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Governo quer levar água a 12 milhões de pessoas
Publicado em
04/06/2019 10h05
Atualizado em
17/11/2021 14h18
Para especialistas, disputa pela água pode gerar conflitos político-econômicos. Autorização deixa brecha para uso não só o para consumo doméstico.
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Folha de São Paulo
ANA PAULA BONI
DA REDAÇÃO
09/10/2005
Empreendimento mais audacioso do governo Lula, o projeto de integração da bacia do rio São Francisco com as bacias dos rios do Nordeste Setentrional vai custar aos cofres públicos R$ 4,5 bilhões em sua primeira fase e pretende levar água a 12 milhões de pessoas em municípios de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. O projeto de transposição das águas prevê a construção de dois canais, o eixo norte e o eixo leste, que somarão 622 km de extensão e levarão água para as bacias de rios temporários no semi-árido nordestino. Dessas bacias, a água seguirá para açudes e reservatórios em cidades, de onde sairá para o consumo humano e a dessedentação animal. A dúvida, porém, é se essa água será ou não utilizada para irrigação e se ficará concentrada nas mãos de grandes produtores e exportadores. Especialistas admitem entender que a água a ser transposta não fará falta à bacia, até porque o governo prevê que a retirada será equivalente a 1,4% da vazão média que o rio despeja em sua foz, no encontro com o mar, que é de 1.850 m3/s. Há, no entanto, o receio de que, sendo utilizada por grandes produtores, a água não seja suficiente para o uso doméstico de toda a população que se prevê atender e para o uso de pequenos agricultores. Além disso, há a preocupação de o destino da água acabar provocando conflitos de interesses político-econômicos. Devido a essas disputas na região o Comitê da Bacia do Rio São Francisco, criado por decreto presidencial em 2001, não contemplou o uso da água para fins econômicos no Plano Decenal da Bacia (leia texto abaixo). Segundo o secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, Cláudio Langone, a disputa das águas do eixo norte entre irrigação e abastecimento "pode ser um conflito real". Langone disse que, no caso desse trecho, a água vai para reservatórios para ser usada "sobretudo em irrigação". Ele diz, no entanto, que a água do eixo leste deve ter maior uso urbano. Para o historiador Marco Antonio Villa, professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), o projeto de transposição não será destinado a pequenos agricultores, que não terão fácil acesso à liberação da água. Isso porque, quando a mesma cair nos reservatórios das cidades, será administrada pelas prefeituras e não mais pelo governo federal. "Essa obra fabulosa não trará liberdade econômica para o pequeno agricultor." O pesquisador de recursos hídricos da Fundação Joaquim Nabuco João Suassuna afirma que o problema também reside na chamada "indústria da seca". Segundo Suassuna, que estuda a bacia do rio São Francisco há mais de dez anos, a compra de votos por meio da utilização de carros-pipa nas cidades mais castigadas pela seca não acabará. "A população, mesmo com a transposição, continuaria assistida por carros-pipa, porque a água chegará para os grandes empresários. É este pessoal que vai ver a cor da água do São Francisco." O coordenador-geral do projeto no governo Lula, Pedro Brito, defende o contrário. Ele afirma que a chegada da água nas mãos da população vai acabar com esse sistema. "A "indústria da seca" vai receber um tiro na cabeça, porque a população terá água para viver." Uso das águas Chefe-de-gabinete do Ministério da Integração Nacional, Brito também defende que o projeto não servirá para a irrigação de grandes plantações. "Esse projeto não é um projeto para irrigação. É um projeto de segurança hídrica. A água não precisará ser guardada por muito tempo nos açudes, e poderá ser utilizada o ano inteiro, mesmo que não chova." Enquanto o governo federal bate na tecla que o projeto não servirá para grandes produtores, não há hoje, no entanto, a certeza de que isso não vá acontecer. Parágrafo único da outorga em que a ANA (Agência Nacional das Águas) autoriza o uso das águas da bacia do São Francisco diz que, se a demanda da água for inferior ao que está autorizado a ser retirado da bacia -26,4 m3/s (1 m3 equivale a 1.000 litros)-, o projeto "poderá atender o uso múltiplo dos recursos hídricos da região receptora". O governo defende que apenas dessa forma a água excedente serviria para fins como a irrigação. Porém uma brecha na autorização da ANA, concedida em 22 de setembro, põe em dúvida a decisão sobre o uso e o destino da água quando for necessário retirar mais que os 26,4 m3/s do rio. Isso porque a autorização concedida pela agência, em consonância com o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, prevê que, "excepcionalmente, será permitida a captação da vazão máxima diária de 114,3 m3/s", quando a barragem de Sobradinho (BA) estiver com 94% de seu volume. Não há detalhes na resolução sobre o que, de fato, significa uma situação excepcional. Prevê-se que caberá aos Estados e municípios essa decisão, o que, de certa forma, ganha contornos políticos. Além disso, mesmo que não se configure uma situação como excepcional, a agência contempla -em nota técnica emitida no dia seguinte ao da outorga de uso das águas- uma vazão média diária de 87,9 m3/s "referente a outros usos da água e a ser bombeada eventualmente". Também não há referência a que outros usos da água o documento se refere. |