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Entrevista com Ruben Siqueira: CPT considera desobediência aceitável para barrar obras no São Francisco
Disponível em:
http://www.ecodebate.com.br/Principal_vis.asp?cod=5457&cat =
Por Anselmo Massad
08/06/2007
Ruben Siqueira - Imagem do Google
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Revista Fórum
] Os primeiros soldados chegaram no sábado, 2. Com o acampamento militar preparado, o contingente desembarcou na terça-feira, 5. Não é uma guerra, apesar de a disputa na Justiça e o acirramento de ânimos parecer uma. Trata-se do início das obras da transposição das águas do São Francisco. Enquanto a parte civil, construída por empreiteiras contratadas por licitação ainda não realizadas, o exército brasileiro irá começar a obra.
Em Cabrobó, de onde parte o eixo norte do projeto, voltado ao Ceará, 270 encarregados do 2º Batalhão de Engenharia e Construção (BEC), sediado em Teresina-PI, já estão a postos. Outros três batalhões do BEC, mobilizados antes para obras em rodovias no Nordeste, devem se deslocar para o médio São Francisco. Líderes indígenas das etnias truká, tumbalalá prometem bloquear o eixo norte e os Pipipã, afetados pelo eixo leste.
Entidades como a Articulação Popular São Francisco se mobilizam para tentar barrar a iniciativa. Ruben Siqueira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em entrevista à Fórum, considera a desobediência civil prometida por lideranças indígenas na região seria aceitável neste momento.
A chegada do exército visa a criar uma política de fato consumado para desarticular os movimentos sociais e dar um caráter humanitário para o projeto. O histórico de empreendimentos inacabados e envolvidos em escândalos de corrupção permitem acreditar, segundo Siqueira, que a transposição pode ser um ralo de corrupção
.
Caso a desobediência civil não crie canais de diálogo de fato com o governo, considerando recuar na transposição e pôr em prática as alternativas propostas pela Agência Nacional das Águas (ANA) em seu Atlas Nordeste, por exemplo, Siqueira não descarta greve de fome de ativistas contra a transposição.
FÓRUM
– O senhor esteve na terça-feira na Câmara de Vereadores de Salvador para uma homenagem ao bispo Dom Luiz Cappio. A homenagem tem relação com o São Francisco?
RUBEN SIQUEIRA
- Não, foi o título de cidadão soteropolitano concedido ao bispo no Dia do Meio Ambiente [5 de junho]. O outro homenageado foi o exército, por um trabalho de preservação realizado na cidade, no último pedaço de Mata Atlântica que resta...
FÓRUM
- Acaba sendo irônico no dia em que os soldados do exército chegaram a Cabrobó [PE], palco da greve de fome de Dom Luiz, e de onde parte o eixo norte da transposição.
SIQUEIRA
- Era o que nós comentávamos. A informação que tivemos é que chegaram 270 soldados a Cabrobó, para preparar os alojamentos para a construção dos eixos norte e leste, e as bases do canteiro de obras. São duas bases, um posto de gasolina desativado e outro é uma agrovila, em que alguns lotes foram alugados. O escritório central é em Salgueiro [PE], por onde o projeto prevê que passe um dos canais do eixo norte.
FÓRUM
- E que avaliação o senhor faz desta medida do exército?
SIQUEIRA
- É uma linha que sempre vem permeando a ação do governo. Há um apelo humanitário e populista que encobre os verdadeiros lobbies por trás do projeto, do uso econômico da água do rio. O exército, além da proteção das fronteiras e do território, também tem função de agir em ações humanitárias, o que dá essa fachada, ao mesmo tempo em que o governo adianta o processo. Alguns membros do exército estiveram na região há cerca de seis meses para fazer medições e picadas, independentemente do licenciamento ambiental, que à época não havia saído. Era uma ameaça antiga do governo mobilizar soldados para iniciar as obras antes da licitação.
Acontece que, no final do ano passado, quando saiu o relatório do Tribunal de Contas da União [TCU] dando conta de que não chegam a 7 milhões os beneficiados diretamente, e não 12 milhões como dizia o projeto, e que que R$ 500 mil haviam sido gastos etc., e despertando dúvidas sobre o custo-benefício da obra, o ministro da Defesa, Waldir Pires, aceitou a sugestão de parar até que se discutisse melhor o cenário. O Ministério Público e o Fórum da Bahia fizeram audiência com o ministro para questionar uso do exército. A resposta foi de que exercito não se envolveria em função do relatório do TCU, enquanto o STF não se manifestasse sobre isso. E que a pasta devolveria os R$ 180 milhões transferidos pelo Ministério da Integração. Temos um documento com esse compromisso. Havia a determinação de afastar o exército até se resolver. Se não resolveu, é de se perguntar por que o exército volta a se envolver?
FÓRUM
- O senhor tem alguma hipótese?
SIQUEIRA
- O governo dá seqüência a seus atos. Fomos a Brasília em março. O governo colocou tudo que dissesse respeito à transposição deveria ser tratado com o Ministério do Meio Ambiente. A ministra Mariana Silva nos recebeu. Mas tanto a Dilma Roussef [ministra chefe da Casa Civil] quando o Geddel [Vieira Lima, ministro da Integração] disseram que não havia mais o que conversar, mas que o diálogo estava aberto. Esse diálogo não tem sido levado a sério. O próprio acordo para o fim da greve de fome de Dom Luiz Cappio não é cumprido. O governo quer apenas o diálogo que não coloque a transposição em xeque, quer a discussão pós-início das obras. Agora, Geddel diz que vai passar pelo rio de barco para esclarecer e ouvir à população, o que é uma grande empulhação, porque querem dar início às obras logo para lidar com o fato consumado, criar um fator psicológico para abalar a resistência. O segundo trecho mais caro em disputa tinha a Gautama [empreiteira acusada de comandar uma rede de lobby e corrupção junto a membros do Congresso Nacional que veio a público na Operação Navalha da Polícia Federal] credenciada para a licitação. Isso levanta a dúvida se há mesmo interesses em realizar a obra inteira, ou se é só para licitar, começar a construção e deixar inacabada como fonte de votos para todo político que prometer terminar. E há o discurso dos sedentos contra a especulação de terra, já estabelecida por completo.
FÓRUM
- Como está a especulação de terras?
SIQUEIRA
- As notícias que temos mostram que alguns ganharam muito dinheiro com as desapropriações enquanto outros receberam muito pouco. O fazendeiro Antonio Russo, da fazenda Mãe Rosa, onde ocorre a tomada d'água do eixo norte [em Cabrobó] recebeu 500 mil. Um outro senhor, com igual quantidade de terra, recebeu apenas R$ 125 mil. Isso é um exemplo de como se aumentam as diferenças sociais existentes. O senhor Elias Brandão foi desapropriado de sua propriedade de três hectares por R$ 150. A passagem mais o preço para se lavrar a escritura já não compensa a viagem, ele não vai buscar o dinheiro. Como resolver com todo o histórico de concentração de renda e o passivo que existe de outras obras? Há pendências em Tucurui e Itaparica [usinas hidrelétricas inauguradas em 1984 e 1988, respectivamente], gente que não recebeu compensações pelas terras. Agora, de novo, se reproduz todo o esquema.
FÓRUM
- Qual sua avaliação sobre a declaração de lideranças indígenas que prometem bloquear o início das obras?
SIQUEIRA
- Acredito que em um caso como esse é legítima a desobediência civil, uma vez que essa população nunca foi levada a sério. Eles têm o direito legítimo de se postarem frente a quem está agindo de forma a desrespeitar seus direitos. São comunidades indígenas que esperam decênios o processo de demarcação de seus territórios. Tudo isso deixa de ter valor porque uma obra se impõe, e todos têm de deixar de lado suas reivindicações? Não deixa de ser um momento interessante para as comunidades buscarem visibilidade. O canal pode passar no pé da Serra Negra, um patrimônio da cultura de um dos grupos, os Pipipã.
FÓRUM
- As partes realizadas pelo exército agora estavam previstas no edital de licitação?
SIQUEIRA
- A informação que tivemos é de que são obras de preparação do canteiro de obras e de aproximação do eixo leste. Eles não vão fazer a barragem de areia que acumula água para o bombeamento, porque é uma das atribuições previstas para uma empreiteira, mas a aproximação, a logística. Tudo poderia ser feito pela empreiteira vencedora do trecho da tomada d'água. Ocorre que o projeto está aquém do calendário estabelecido por seus promotores, devido a ações do MP e dos movimentos sociais, mas pela pressão do lobby, querem mostrar o que vai acontecer. Pelo histórico da região, o quadro pintado nos dá todos os direitos de suspeitar que a obra vá se tornar ralo de corrupção e desvio dinheiro público. Ou então, vai ser motivo de muito político ganhar voto prometendo terminar.
FÓRUM
- O que os movimentos pretendem fazer?
SIQUEIRA
- Já fizemos de tudo com os "companheiros", entre aspas mesmo, do governo, com o extremo da greve de fome. Mesmo com toda a discussão sobre o aquecimento global, em que se sabe que qualquer interferência em ecossistemas hídricos é problemática. A pressa tem a ver com o fato de a Agência Nacional das Águas [ANA] ter apresentado 530 obras com metade do custo e uma abrangência três vezes maior de pessoas e de área em seu Atlas Nordeste. Tudo isso faz necessidade de acelerar, pelo lobby incrustrado no Estado, porque ele não está só neste governo, mas nas próprias estruturas de poder. A ação divulgada pelos indígenas, de desobediência, seria uma penúltima ação contra as obras.
FÓRUM
- Qual seria a última?
SIQUEIRA
- A greve de fome.
FÓRUM
- Do bispo Dom Luiz Cappio?
SIQUEIRA
- Não sei se o bispo vai fazer. Se fizer, não o fará sozinho. Se não o fizer, acredito que outros acabarão tomando a medida em seu lugar.
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www.ecodebate.com.br
) entrevista originalmente publicada pela Revista Fórum - 06/06/2007