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O lobby da transposição, por João Abner Guimarães Júnior
Agosto de 2004
A falta de isenção demonstrada pelo governo federal em relação à questão da transposição do São Francisco revela que existe uma decisão política tomada nessa direção, facilitando a atuação de um lobby poderoso que se encontra infiltrado na máquina do Estado e defende a manutenção da velha política de grandes obras hidráulicas para o Nordeste, a verdadeira "indústria da seca" na região.
Percebe-se que existe um interesse claro do atual governo em aprovar o mesmo projeto de transposição do governo passado, com a mesma infra-estrutura de 127 m³/s dos Eixos Norte e Leste.
Inclusive, o atual projeto de R$ 20 bilhões vem sendo tocado pela mesma equipe do governo passado.
A atuação da ANA vai nessa direção, o episódio da concessão de "outorga preventiva" para a obra, depois revogada, demonstra isso.
O presidente da ANA, Jerson Kelman, recomenda um sistema de bombeamento para a transposição do Rio São Francisco em dois modos. Na maior parte do tempo, o bombeamento seria de apenas 26 m³/s para o abastecimento humano e animal. O sistema só deveria funcionar em plena carga, com vazão de 127 m³/s, nos momentos em que o reservatório de Sobradinho estivesse quase cheio, com mais de 94% de armazenamento, fato raro de acontecer. Depois de 11 anos, deu-se com as chuvas intensas deste ano.
Essa proposta absurda, caso seja concretizada da forma como foi idealizada pela ANA, transformaria o projeto, anteriormente já considerado inviável tendo em vista o alto custo da água para a produção agrícola, num dos maiores elefantes brancos da história do Brasil, principalmente, quando se constata que os estados receptores possuem reservas mais do que suficientes para abastecer as demandas de consumo de suas populações. Já se fala de que seria a "Transamazônica" do Lula...
Essa nova lógica do projeto vai de encontro à realidade revelada nos estudos do Plano de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco apreciado pelo Comitê. Dos 360 m³/s alocáveis na bacia, cerca de 335 m³/s já foram outorgados, restando apenas 25 m³/s - dados convencionados, que carecem de mais estudos científicos. Estes 25 m³/s são exatamente o valor que a ANA pretende alocar para o uso externo à bacia, tendo como base o consumo humano nos estados do Nordeste setentrional. Portanto, a nova justificativa do projeto de transposição do São Francisco não é uma mera coincidência.
Sob o ponto de vista legal, deve-se destacar que a Lei Federal nº 9.433, de 1997, recomenda o uso prioritário dos recursos hídricos para o consumo humano e dessedentação (saciar a sede do animal) apenas em situação de escassez. Esse fato não corresponde à realidade das bacias receptoras, como é o caso da bacia do Piranhas-Açu no Rio Grande do Norte com um consumo humano de apenas 1,3 m³/s, que representa um pequeno percentual da disponibilidade efetiva de cerca de 17 m³/s, a jusante da barragem Armando Ribeiro Gonçalves.
Outro aspecto legal importante que deve ser evidenciado é que o Decreto Federal nº 4.024 determina que as obras de infra-estrutura hídrica da União devem obedecer a critérios de sustentabilidade, operacional e hídrica, devidamente comprovados pela ANA. Entende-se que uma auditoria isenta, com certeza, deveria revelar a inviabilidade do projeto de transposição e contestar a certificação da obra por parte da ANA.
A criação e atuação do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco é o fato novo nesse processo legal. A obra da transposição deveria constar do Plano Decenal da Bacia aprovado pelo Comitê.
Essa necessidade apressou a formulação do Plano, que existiria para justificar a obra. A leitura da primeira versão do plano elaborado pela ANA, e rejeitada pelo Comitê, comprova facilmente essa tese.
Entretanto, a análise da última versão do plano permitiu identificar importantes mudanças que foram fruto de contribuições da Câmara Técnica de Planos do Comitê. Com relação ao uso externo para os Estados não integrantes da bacia, fato esse diretamente relacionado com o projeto de transposição, restringiu-se a alocação de água ao consumo humano, desde que seja comprovada a real necessidade da bacia receptora. Sem dúvida, um grande avanço na luta contra o lobby de transposição do Rio São Francisco. O pedido de vistas, porém, sobre esta resolução de outorgas para uso externo, solicitado pelo governo e concedido pelo Comitê, adiou a decisão e reabriu o campo para o lobby.
A lógica do lobby é a mesma da doença oportunista que se instala quando o organismo se encontra fraco, como foi o caso do atual governo que assumiu sem um projeto concreto para o semi-árido.
Portanto, o maior desafio para a sociedade civil é construir e viabilizar politicamente um projeto alternativo tecnicamente viável, ambientalmente sustentável e socialmente justo para a região. Essa é a nossa missão atual.
João Abner Guimarães Jr. - Doutor em Hidrologia, professor da UFRN, ex-diretor da Agência Estadual de Águas do RN.