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O caso do São Francisco: transposição de águas ou de erros? Por Marco Antônio Tavares Coelho
Disponível em:
http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv324.htm
Olho d’água, beira de rio,
Vento, vela a bailar,
Barcarola do São Francisco,
Me leve para amar.
Barcarola do São Francisco
(Geraldo Azevedo e Carlos Fernando)
Ao lado de todas as mazelas que atormentam o Velho Chico, uma antiga ameaça volta a pairar sobre o “rio da unidade nacional”. O pesadelo resulta das artimanhas de um poderoso lobby, que insiste em desviar uma parcela das águas do São Francisco para áreas do semi-árido setentrional do Nordeste (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco). Mas um fato novo marcou o panorama atual: o lobby lavrou um tento importante porque conseguiu envolver o governo Lula na campanha para implantar seu projeto.
No passado, por diversas vezes e em diferentes épocas, foram apresentados projetos a respeito dessa tentativa de sangria no Velho Chico. O primeiro deles surgiu na metade do século dezenove, quando o país começou a tomar conhecimento do flagelo causado pelas secas no Nordeste. Desde então calou fundo na opinião pública o pungente drama dos retirantes, a crestação das lavouras, a morte pela inanição dos rebanhos. Enfim, várias desgraças provocadas pela inclemência do meio ambiente. Em razão disso, o governo imperial adotou algumas providências. Cabe assinalar, por exemplo, a decisão da Regência Trina, em 1831, autorizando a abertura de poços artesianos profundos. Depois, em 1856, encarregada de estudar o problema das secas, a Comissão Científica de Exploração, chefiada pelo barão de Capanema, recomendou a “abertura de um canal ligando o rio São Francisco ao rio Jaguaribe” [1].
Atendendo a tal indicação, logo a seguir aparece o primeiro projeto esquematizando o desvio do São Francisco, na fronteira entre Pernambuco e Bahia. Plano que não vingou porque, naquela época, o Brasil não possuía recursos tecnológicos que permitissem a execução da obra, que demandava o bombeamento dessas águas a fim delas ultrapassarem a Chapada do Araripe, para depois chegarem ao Ceará [2].
No século vinte o movimento em favor da transposição de águas do São Francisco foi conquistando adeptos quando as secas agravavam o quadro das populações miseráveis. Na década de 40, por exemplo, a questão foi apresentada no famoso livro de Geraldo Rocha, empresário e político de grande prestígio nacional [3].
Em 1958, o engenheiro Mário Ferracuti divulgou seu projeto na revista O Cruzeiro, em que propunha a construção de uma barragem para represar o São Francisco perto de Cabrobó (PE), com a finalidade de dali se bombear água para o Ceará e Rio Grande do Norte.
Em 1983, Mário Andreazza, quando disputava sua indicação como candidato à presidência da República, na eleição pelo voto indireto, apresentou um projeto batendo na mesma tecla, como um dos pontos de sua plataforma de governo. Como Andreazza foi derrotado pelo seu oponente - Paulo Maluf - na convenção da Arena, tudo fazia crer que logo essa proposta cairia no esquecimento, acompanhando o declínio inexorável de seu proponente.
Mas as coisas não evoluíram dessa forma e o projeto não foi transferido para o arquivo das idéias irrealizáveis. Como uma fênix, a tese renasceu de suas cinzas. Como se explica tal sobrevida? Atrás da justificativa de que o plano resolveria um problema que atormenta os nordestinos, na verdade ele correspondia sobretudo aos interesses de um grupo de empresários e próceres políticos. Em sendo assim, consegue ser reapresentado, apesar das reviravoltas no cenário nacional. Por tudo isso, pode-se dizer que o plano do desvio de águas do São Francisco transformou-se numa espécie de ectoplasma, que paira sobre o Brasil. (Segundo o Aurélio, ectoplasma na parapsicologia é uma substância visível que emana do corpo de certos médiuns). Tal fenômeno fantasmagórico foi bem caracterizado pelo jornalista Washington Novaes, ao dizer que esse projeto mais “parece assombração, que de tempos em tempos reaparece” [4].
Montado para impulsionar a realização de gigantescas obras no Nordeste, principalmente a cada início de governo esse grupo de empresários e políticos pressiona de forma renitente a administração federal, a fim de conseguir que essas empreitadas sejam iniciadas. No entanto, é necessário frisar que nesse lobby participam destacadas personalidades não somente do Nordeste. Washington Novaes assinalou que o lobby é “capitaneado, na área financeira, por conhecida figura da diplomacia que tivera de ser afastado às pressas de um país europeu, após escândalo denunciado por alta figura dessas bandas” (ib.).
Como trabalha esse lobby? Ele desdobra-se em três áreas, com um pessoal qualificado para o exercício de funções bem definidas. Em primeiro lugar, organizou uma assessoria técnica para redigir estudos, pareceres, discursos, etc.; cabe também a ela a missão de participar em reuniões e encontros, quando o tema é a transposição do São Francisco.
Tais assessores atuam há muitos anos com o apoio do Ministério da Integração Nacional e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, por intermédio de uma prestadora de serviços técnicos, uma fundação sediada em São José dos Campos, denominada Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais - Funcate, que é dirigida por um brigadeiro do ar aposentado, José Armando Varão Monteiro. Assim, a Funcate é o braço executivo que contrata firmas de consultoria para realizar alguns estudos. Entre elas aparecem a VBA Consultores e o consórcio Jaako Pöyry-Tahal.
Em segundo lugar, o lobby conta com pessoas dedicadas ao corpo-a-corpo nos bastidores da administração federal e no Congresso. Nesse ramo desempenham função relevante políticos que se comprometeram com a realização do projeto, como o ex-ministro Aluísio Alves. No momento, a figura de proa nesse mister é o senhor Fernando Bezerra, senador pelo Rio Grande do Norte. Ademais, em terceiro lugar, nas fileiras do lobby existem pessoas que militam nos meios de comunicação, colocando artigos na imprensa, sugerindo pautas e aliciando jornalistas para que trabalhem em favor do projeto da transposição.
Como se trata de uma estrutura que vem atuando com desenvoltura ao longo de 25 anos, tudo indica ser elevado o custo de tal desempenho. Por isso logo vem à tona a seguinte indagação - quem arca com suas despesas? A resposta é simplesmente óbvia: elas são cobertas por recursos do governo federal.
A confirmação desse fato partiu de uma pessoa de grande projeção política e que também se destaca pela sua habitual franqueza. Naturalmente, estamos nos referindo ao vice-presidente da República, José Alencar. Sua indiscrição ocorreu num seminário internacional, realizado em Brasília, em setembro de 2003, promovido pela Agência Nacional de Águas - ANA, com o objetivo de analisar o gerenciamento das atividades do projeto GEF/Pnuma na bacia do São Francisco.
Procurando reforçar sua argumentação em favor da transposição de águas do São Francisco, o sr. José Alencar, naquela reunião, proclamou que “o governo já havia gasto quase 70 milhões de reais na preparação dos projetos de engenharia”. Acrescentou que “todos os documentos estão prontos e que, por essa razão, desde logo poderiam ser feitos os editais para a licitação das obras”. (Posteriormente, segundo afirmou num debate, realizado na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, no dia 21 de outubro de 2003, ele declarou coisa diversa, uma vez que, com a modificação dos projetos, o governo ainda não dispõe das indispensáveis autorizações do Ibama, ou seja, a aprovação do relatório de impactos ambientais.)
Veja-se bem, como até agora não se construiu absolutamente nada - nem um metro de barragem, de canal ou adutora - em quê e como se gastou tanto dinheiro? Obviamente, além de propiciar excelente remuneração a essas “empresas de consultoria”, aí está um exemplo de como são desperdiçados recursos dos contribuintes. Isto porque há mais de uma década uma montanha de dinheiro vem sendo gasta numa papelada absolutamente inútil. Planos e projetos que vão se empilhando, que dão em nada, mas que alimentam uma corte de assessores aparentemente bem qualificados nos meios acadêmicos.
A trajetória de um plano
Voltando ao relato sobre a insistente pressão em favor do projeto do desvio de águas do São Francisco, vejamos os episódios ocorridos após a derrota de Andreazza, na disputa dentro da Convenção da Arena. Dez anos depois, em 1993, no governo de Itamar Franco, o ministro da Integração Nacional, Aluísio Alves (ex-governador do Rio Grande do Norte) reabriu a discussão, propondo a construção de um canal em Cabrobó, para retirar do São Francisco até 150 metros cúbicos de água por segundo, com o propósito de beneficiar áreas do Ceará e Rio Grande do Norte.
Todavia, esse projeto foi rapidamente fulminado por um parecer do Tribunal de Contas da União, mostrando que, “embora se pensasse em gastar alguns bilhões no projeto, ele não fazia parte do planejamento da administração federal e era ignorado pelo Ministério da Agricultura, embora se destinasse à irrigação em larga escala” [5]. Além disso, o mesmo Tribunal de Contas salientou, em seu parecer, que, ademais, o projeto impedia o crescimento da irrigação em Minas Gerais e na Bahia, além de provocar uma queda na produção das hidrelétricas, uma perda no valor de um bilhão de dólares.
Logo a seguir houve nova ofensiva do lobby. No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, os paraibanos Cícero Lucena e Fernando Catão, quando ocuparam a Secretaria Especial de Políticas Regionais, redesenharam o projeto Aluísio Alves e nele incluíram duas transposições para levar água para a Paraíba. Pouco tempo depois, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba - Codevasf desenvolveu um projeto destinado a irrigar todo o semi-árido. Contudo, como previa ser realizado num prazo de 25 a 30 anos e como seu custo seria de vinte bilhões de dólares, esse plano mirabolante foi engavetado, pois logo se evidenciou que ele navegava nas nuvens das idéias totalmente fora da realidade.
Um outro capítulo dessa novela surrealista sucedeu quase na mesma época. Referimo-nos à proposta encaminhada e defendida com unhas e dentes pelo ex-ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra. Era um projeto de menores dimensões em comparação com o da Codevasf. “Foi concebido para transferir águas do São Francisco para as bacias adjacentes do Nordeste Setentrional, localizadas nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Entretanto, outros estudos de viabilidade para a construção de canais ligando o Piauí e o Tocantins também foram contemplados, mas não incluídos no custo do projeto” [6]. Este foi estimado em 2,7 bilhões de reais. Nele estava embutida uma proposta de captação de recursos junto ao BNDES, além da privatização da Chesf e do encaminhamento de novas tentativas de empréstimos junto ao Banco Mundial, pois esse estabelecimento financiou os primeiros estudos da transposição.
O projeto contemplava construir dois eixos principais de adução. 1 - o Eixo Norte: com uma captação próxima a Cabrobó, o canal aduziria água para as bacias do Brígida (em Pernambuco), do Jaguaribe/ Metropolitana (no Ceará), Apodi e Piranhas-Açu (no Rio Grande do Norte), além do Piranhas (na Paraíba); 2 - Eixo Leste: captação no lado da barragem de Itaparica, o canal levaria água para as bacias de Moxotó (em Pernambuco) e Paraíba (na Paraíba), prevendo-se a possibilidade de ser transportada água para Recife e para o agreste pernambucano.
Foi explicitado “que o bombeamento não será contínuo, pois visa apenas garantir o suprimento de alguns açudes compensando a água evaporada e, com isso, abastecer seis milhões de pessoas e irrigar 180 mil hectares de terras. Para a água chegar às vertentes daqueles estados, terá de ser elevada a 160 metros de altura, passar por túneis e aquedutos e percorrer 2 mil quilômetros de rios a céu aberto evaporando e se infiltrando. Segundo o governo, o custo será de 3,5 bilhões de reais somente em obras de engenharia” [7].
O político potiguar incluiu no projeto outras obras que deveriam ser feitas, tais como barragens para regularizar a vazão de afluentes do São Francisco, em Minas Gerais. E acrescentou que seriam construídos 200 quilômetros de canais artificiais e perenizados mais de dois mil quilômetros de rios. Esse projeto começou a ser examinado, entre os anos de 1981 e 1985, no Departamento Nacional de Obras contra a Seca - DNOCS. Posteriormente, um estudo sobre o impacto ambiental do projeto foi submetido ao Ibama.
Inicialmente, o presidente FHC concordou que o ministro Fernando Bezerra impulsionasse o plano. Contudo, o técnico que em 2002 assumiu o Ministério do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, na undécima hora convenceu o então ocupante do Palácio do Planalto de que era um erro colossal o projeto defendido pelo sr. Fernando Bezerra. (Atualmente, o sr. José Carlos Carvalho é o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, sendo também o titular da Secretaria do Meio Ambiente de Minas Gerais.)
Recapitulando os diversos capítulos dessa já exaustiva novela, chegamos assim à disputa no cenário do governo do PT.
O denominado “Projeto São Francisco”
Neste início do governo Lula o ectoplasma da transposição de águas do Velho Chico novamente surge no panorama e o lobby consegue uma vitória na batalha: o presidente endossa a controvertida proposta, chocando-se de frente com os especialistas do PT, que sempre combateram o desvio de águas do Velho Chico.
Observe-se que, na campanha eleitoral, o candidato do PT não fez qualquer alusão a essa polêmica. Lula, portanto, surpreendeu a opinião pública, ainda mais porque tomou desde logo uma medida concreta para implementar sua decisão, ao encarregar o vice-presidente da República de coordenar as articulações em favor do projeto.
Imediatamente o lobby caiu em campo para obter apoio para sua velha tese. O senador Fernando Bezerra publicou artigos nos principais jornais lembrando que, quando deixou o Ministério da Integração Nacional, “faltava apenas o Congresso aprovar o orçamento inicial da obra e vencer resistências localizadas...” [8]
Mas, este recomeço do debate sobre a transposição de águas sucede num quadro político diverso daquele que prevalecia no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997. Ampliou-se consideravelmente a consciência nacional a respeito das questões ambientais e ganharam destaque na opinião pública as denúncias a respeito da situação dramática do Velho Chico. Contribuíram para tanto alguns fatores, inclusive a crise que levou o governo federal a decretar o racionamento de energia elétrica.
Ao mesmo tempo, nos últimos anos foram aprovados e começaram a ser aplicados alguns textos legais sobre recursos hídricos, entre as quais a lei federal n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. Documentos que implantaram instituições nas quais participa ativamente a sociedade civil, o que facilita e até estimula a defesa de nossos rios. Igualmente é digno de nota o comportamento do Ministério Público, que vem zelando de forma hábil e enérgica pelas causas ambientais. E no que diz respeito ao São Francisco é importante ressaltar o firme empenho dos promotores públicos.
Diante do país evidenciou-se também o desenvolvimento de inúmeras atividades empresariais na região sanfranciscana que largamente utilizam a irrigação. Assim, as entidades que reúnem agricultores, pecuaristas e industriais assumem com firmeza o combate a planos governamentais que podem determinar o fracasso desses empreendimentos. Essa atitude ficou demonstrada no debate realizado na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, em outubro do ano passado.
Outro fator de relevância foi a multiplicação das iniciativas na sociedade em defesa do São Francisco e de seus afluentes, merecendo um destaque especial a campanha do Projeto Manuelzão, contra a poluição do Rio das Velhas, principal afluente do Velho Chico. Movimentos que culminaram recentemente com a criação do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco. Então, manobras articuladas em Brasília, para a aprovação de medidas relacionadas com o São Francisco, sem qualquer consulta à opinião pública, não mais terão sucesso, como sucedia nos tempos da ditadura militar.
Devido a isso, o velho lobby da transposição viu-se diante de uma situação que o obriga a fazer mudanças acentuadas em seus planos. O próprio fato de Lula haver colocado o sr. José Alencar como articulador do projeto determinou que exigências políticas terão de ser atendidas. A principal delas é que a tese da revitalização do São Francisco passou a ser uma exigência sine qua non. Ou seja, se não for levada em consideração pode desde já ser preparado o epitáfio para a lápide da sepultura do projeto de transposição.
(Nesse ponto é interessante assinalar que, por azares da vida política, o governo federal nessa questão do São Francisco tem de ter cuidados especiais em seu relacionamento com três governadores de estados que não rezam pela cartilha do PT. Ou seja, os que estão à frente de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.)
Por isso, o agora chamado “Projeto São Francisco” apresenta diversas modificações se o comparamos com o projeto original do lobby, lançado nos risonhos tempos de Andreazza. Entre elas, estabelece que, na primeira etapa, somente serão retirados do São Francisco 63 metros cúbicos de água por segundo, dado que o sr. José Alencar enfatiza, a fim de tentar convencer aos incautos que a sangria do São Francisco é mínima, quase um zero à esquerda, isto é, apenas 3% da vazão média do rio depois da barragem de Sobradinho. (Mágica que, para ser realizada, custaria ao país, na melhor hipótese, seis bilhões e meio de dólares!)
Outras novidades importantes foram introduzidas no projeto de Andreazza (mais correto seria dizer - no projeto do lobby). Pelo que aparece em determinadas pronunciamentos, incluiu-se no “Projeto São Francisco” o objetivo de, também e simultaneamente, ser feita a transposição de águas do Tocantins para o São Francisco. A respeito dessa guinada, mais adiante faremos alguns comentários.
Além disso, como a preocupação central do sr. José Alencar é angariar apoio político para uma tese que vem sendo rechaçada nos estados banhados pelo São Francisco, foram agregados no novo projeto alguns desdobramentos. Entre os quais a construção de canais a fim de transferir água do Velho Chico para áreas dentro e fora de sua bacia hidrográfica. Isto é, em Sergipe, Alagoas e Bahia e até mesmo na direção do Piauí, com o propósito de aumentar a vazão dos rios Canindé e Piauí. Enfim, um festival de canais para ninguém sair insatisfeito dessa refrega.
(Outras alterações significativas foram introduzidas no “Projeto São Francisco. Todavia, como até agora documentos oficiais não foram divulgados, é difícil um juízo seguro a respeito dessas mudanças.)
No entanto, como as metas do projeto se avolumaram extraordinariamente, logo brotou o inevitável questionamento: onde encontrar recursos para concretizar tantos sonhos? Um tímido esclarecimento, no debate do dia 21 de outubro, em Belo Horizonte, foi emitido pelo vice-presidente da República. Disse ele: “Agora estamos voltados para viabilizar o projeto do ponto de vista econômico e financeiro”. E nada mais foi dito.
Em como o Tocantins entrou na dança
A idéia de estabelecer um relacionamento entre o velho projeto e o adjutório das águas do Tocantins complicou a questão. Mas, de saída demonstrou que nos círculos técnicos existe uma corrente que entende ser irrefutável o argumento de que a vazão do São Francisco não aconselha o uso de suas águas em planos grandiosos de irrigação em outras bacias. E que, para atender a tal objetivo é indispensável receber uma parcela de águas de um rio da bacia amazônica. Essa evolução provavelmente ocorreu em conseqüência da crise no sistema elétrico, quando o governo federal foi obrigado a determinar o racionamento de energia. Medida drástica que demonstrou a tremenda importância dos reservatórios das hidrelétricas no São Francisco.
A tese de levar água do Tocantins para o Nordeste não é recente. A sugestão foi inclusive defendida por André Rebouças, há mais de 120 anos. Posteriormente, outros técnicos reforçaram a proposta. Para tanto, contribuiu um dado elementar. Aos que lidam com a problemática dos recursos hídricos no Brasil impressiona o contraste da vazão média das águas do Tocantins - 11.300 metros cúbicos por segundo, quando a do Velho Chico é de 3.040 metros cúbicos por segundo. Ou seja, quase três vezes menos [9]. Portanto, essa realidade gritante sempre estimulou os anseios de desviar parte do caudal volumoso do Tocantins para irrigar uma boa fatia do polígono da seca.
Todavia, nessa questão, na mesa dos técnicos estão colocadas duas opiniões. Inicialmente, a sugestão foi a de que se deveria inverter o curso do rio do Sono (um importante afluente do Tocantins), para que suas águas atravessem o Jalapão; a partir desse ponto, então, elas chegariam ao rio Preto (também afluente do Tocantins); na fase seguinte passariam por um canal para o rio Sapão (este pertencente à bacia do São Francisco); daí seguiriam por um afluente do rio Grande, que deságua no Velho Chico [10].
Resumindo, as águas percorreriam um canal de 1.200 quilômetros, bombeadas de reservatório para reservatório, a fim de transpor 600 metros de altura, para levar no mínimo 50 metros cúbicos de água por segundo. Tudo isso a um custo de quase seis bilhões de reais.
Mas logo se apurou que esse complexo projeto causaria um enorme dano ao meio ambiente, conforme foi analisado por Washington Novaes. Porque, em primeiro lugar, o canal atravessaria o Jalapão, “um dos raríssimos fragmentos de cerrado com possibilidade de sobrevivência - e a Área de Proteção Ambiental do Parque Ecológico Estadual...”, o que não é admitido pela legislação em vigor. Em segundo lugar, acentua esse jornalista que essa pretensão em levar água do Tocantins para o São Francisco poderá envolver uma questão curiosa e delicada. Isto porque “estudos recentes da ANA mostram que o aqüífero subterrâneo Urucuia verte água tanto para a bacia do São Francisco como para o Tocantins”... Então se pergunta: com a retirada de água do Tocantins, o que acontecerá no aqüífero? Ganha-se numa região e perde-se na outra? [11]
Alguns especialistas em recursos hídricos apresentam uma sugestão diferente a respeito do desvio de uma parcela das águas do Tocantins para o Nordeste. No estudo feito pela Fundespa, a proposição foi assim explicitada: “Poder-se-á idealizar a transposição direta das águas do rio Tocantins, para o nordeste setentrional, a partir de Carolina (Maranhão), aproveitando as maiores vazões médias (4.200 metros cúbicos por segundo), melhor qualidade das águas, regime pluviométrico estável e bem definido, menores probabilidades de longas estiagens, vazões regularizadas pela operação da barragem de Serra da Mesa e a possibilidade de regularizar afluentes do rio Parnaíba (principalmente o rio Canindé) propiciando, por acréscimo, a transferência de águas para o reservatório de Sobradinho” [12].
Quanto a essa segunda alternativa, importa assinalar que ela pressupõe um conjunto de obras de imenso vulto. Ou seja, essas águas provenientes do Tocantins teriam de percorrer 1.600 quilômetros, seguindo por túneis, canais e/ou adutoras, o que exigiria um complexo sistema de barragens e represas, conforme esclarece um especialista que defende esta idéia - o professor Everaldo Gonçalves. Em sendo assim, estima ele que o custo desse empreendimento seria de cerca de 15 a 18 bilhões de dólares!
Todavia, as duas alternativas para levar águas do Tocantins para o semi-árido do Nordeste - tanto a do rio do Sono como a de Carolina - são combatidas pelo lobby da transposição. Aluísio Alves logo declarou que não é necessária a transposição do Tocantins, condenando de forma aberta e radical os projetos que envolvem as águas deste rio. Segundo ele, com apenas 3% das águas do próprio São Francisco será possível irrigar o semi-árido de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará (sic). E proclamou taxativamente que incluir o Tocantins no projeto da transposição “é uma forma de engavetar mais uma vez o plano da transposição”. Isto porque, acrescentou, “somente a elaboração do novo projeto levaria cerca de seis anos” [13].
No entanto, um outro participante do lobby - reagiu de forma mais esperta, “mais política”, vamos dizer assim. Jogando com habilidade, o senador Fernando Bezerra, afirmou que algumas “sugestões procedentes, como o desvio de águas do rio Tocantins para o São Francisco, em nada iriam obstar o andamento do projeto” (do Velho Chico) [14]. Assim, ele sugeriu a utilização de uma conhecida artimanha de administradores: começar imediatamente uma obra, porque esse é o caminho seguro para posteriormente ela se tornar irreversível. Veja-se a sabedoria do senador potiguar: quer logo iniciar as obras no São Francisco e ... enquanto isso, Deus sabe quando, no devido tempo, serão examinadas as alternativas do Tocantins!
Os argumentos em favor do projeto
Em certas condições, justifica-se plenamente a transferência de águas de um rio para outro. E até de uma bacia hidrográfica para outra bacia. Em princípio, portanto, não é um absurdo examinar a possibilidade de modificações de vulto no sistema hidrográfico, notadamente quando essas alterações decorrem de projetos indispensáveis e que levem em conta seus impactos ambientais.
Três argumentos principais são esgrimidos pelos defensores da transposição de águas do São Francisco. São eles: 1 - é indispensável resolver a situação de milhões de brasileiras e brasileiros que vivem no nordeste setentrional; 2 - pretende-se retirar do São Francisco apenas 3% de sua vazão, o que não afeta em nada a utilização que já vem sendo feita de suas águas; 3 - é baixíssimo o custo das obras, tendo em vista que no futuro haverá economia de gastos com os flagelados pelas secas.
Vejamos a primeira questão: o beneficio para as populações do nordeste setentrional.
Sempre que vêm à baila a problemática da seca, o país cerra fileiras em torno daquilo que é proposto em favor da gente nordestina, pois os brasileiros não são impassíveis diante da sorte madrasta dos que vivem no semi-árido. Mas, também avaliam as lições de um século e meio de campanhas de socorro aos flagelados, porque sabem que certas medidas de apoio às regiões assoladas pelas secas beneficiam sobretudo os aproveitadores das agruras do Nordeste.
Desde o século dezenove, o Poder Público se envolveu na atividade que tem o objetivo de pelo menos minorar as tragédias causadas pelas secas. Segundo o prof. Alberto Daker, o Departamento Nacional de Obras contra a Seca - DNOCS, criado em 1909, montou uma estrutura de armazenamento de água invejável no nordeste setentrional. São mais de 70 mil açudes particulares de pequeno porte e mais de 400 açudes públicos de médio a grande porte, com uma capacidade total de cerca de 30 bilhões de metros cúbicos de água, volume quase igual ao do imenso reservatório de Sobradinho. Ou seja, tais açudes dariam para irrigar mais de 480 mil hectares de terras, mas a área realmente irrigada é de apenas 120 mil hectares [15].
Especialistas em recursos hídricos advertem para as distorções na política realizada no Nordeste pelos poderes públicos desde os tempos imperiais. Com sua autoridade em recursos hídricos, robustecida pela sua condição de atual presidente da Agência Nacional de Águas, Jerson Kelman afirma que “muitos desses açudes têm sido historicamente operados segundo as necessidades de pequenos grupos que se beneficiam do investimento público como privado fosse” [16].
Devido a tudo isso, ao lado da solidariedade à população martirizada pela seca, devemos examinar com espírito crítico as sugestões apresentadas como imprescindíveis para resolver, ou minorar, o sofrimento dos que vivem nas áreas setentrionais do semi-árido. Nesse comportamento também levamos em conta a seguinte observação do prof. Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo: “O que mais falta no semi-árido do Nordeste brasileiro não é água, mas determinado padrão cultural que agregue confiança e melhore a eficiência das organizações públicas e privadas envolvidas no negócio da água” [17].
Uma impressionante documentação a respeito da disponibilidade de água no semi-árido nordestino foi trazida ao presente debate pelo prof. Alberto Daker, professor titular na Universidade Federal de Viçosa e especialista em irrigação, notando-se que essas informações procedem de órgãos e instituições de pesquisas sediados no Nordeste, como o DNOCS e a Sudene.
Lê-se numa separata do Boletim Técnico do DNOCS: “Os recursos hídricos do Estado do Ceará são escassos, mas suficientes para irrigar 220 mil hectares, o que corresponde a uma vazão regularizada de 185,5 metros cúbicos por segundo, com 90% de garantia. Para uma freqüência de 100%, esta vazão é de 105 metros cúbicos por segundo. Atualmente a área irrigada no estado é inferior a 10 mil hectares” [18].
Anote-se essa outra informação do DNOCS: “Só no vale do Jaguaribe, no Ceará, segundo estudos e levantamentos realizados pela Sudene em colaboração com o governo francês, as águas das chuvas que se podem armazenar serão suficientes para irrigar 140 mil hectares dos 220 mil hectares de solos irrigáveis existentes” [19].
Vejamos o que está num relatório de uma comissão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em julho de 2000. Nele se lê:
”As ações governamentais na região tem se caracterizado pelo enfrentamento da problemática da seca a partir da construção de infra-estrutura hidráulica, destacando-se a construção de açudes, perfuração de poços e obras de irrigação.” Acrescentando que, na verdade, elas sempre estiveram vinculadas à concepção tecnicista da seca que aponta os projetos hidráulicos como solução para toda a problemática. “Além dessas medidas, outras, de caráter populista foram tomadas ao longo do tempo, as quais contribuíram decisivamente para a reprodução do poder das oligarquias que desde os primórdios da formação político-territorial do Nordeste domina a Região” [20]. O mais curioso, porém, é a declaração dos professores e pesquisadores de Natal de que “os recursos hídricos hoje disponíveis no Estado do Rio Grande do Norte, fator primordial para seu desenvolvimento auto-sustentável, oferecem a possibilidade integral a toda a população norte-rio-grandense” (ib.). Em outras palavras, não há carência de água naquela unidade da Federação!
Ademais, nesse estado está situada a represa Armando Ribeiro Gonçalves, localizada no município de Açu. Esse reservatório pode acumular 2,4 bilhões de metros cúbicos de água, estimando-se que tem condições de atender a toda população desse Estado por mais de duas décadas. Todavia, está previsto que ele será abastecido com água trazida do São Francisco. Por isso, comenta-se, naquele estado, que o fato pode ser comparado a uma chuva que se precipita no molhado, quando a região do Seriado, na qual existem reais necessidades de irrigação, não foi contemplada, no projeto, com uma gota sequer das águas do Velho Chico.
O desvio de águas é mínimo?
Os defensores da transposição afirmam que, pelo “Projeto São Francisco”, será mínimo o desvio de águas, de apenas 3% da vazão média do São Francisco, na barragem de Sobradinho. E que, por isso, essa sangria em nada afetará a vida do rio e os serviços que presta ao País. Mas o exame dessa “contribuição mínima” envolve uma questão mais complexa, pois demanda saber qual é a real vazão do rio, a fim de avaliarmos os prejuízos que serão acarretados por essa “contribuição mínima”. Isso nos obriga a uma pequena digressão em torno do tema, pois não há consenso a respeito do atual volume de águas do Velho Chico.
A divergência decorre de duas opiniões que conflitam. A maioria das pessoas que vivem nas margens do Velho Chico insiste reiteradamente que o rio “está morrendo”, que “suas águas estão diminuindo”, trazendo informações fidedignas até sobre o desaparecimento de nascentes, córregos e ribeirões na bacia hidrográfica, com dados minuciosos a respeito de diferentes áreas do São Francisco.
Contrariamente, os que propõem a transposição propalam a existência de um excedente de águas no São Francisco. Fundamentam essa opinião em dados técnicos apurados em diversos pontos do rio, que resultam de levantamentos permanentes sobre a água que entra e sai das barragens. Ademais, alicerçam esse ponto de vista no fato de que o volume de águas do rio depende sobretudo das chuvas que caem na bacia, fenômeno que é influenciado por outros fatores, como os meteorológicos e climatéricos.
Dois anos atrás ocorreu uma crise que naturalmente comprovou a falsidade da tese de que “há um excedente de águas no Velho Chico”: o racionamento da energia elétrica decretado pelo governo federal, em conseqüência do baixíssimo nível dos reservatórios das hidrelétricas no São Francisco, assim como no de outras represas localizadas no Sudeste.
Agora mesmo, em janeiro de 2004, em pleno início da estação chuvosa, foi acionado o “seguro apagão”, em decorrência da precária situação das represas no São Francisco. (O reservatório de Sobradinho, o maior do Nordeste, estava apenas com 12% de sua capacidade.) Em conseqüência, entraram em funcionamento 20 usinas termo-elétricas emergenciais no Nordeste, que produzem energia a um custo maior do que as hidrelétricas. Com isso milhões de consumidores no Brasil doravante terão um acréscimo em suas contas de luz [21].
Mas, de qualquer maneira, nas discussões sobre o São Francisco, essa divergência sobre a situação real do Velho Chico sempre está presente, gerando até críticas acerbas entre os adeptos de cada uma das posições. O mais curioso nisso tudo é que esse contencioso não é novo. Vem de longe, desde as polêmicas que envolveram eminentes cientistas mineiros, como Álvaro da Silveira e Lúcio José dos Santos. (Vide, a propósito, o livro de Victor F. de Freitas [22].
Analisando essa duplicidade de opiniões sobre o volume das águas do grande rio, José Carlos Carvalho dá uma explicação convincente, esclarecendo que, na verdade, uma opinião não invalida a outra, pois os dois fenômenos ocorrem simultaneamente. Ou seja, notadamente em Minas Gerais há uma evidente diminuição nas águas de um número elevado de córregos, riachos, lagoas e rios. Todavia esse fenômeno pode ou não repercutir na calha do Velho Chico e no volume das águas que acionam as turbinas, em razão das chuvas torrenciais no verão, desde que essas águas ficam represadas nos grandes reservatórios, como Três Marias e Sobradinho.
É claro, todavia, que os fenômenos que causam a degradação do rio, principalmente o desmatamento, comprometem as represas e as hidrelétricas, em razão do permanente processo de assoreamento. (Assinala-se que o transporte de sedimentos no São Francisco atualmente é oito vezes maior do que antes.)
Retornando ao que discutíamos, isto é, à afirmação que o desvio de algumas dezenas de metros cúbicos de água por segundo não é relevante, é indispensável levar em conta outros dados demonstrativos de que mesmo uma sangria de 3% na vazão do rio São Francisco não pode e não deve ser efetivada.
No debate realizado na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, em outubro passado, o prof. José Teodomiro de Araújo citou informações da Chesf comprovando que, ao longo dos anos, só excepcionalmente houve uma vazão média de 2 mil metros cúbicos de água por segundo no Velho Chico. Revelou esses dados porque os defensores do projeto da transposição baseiam seus cálculos de que há, em Sobradinho, uma vazão média de 2.800 metros cúbicos por segundo. Além disso, no mesmo debate, o engenheiro Francisco Sales Dias Horta, vice-presidente da Cemig, declarou que o volume da água acumulada em Três Marias vem diminuindo de forma assustadora e que desde a construção da barragem a situação da represa nunca foi tão grave como agora vem acontecendo.
Assim, uma conclusão se impõe: se for concretizado o desvio de águas do grande rio, a potência das hidrelétricas do São Francisco será irremediavelmente afetada.
O prof. Alberto Daker, partindo da informação de que projeto da transposição de água, em sua primeira etapa, prevê a retirada de 75 metros cúbicos de água por segundo, da vazão regularizada, a jusante de Sobradinho, calculou que esse desvio de água redundaria numa diminuição de 356 MW da potência das centrais da Chesf.
Mas não se restringe a esse dado o ônus adicional para o sistema elétrico, pois pelo menos deve a ele somar-se o consumo de energia para o bombeamento da primeira etapa da transposição. Portanto, a redução da potência instalada da Chesf, caso venha a ser adotado esse projeto, será de pelo menos 626 MW. Prejuízo equivalente à perda de 1,64 vezes a potência instalada da usina de Três Marias, de conformidade com os cálculos do prof. Alberto Daker, que afirma: “Somente o custo da energia, perdida nos aproveitamentos hidrelétricos e consumida pelas bombas, só nesta primeira transposição, tornaria qualquer projeto de irrigação inviável, mesmo considerando a fundo perdido os bilhões que seriam gastos nas obras” [23].
Enfim, por esta e outras razões, o volume das águas do São Francisco não permite que uma parcela delas seja desviada para outras bacias. E, mesmo que, em certas épocas, possa vir a ocorrer uma pluviosidade maior no Sudeste e no Nordeste, tal suposição não justifica e não aconselha a montagem de um vasto e oneroso sistema de desvio permanente de águas do São Francisco. Pois nos próximos anos possivelmente crescerá a demanda de energia e água em Minas Gerais e nos outros estados da bacia do Velho Chico, principalmente em razão do provável desenvolvimento das atividades do agribusiness no vale do São Francisco.
O custo do projeto
Os defensores do projeto, como Ciro Gomes, a respeito das estimativas das despesas com a transposição, afirmam que os custos, mesmo sendo elevados, se distribuem por muitos anos e não oneram as contas da União, uma vez que, realizadas essas obras, o Poder Público não necessitará gastar tantos recursos no atendimento dos flagelados pelas secas, como vem ocorrendo atualmente. Esse argumento foi usado pela primeira vez pelo deputado Marcondes Gadelha, quando, em junho de 2.000, em documento ao presidente da República, afirmou que os custos da implantação do projeto da transposição se justificam quando são comparados com medidas emergenciais adotadas num período prolongado de estiagem.
A falácia dessa argumentação é por demais evidente. A transposição apenas beneficiaria uma área extremamente reduzida do Nordeste e tão só poderia ser útil a uma faixa limitada da população. Se for concretizada a transposição, nos termos previstos pelo projeto do lobby, conforme lembra o prof. Alberto Daker, a água continuará restrita aos leitos dos rios, até então secos e será encaminhada às áreas próprias para a irrigação e somente essas terras serão umedecidas.
Então, apesar das grandes perdas no encaminhamento das águas, caso se consiga irrigar 100 mil hectares, em um ou mais projetos de irrigação, essa área corresponderá somente a 0,28% da extensão total (357 mil quilômetros quadrados) dos quatro estados, ficando os restantes 99,72% sem o benefício da transposição e sujeitos às conhecidas vicissitudes das secas.
Portanto, a afirmação, do atual ministro da Integração Nacional, de que o projeto é um maná dos céus para cerca de 12 milhões de nordestinos é uma retórica vazia sem qualquer base na realidade dos fatos. Mas, destaca-se nesse festival de palavras soltas ao vento, o senador Fernando Bezerra, quando, sem se enrubescer, escreveu que a aprovação do projeto até “significará a queda, acentuada, das tensões sociais em centros como São Paulo e Rio de Janeiro.” E acrescentou: “A diminuição dos fluxos imigratórios virá acompanhada da conseqüente redução dos índices de desemprego, de violência e de multiplicação de favelas, frutos típicos do crescimento urbano desordenado” [24]. Ou seja, para a grande figura dos lobistas, a salvação imediata do Brasil repousa na transposição de águas no São Francisco! Valha-nos Deus!
Questões fundamentais
No debate atual é imprescindível haver clareza sobre as questões centrais que motivam nossa aberta divergência a propósito de um problema de enorme relevância para o Brasil. Verdadeiramente, estamos diante de um projeto que foi elaborado dentro de uma visão profundamente equivocada a respeito de questões ambientais básicas e de uma correta política em relação ao semi-árido. Ou seja, insiste-se em tentar enfrentar as secas com a realização de grandes obras de engenharia, inteiramente desligadas de uma visão mais ampla da problemática geral das populações do semi-árido. Daí a nocividade do projeto elaborado pelo lobby e que está sendo endossado pelo governo federal.
Entende-se que Andreazza e os lobistas, que prepararam o projeto original, tenham apresentado um documento de conformidade com sua visão da realidade brasileira e de suas propostas para o País. Todavia, o que espanta é que essas teses sejam encampadas por um governo do PT, quando até o governo de FHC finalmente decidiu arquivar esse absurdo.
(Cabe aqui uma observação. Nesta análise do projeto é indispensável assinalar que essa proposta vem sofrendo profundas alterações nos últimos tempos, particularmente porque seus autores são acossados por críticas generalizadas de inúmeros setores sociais e técnicos. O ministro Ciro Gomes, em sua entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura, no dia 8 de dezembro passado, declarou, sem rebuços, que o projeto está sendo totalmente reformulado. Assim, como o governo não divulga documentos oficiais a respeito dessas mudanças, pode ser que, num detalhe ou em outro, algumas de nossas observações críticas não tenham mais razão de ser. Todavia, como sabemos que o projeto em sua essência não foi alterado e porque apresenta objetivos e razões que devem ser rechaçados pela opinião pública brasileira, consideramos totalmente pertinentes as teses aqui apresentadas.)
Em primeiro lugar, enfatizamos que os defensores do projeto não apresentaram, até agora, esclarecimentos satisfatórios sobre os impactos ambientais que essa profunda alteração no regime das águas do Velho Chico causará ao rio e à imensa região sanfranciscana.
Conforme apontou o recente documento elaborado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, em sua reunião em Penedo, o projeto não analisou os “impactos referentes à capacidade do rio no atendimento às crescentes demandas hídricas que dele se requer, nem tampouco apresenta um cenário transparente de qual é o universo real das demandas hídricas da bacia receptora”. Ademais, o projeto não coloca como prioritárias as atividades voltadas para a revitalização do São Francisco. Igualmente, ele não examina as questões relacionadas com os prejuízos que podem ser provocados pelos graves atentados à biodiversidade na região.
A plena evidência de que a documentação, entregue ao Ibama, dois anos atrás, de forma alguma atendeu às exigências da legislação, acabou sendo reconhecida pelo próprio governo. Pois, segundo anunciou o ministro Ciro Gomes, o governo submeterá ao Ibama um novo estudo sobre os impactos ambientais das obras que pretende realizar no São Francisco [25].
Há vários anos os especialistas em recursos hídricos, assim como os que estudam os problemas ambientais, de forma quase unânime, condenam o projeto da transposição de águas. Declaram que o caminho a ser adotado no Nordeste é outro.
Essa opinião foi sintetizada por João Bosco Senra, engenheiro sanitarista e atual Secretário Nacional de Recursos Hídricos. Escreveu ele: “Movimentos sociais, ONGs, igrejas e inúmeros técnicos da área de recursos hídricos, em contraponto ao eterno discurso “de que é preciso acabar com a seca” e à defesa de grandes obras para as empreiteiras, como é o caso atual da transposição do São Francisco, têm discutido e implementado alternativas para a convivência com a seca, que vão desde projetos de armazenagem de águas captadas pelas calhas dos telhados até a construção de cisternas, a reorientação de plantios com culturas mais apropriadas para a região seca, a criação de animais que consomem menos água, a construção de barraginhas e as práticas de conservação do solo” [26].
Acrescente-se ainda que a transposição não objetiva resolver os problemas reais das populações pobres que vivem no vale do São Francisco. Veja-se o que ocorre nas margens do próprio rio, onde a gente ribeirinha sofre com a sede e a miséria.
Ao lado disso, cumpre assinalar que, nos termos do projeto em debate, até áreas onde vivem comunidades indígenas - os índios Truka e Tuxá - serão diretamente afetadas, como é o caso da ilha Assunção. Dado inaceitável, pois a sobrevivência desses povos depende da exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos da região.
Outra questão básica impossibilita que esse projeto possa ser apoiado por forças que almejam transformações efetivas na realidade econômica e social brasileira - o projeto não esclarece “como se daria a viabilização, a distribuição e o uso democrático da água a ser transposta para o semi-árido setentrional, de forma a justificar a enormidade de recursos que dispenderá”, como grifou o “Documento de Penedo”.
Ou seja, o governo federal resolveu apoiar um projeto em que elevados recursos financeiros do Poder Público serão utilizados na continuação da política da “indústria das secas”. É compreensível que políticos, como Aluísio Alves e Fernando Bezerra, estejam entusiasmados com os apoios agora conseguidos para assegurar a continuação da secular política em relação às secas, a fim de manter inalterado o “statos quo” dos que dominam o Nordeste. O que não dá para entender, porém, é essa fantástica ajuda que o PT talvez transmita às oligarquias do Nordeste.
Outros aspectos reforçam a crítica a respeito das soluções errôneas, apresentadas pelo lobby da transposição, para enfrentar a problemática do semi-árido. A esse propósito, apresentei em meu livro “Rio das Velhas - memória e desafios”, diversas opiniões e argumentos que justificam esse posicionamento [27].
Além disso, é incompreensível que os defensores da transposição não levem em conta as alternativas que têm surgido para se resolver a questão da carência de chuvas em determinadas regiões do Nordeste. Por exemplo, veja-se o caso de Pernambuco. O governador Jarbas Vasconcelos vem reiterando que, antes de se discutir a transposição em si, é mais racional que sejam entregues “os recursos prometidos pelo Poder Central para complementar as obras hídricas em andamento no Estado, como a Adutora do Oeste, ou para a execução de outras há muito tempo no papel, como o projetado Canal do Sertão”. O governador quer, antes de tudo, e nisto está coberto de razão, que essas obras sejam concluídas com a urgência necessária, pois irão garantir o abastecimento hídrico do Sertão do Araripe, vizinho do Piauí, causando o mesmo efeito positivo sobre outro longo trecho do semi-árido, até alcançar Serrita, nos limites de Pernambuco com o Ceará [28].
Outras críticas irrefutáveis
Outros pontos, que colocam em questão a necessidade, a possibilidade e a validade do projeto já foram apresentados e fundamentados por diversos especialistas, desde quando começou a ser debatido esse plano. Aqui apresentamos algumas dessas observações.
Muitos técnicos advertem que a transposição prejudicará o desenvolvimento da agricultura irrigada na própria bacia do São Francisco. Segundo levantamento realizado pela Codevasf, na década de 1960, em parceria com a U.S Bureau of Reclamation, dos Estados Unidos, existem três milhões de hectares de terras planas, próprias para irrigação no vale do Médio e Submédio São Francisco (portanto, no polígono das secas). É curioso assinalar que se houvesse a decisão de irrigar todas essas terras seria indispensável toda a água do São Francisco, o que determinaria, portanto, a paralisação das hidrelétricas.
Como esclarece o prof. Alberto Daker, pelo fato de a transposição implicar em grandes perdas de água e, também, em decorrência de as sobras de águas de irrigação não retornarem ao Velho Chico, cada hectare irrigado em conseqüência desse projeto, deixará, no mínimo, dois a três hectares sem possibilidade de irrigação nas margens do São Francisco.
Não se pode esquecer também um outro dado do problema - como será feita essa distribuição de água, caso seja concretizado o projeto da transposição?
No estudo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte foram apresentados os seguintes questionamentos:
- qual o custo do metro cúbico de água ao chegar ao consumidor final?
- quem pagará: o governo, o consumidor doméstico ou o produtor agrícola?
- quem operará a distribuição de água?
- a questão fundiária será resolvida ou agravada ?
- o projeto servirá ao “empoderamento” de quem?
- ele traz um plano de desenvolvimento sustentável e solidário das áreas favorecidas?
Até agora, os governantes e os defensores do projeto não se preocuparam em fornecer explicações sobre essas questões.
Respondendo às perguntas de jornalistas no programa Roda Viva da TV Cultura, Ciro Gomes tão-somente disse que o governo federal cobrará dos governos estaduais o custo da água que será fornecida. Todavia, face aos recursos financeiros astronômicos que poderão ser aplicados no plano, ele nada informou a respeito de medidas que o governo tomará para beneficiar lavradores pobres, posseiros, etc., enfim providências que poderão ser adotadas em favor das populações carentes que vivem no Nordeste Setentrional. Portanto, para o ministro da Integração Nacional tudo se resume em fornecer água e nada mais.
Qual o interesse do lobby nesse projeto?
À medida que vamos apresentando as razões que condenam radicalmente o projeto vai se impondo a necessidade de examinar os motivos dessa campanha encetada pelos lobistas. A quem interessa o crime? Esse é o velho brocardo indispensável aos que buscam descobrir a causa da prática de um crime.
Tudo está a indicar que o objetivo do lobby é abrir caminho para investimentos dos agronegócios voltados para a exportação. Nos últimos anos, um dos setores mais rentáveis da economia e que apresenta razoáveis perspectivas de desenvolvimento consiste exatamente nos empreendimentos voltados para a exportação de produtos agrícolas, beneficiados ou semibeneficiados.
Por essa razão, desde os tempos de Andreazza, o projeto da transposição despertou justificado interesse de proprietários de grandes áreas, em determinadas regiões do semi-árido, especialmente naquelas que foram indicadas como as favorecidas diretamente pelas obras do plano.
Analisando tal questão, João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, fez o seguinte esclarecimento: “Da forma que o projeto de transposição está sendo proposto atualmente, interessa, e muito, aos grandes empreiteiros, aos fabricantes de equipamentos de grande porte, aos que buscam financiamento eleitoral, aos proprietários de terras que serão indenizados pela passagem de canais, aquedutos e construção de reservatórios e aos especuladores de terras” [29].
Além disso, todos sentem como é aguçado o faro das empreiteiras para a possibilidade de participarem em vultosas obras de engenharia. Pois é sabido como essas empresas se lançam com audácia na abertura de caminhos para a expansão de seus negócios. Ademais, não é possível esquecer o interesse direto das pessoas ligadas às empresas de consultoria, como é o caso da Funcate. Mas um outro grupo de pessoas vem completar a equipe dos empenhados na execução do projeto: os políticos que caçam desesperadamente eleitores e argumentos para sua inesgotável demagogia política.
O documento de Penedo
A pressão do governo e a movimentação do vice-presidente da República, no sentido de coordenar apoio político para impulsionar o projeto, colocaram na ordem-do-dia a discussão de uma tese que parecia definitivamente enterrada. Assim, tornou-se inadiável um confronto de opiniões, pois o que está em jogo não é uma questão secundária para o país.
Todavia, a polêmica que está em curso não será uma mera repetição de embates anteriores, notadamente daquele que foi travado durante o governo de FHC. Isto porque há um elemento novo e bastante significativo entre os que participam nesse verdadeiro cabo-de-guerra, disputado por contendores que se empenharão a fundo em defesa de suas teses. Esse elemento novo vem a ser o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, criado de conformidade com a nova lei sobre os recursos hídricos. Então, nenhuma alteração poderá ser feita no regime de águas do Velho Chico sem a concordância desse Comitê. Este é uma entidade normativa, consultiva e deliberativa, vinculada ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, mas destinado a atuar como um “parlamento das águas”.
Assim, ficaram para trás, felizmente, os tempos em que as obras no São Francisco eram decididas em conchavos, na penumbra das antecâmaras ministeriais em Brasília. Sistema que acabou propiciando erros calamitosos, como os absurdos cometidos na construção da barragem de Sobradinho.
Agora, as pendências são solucionadas às claras, de acordo com regras que não podem ser manipuladas tendo em vista exclusivamente os interesses e o apetite de eventuais ocupantes do Poder. Numa demonstração de como será essa porfia, cumpre registrar o sucedido na II Reunião Plenária do Comitê da Bacia, realizada no ano passado, em outubro, na cidade de Penedo. Nela estiveram presentes o vice-presidente da República, os ministros Marina Silva e Ciro Gomes, assim como os governadores de Alagoas e Sergipe, Ronaldo Lessa e João Alves Filho.
Após uma ampla discussão, os participantes acordaram lançar um documento denominado Declaração de Penedo, em que formularam uma crítica incisiva e enérgica ao projeto da transposição de águas do São Francisco.
Esse documento confirma o apoio às populações sertanejas do Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí, Paraíba e Pernambuco, a fim de serem encontradas soluções corretas para o problema do abastecimento de água no semi-árido setentrional. Mas, além de ponderar que a transposição não é a única alternativa para essa região do Nordeste, principalmente em face dos inúmeros questionamentos que continua a suscitar, o Comitê considerou que “a lógica do chamado ‘projeto São Francisco’ continua centrada com exclusividade na realização de grandes obras de engenharia hídrica, inteiramente desconectadas de uma visão mais ampla da problemática geral das populações do semi-árido brasileiro.”
De conformidade com tal posicionamento, esse Comitê assumiu o compromisso de produzir a primeira versão do Plano de Recursos Hídricos do rio, porque entende que só poderá se pronunciar a respeito da transposição num contexto de planejamento global da bacia. Diante disso, o vice-presidente da República afirmou que o governo, antes de tomar qualquer decisão a respeito do projeto de transposição, aguardará o pronunciamento da entidade encarregada de zelar pelo Velho Chico.
No quadro atual, qualquer que seja a evolução dessa controvérsia, parece ser correta a posição assumida pelo governador Aécio Neves, quando deu o mote a todos que desejam salvar o Velho Chico, ao proclamar que “antes de ser feita a transposição do São Francisco, Minas reclama que medidas prioritárias sejam tomadas para recuperar o grande rio e a sua bacia.” E que “falar em transposição, antes da revitalização, é falar sobre o que não irá ocorrer” [30].
Cabe à opinião pública acompanhar com atenção os desdobramentos dessa polêmica, tanto as medidas que podem vir a ser adotadas pelo governo, como aquelas que balizarão as atividades do Comitê da Bacia do São Francisco e de todos os comitês dos afluentes do Velho Chico. A chave do sucesso dessa batalha repousa, porém, na participação sobretudo dos que vivem na grande bacia. Para eles e para todos que sofrem com os malefícios causados ao Velho Chico, “a revitalização significa também a revalorização da cultura local e de sua relação com o rio São Francisco, da volta das lagoas marginais, e da conexão natural do rio com suas margens e ecotones, da volta dos curimatãs, dos surubins e dourados livres nas corredeiras silenciadas do rio e do reflorestamento de suas margens desnudas”, conforme definiu o “Fórum Permanente de Defesa do São Francisco” [31]. E deve servir como exemplo de como se conquista um destino a luta travada no Rio das Velhas, sob a bandeira do Projeto Manuelzão.
Os sinos de rebate, portanto, devem ser acionados desde as serranias da Canastra até o estuário em Sergipe e Alagoas, reclamando um amplo e democrático debate sobre o que deve ser feito em função do Velho Chico. Nessa hora o chamado da campanha da fraternidade neste ano, da CNBB, pode e deve nortear o despertar da sociedade brasileira. Nele se lê: “A degradação de nossos rios chegou ao limite e já estamos em uma fase reativa. Hoje, já existe um programa de revitalização do rio São Francisco. Entretanto, recuperar um rio é um processo longo e caro, além de exigir a participação da população local. Porém, não temos saída. Estamos colhendo os frutos de uma história brasileira feita de depredação dos nossos recursos naturais, inclusive os nossos rios.”
Resta agora especular-se sobre o que sucederá nessa batalha. Pode-se prever que será uma disputa renhida e prolongada. De um lado porque o velho lobby está escorado em pronunciamentos incríveis de Lula, que chegou a dizer: “Vou fazer a transposição no São Francisco na marra, nem que seja transportando água em latas na cabeça”. Em contraponto, representantes qualificados do Ministério Público, como o promotor Jarbas Soares. Este declarou enfaticamente: “recorreremos ao Poder Judiciário a fim de impedirmos esse atentado ao São Francisco”. Tudo indica que o sr. José Alencar cometerá um suicídio político se não abandonar o barco da transposição. As audiências públicas para a discussão dos impactos ambientais do projeto serão acompanhadas atentamente pela opinião pública. As forças políticas nos cinco estados só farão força numa direção: obter recursos federais para proceder à revitalização da bacia hidrográfica. Contudo, o lobby tem experiência e um fôlego de sete gatos, pois seus elementos, há anos, ganham rios de dinheiro graças à novela desse projeto.
Enfim, muita água correrá ainda no São Francisco antes de ser decidida a questão.
Uma advertência final
Nessa hora, devem-nos valer observações de cientistas e administradores com longa experiência no trato das coisas públicas. Um deles é o físico José Goldenberg. Ele fez uma interessante análise no Correio Braziliensesobre o tema que estamos examinando. Afirmou: “O problema é energia e infra-estrutura para usar água e é isso que as usinas hidrelétricas, ao longo do São Francisco, fazem muito bem. Poder-se-ia até argumentar que é preciso dos dois: água e energia elétrica, e o problema é como alocar a vazão do grande rio nordestino entre as duas prioridades. Decidir entre elas tem enormes conseqüências econômicas, mas os interesses daqueles que querem construir grandes obras costumam ter um peso descomunal no Brasil. As soluções ‘pequenas’ e descentralizadas não têm, porém, o mesmo atrativo que grandes obras como canais de transposição de rios que parecem oferecer soluções mágicas. É preciso lembrar, contudo, que muitas das ‘grandes’ soluções foram tentadas no passado no Nordeste sem grande sucesso. Desenvolvimento real e, em particular, desenvolvimento sustentado, necessita do envolvimento, interesse e até entusiasmo de muitos e não de uns poucos ‘iluminados’. Transpor parte do São Francisco para alimentar açudes e irrigação pode até ser uma solução viável, mas a decisão de fazê-lo exige estudo comparativo com outras opções existentes” [32].
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Marco Antônio Tavares Coelho é jornalista e editor-executivo da revista Estudos Avançados, do Instituto de Estudos Avançados da USP. É autor de Herança de um sonho - as memórias de um comunista e O Rio das Velhas - memória e desafio. O presente artigo é capítulo de um livro em preparação a respeito do rio São Francisco.
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Notas
[1] Aldo Rebouças. Estudos Avançados. São Paulo, USP, n. 29, 1997, p. 136.
[2] Cf. site www.portalsaofrancisco.hpg.ig.com.br
[3] O Rio São Francisco, p. 229-30.
[4] Estado de S. Paulo, 22/8/03.
[5] Ib.
[6] Renata Andrade. “Da transposição das águas do Rio São Francisco à revitalização da bacia: as várias visões de um rio”. Ago. 2002. E-mail: renata@socrates.berkeley.edu
[7] Fernando Ferro e Maurício Aroucha. O desafio da sustentabilidade. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 152-3.
[8] Folha de S. Paulo, 6/10/03.
[9] Aldo Rebouças. Águas Doces no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Escrituras, São Paulo, 2002, p. 29.
[10] Folha de S. Paulo, 4/8/03.
[11] O Estado de S. Paulo, 22/8/03.
[12] Documento da Fundespa intitulado “Avaliação técnico-científica dos projetos e estudos ambientais da transposição das águas do Rio São Francisco para o Nordeste Setentrional”, p. 12.
[13] Folha de S. Paulo, 4/8/03.
[14] O Estado de S. Paulo, 6/10/03.
[15] Documento do autor. E-mail: altti@terra.com.br
[16] Águas Doces no Brasil, cit., p. 396. Texto de Jerson Kelman junto com os professores Mario Veiga F. Pereira, Tristão Araripe Neto e Paulo de Holanda Sales.
[17] Estudos Avançados, cit., p. 128.
[18] Manfredo Cássio de Aguiar Borges. “Potencialidades e Aproveitamento dos Recursos Hídricos no Estado do Ceará”. Boletim Técnico do DNOCS. Fortaleza, jul./dez 1983.
[19] Paulo de Brito Guerra. “Evolução e Problemas da Irrigação no Nordeste”. Fortaleza, DNOCS, 1970, p. 45.
[20] “A transposição do Rio São Francisco e o RN”. Documento da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”. Natal, jul. 2000, p. 5 e 13.
[21] O Estado de S. Paulo, 7/1/04.
[22] Na Bacia do São Francisco. Minas Gerais, 1960, p. 51-7.
[23] Documento citado na nota 16.
[24] Folha de S. Paulo, 6/10/03.
[25] Declaração do ministro Ciro Gomes no programa Roda Viva, da TV Cultura.
[26] Texto publicado, em agosto de 2001, no livro O desafio da sustentabilidade, coletânea organizada e publicada pela Editora Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores.
[27] Ed. Paz e Terra, p. 157-62.
[28] Jornal do Commercio, Recife, 15/10/03.
[29] Texto “Rio São Francisco - Conflitos nos usos de suas águas”. Cf. site www.fundaj.gov.br/ docs/tropic/dest/js (jun. 1999).
[30] Estado de Minas, 22/10/03.
[31] Renata Andrade, trabalho citado na nota 7.
[32] Correio Braziliense, 20/10/2000.