica que, por enquanto, as larvas e ovos de peixes grandes parecem não estar passando.
Ele alerta, no entanto, que é preciso manter o trabalho de monitoramento no longo prazo para conhecer os possíveis impactos dessa nova interação entre peixes de diferentes espécies. "Precisamos de, no mínimo, mais dez anos de trabalho para ter uma visão melhor dessa situação", diz.
A pesquisa é financiada pelo Ministério do Desenvolvimento Regional. Trata-se do Subprograma de Monitoramento da Ictiofauna, um dos oito que compõem o Plano Básico Ambiental 23 (PBA 23) do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF).
Assim como diversas outras atividades ligadas à transposição e às universidades federais, o projeto vem enfrentando cortes de verba.
Pesquisadores do Cemafauna coletam e estudam diferentes espécies de peixes no Rio São Francisco — Foto: Divulgação/Cemafauna/Univasf
Em virtude da pesquisa que vem sendo realizada no Cemafauna, a coleção científica de ictiologia do "Museu de Fauna de Caatinga" conta hoje com exemplares de cerca de 120 espécies de peixes que habitam a região semiárida do Brasil.
Superando barreiras
Para tentar impedir a passagem de peixes maiores para dentro dos canais – especialmente carnívoros, pois se alimentariam de espécies menores nas áreas receptoras – o projeto de integração do São Francisco previu a instalação de grades de contenção. A ideia inicial era que nenhum peixe passasse pelas estações de bombeamento.
Porém, ainda assim, peixes menores, larvas e ovos podem acabar passando pelas hélices das bombas da transposição.
"As grades são uma tentativa de mitigar o impacto. Desde 2014, quando houve o primeiro bombeamento das águas, a gente também percebeu uma redução na mortalidade dos peixes", explica Bentinho Silva. Isso porque, sem a grade, alguns peixes maiores acabariam batendo nas hélices.
A equipe de apenas cinco pesquisadores (três biólogos e dois veterinários) pretende publicar, no ano que vem, um artigo científico detalhando as descobertas. Por esse motivo, eles não podem divulgar ainda os nomes das espécies migrantes já confirmadas na pesquisa.
"Pode ser que haja outras espécies que estão conseguindo passar, mas ainda não as identificamos no nosso monitoramento. Por isso, é importante continuar." – Augusto Luís Bentinho Silva, do Cemafauna".
No entanto, o cientista identificou as dez espécies mais frequentes na bacia do Rio São Francisco (veja a tabela abaixo). Algumas dessas espécies menores não têm valor comercial – conhecidas popularmente como "piabas" –, mas têm importante função ambiental e são exclusivas da região.
As principais espécies de interesse pesqueiro na Bacia do São Francisco são o apaiari, o piau-verdadeiro, a pescada-cascunda, o tucunaré, a tilápia-do-congo e a tilápia-do-nilo, segundo o MDR. Nas partes da bacia que recebem água, os destaques são cangati, sardinha, tabarana e traíra.
10 espécies de peixes mais comuns no São Francisco
NOME POPULAR |
ESPÉCIE |
Piabinha |
Hemigrammus marginatus |
Piaba-do-rabo-amarelo |
Astyanax gr. bimaculatus |
Guppy |
Poecilia vivipara |
Tilápia (espécie invasora) |
Oreochromis niloticus |
Piabinha |
Serrapinnus heterodon |
Piabinha |
Moenkhausia costae |
Manjuba |
Anchoviella vaillanti |
Piaba-do-rabo-vermelho |
Astyanax fasciatus |
Piabinha |
Hemigrammus gracilis |
Piaba-verde |
Bryconops affinis |
Fonte: Cemafauna/Univasf
Além das grades comuns, o projeto do ministério chegou a avaliar a instalação de grades com eletricidade para afastar os peixes das áreas de captação de água. Esse instrumento, segundo Bentinho Silva, não mataria os animais que encostassem na grade, pois a voltagem elétrica é bem baixa.
"Mas isso causa um atordoamento nos peixes e serviria para tentar fazer com que fossem em direção oposta ao bombeamento", conta. Essa estratégia já é usada em pequenas centrais hidrelétricas, mas, conforme explica o pesquisador, nunca foi aplicada em um local com essa enorme vazão de água.
"Cada campo de água tem sua característica. A salinidade influencia na eletricidade, e as características da água variam de um lugar para outro. No nosso caso, isso teria que ser testado à sua maneira e seria um grande investimento", comenta, justificando que não se teriam garantias da eficácia desse método.
Por isso, o MDR resolveu, por enquanto, não adotar as barreiras elétricas.
A tilápia-do-nilo é uma espécie de origem africana que foi introduzida no Brasil e, hoje, é uma das mais presentes também no Rio São Francisco — Foto: Vijay Anand Ismavel/VisualHunt
Como é feito o monitoramento
O principal objetivo do programa voltado ao estudo dos peixes é "detectar, mensurar e mitigar possíveis impactos ambientais" da transposição do Rio São Francisco sobre esses animais.
São monitorados 37 rios, riachos ou reservatórios artificiais (os açudes), distribuídos em nove bacias hidrográficas (veja os pontos no mapa). As bacias doadoras são aquelas que fornecem água ao projeto da transposição e as receptoras são as beneficiadas.
Além disso, é previsto o monitoramento de outros 27 reservatórios artificiais construídos pelo projeto da transposição.
Pontos de monitoramento de peixes no Rio São Francisco — Foto: Rodrigo Sanches/G1
Para isso, os pesquisadores visitam diversos pontos de monitoramento duas vezes ao ano. Eles ficam pelo menos três dias em cada lugar: capturam os peixes usando redes, tarrafas, peneiras e puçás.
As amostras são contadas e identificadas ainda em campo. Isso é feito em um ponto antes do bombeamento e em outro depois, para fazer a comparação.
"Nós devolvemos a maioria dos peixes para os rios. Só alguns exemplares são levados para o depósito da coleção científica da Univasf e servirão para o estudo dos peixes dessas regiões", afirma Bentinho Silva".
Em laboratório, os pesquisadores analisam as características reprodutivas e alimentares de cada peixe.
"Já temos catalogadas as espécies, sabemos quais são as mais frequentes, quais são as que víamos em 2012 e as que agora não vemos mais, quais são as espécies dentro dos canais e as que já foram ou podem ir para as outras bacias", acrescenta o cientista.
"É um trabalho a ser realizado em médio e longo prazos. As respostas sobre alterações que venham a surgir sobre os peixes podem levar anos para serem detectáveis."
Pesquisadores usam rede de "arrasto" para capturar peixes sob influência da transposição do Rio São Francisco — Foto: Divulgação/Cemafauna/Univasf
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