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Entrevista com João Suassuna: As populações que residem no pé da serra, nos grotões, não verão uma gota d'água'
Por João Suassuna
A região do semi-árido nordestino já tem capacidade suficiente de armazenar água para enfrentar os períodos de estiagem, mas faltam investimentos na distribuição dos recursos hídricos, por meio de adutoras, aponta o engenheiro-agrônomo João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, que há 12 anos se dedica a estudar o problema. Ele diz que, por não atacar esse ponto, a transposição será uma porta aberta para o desperdício de recursos públicos. A reportagem é do jornal Valor, 25-06-2007.
Para o pesquisador, o empreendimento deverá agravar o processo de salinização que já se nota na foz do rio. "Peixes típicos de água salgada estão sendo encontrados, hoje, em Penedo, a 40 quilômetros do litoral", afirma Suassuna. Ele sugere alternativas para resolver o problema da falta de água para consumo humano e prevê que a transposição atenderá principalmente a atividades econômicas - a fruticultura irrigada voltada à exportação, a criação de camarão e o abastecimento a indústrias. "As populações que residem nos pés de serra, nos grotões, não verão uma gota d'água do São Francisco e continuarão sendo atendidas por frotas de carro-pipa. A indústria da seca será perpetuada", critica.
Eis a entrevista.
O projeto de transposição do São Francisco é a melhor alternativa para resolver o problema da seca no semi-árido nordestino?
O projeto, da forma como está sendo apresentado, é absolutamente desnecessário. Temos cerca de 70 mil reservatórios no Nordeste, com capacidade para armazenar 37 bilhões de m³. É o maior volume represado do mundo em regiões semi-áridas. Ou seja, já existe capacidade suficiente, mesmo no período de seca, ao contrário do que se costuma dizer. O que não temos é uma política de distribuição dos recursos hídricos, e a transposição não ataca esse problema. Basta o gerenciamento mais adequado que, com o uso de apenas um terço dos recursos disponíveis, será possível oferecer até 200 litros de água por dia para toda a população nordestina. O que precisamos é investir em uma rede adequada de adução das águas.
Há alternativas mais baratas e mais eficientes?
O Ceará tem um exemplo de sucesso, com a interligação das suas diversas bacias e o aumento do potencial de acumulação dos reservatórios, com a construção da represa do Castanhão. Isso faz com que as regiões do Estado que apresentam dificuldades de fornecimento às populações sejam supridas por outras, com melhores condições hídricas. O programa de 1 milhão de cisternas, coordenado pela Articulação do Semi-Árido (ASA), um fórum de 800 organizações não-governamentais, já construiu 200 mil cisternas com resultados muito positivos. Uma cisterna com 15 mil litros de capacidade permite, a uma família de cinco pessoas, atravessar um período de oito meses de seca com água suficiente para beber e cozinhar.
Se o problema é distribuição, então o investimento na transposição é um desperdício de recursos públicos?
Sem dúvida. O maior adversário do governo nesse projeto, por incrível que pareça, tornou-se o próprio governo. A transposição tem um custo estimado em R$ 6,6 bilhões e afirma que vai beneficiar 12,5 milhões de pessoas. Não estão sabendo fazer as contas. Em dezembro do ano passado, a Agência Nacional de Águas (ANA) lançou um atlas que aponta alternativas mais econômicas e mais abrangentes. Com cisternas, poços com dessalinizadores e adutoras, é possível beneficiar 30 milhões de pessoas, investindo pouco mais de R$ 3 bilhões.
Quais são os principais impactos negativos da transposição do São Francisco?
As águas do São Francisco têm usos múltiplos e conflitantes. O potencial de irrigação na bacia do rio é de 1 milhão de hectares, dos quais 340 mil já são efetivamente irrigados. Essa área cresce cerca de 4% ao ano. No setor elétrico, a Chesf já investiu US$ 13 bilhões ao longo do rio São Francisco, que atualmente responde por 95% da energia gerada no Nordeste. Poucos lembram que, em 2001, a represa de Sobradinho esteve com apenas 5% do seu volume. Retirar 26 m³ por segundo da vazão do rio, em todo esse contexto, não é insignificante nem para os atuais empreendimentos de agricultura irrigada, nem para a segurança energética. Na foz do São Francisco, o rio está perdendo a batalha contra o mar e há um processo de salinização que só tende a se intensificar com a transposição. Peixes típicos de água salgada estão sendo encontrados, hoje, em Penedo (AL), a 40 km do litoral.
Existe pressão política para fazer a transposição?
Não só política, com candidatos que a vendem como redenção para os problemas da seca, como pressão e lobby das empreiteiras. Há um potencial enorme para desvio de recursos públicos. As águas da transposição terão outros destinos, que não o abastecimento humano. Seja na irrigação visando a produção de frutas para exportação, seja na criação de camarão também para exportação, seja no uso industrial, como na siderúrgica que se quer construir em Pecém, no Ceará. A usina consumirá o equivalente a uma cidade de 90 mil habitantes e será beneficiária direta da transposição. As populações difusas, aquelas que residem nos pés de serra, nos grotões, não verão uma gota d'água do São Francisco e continuarão sendo atendidas por frotas de carro-pipa. A indústria da seca será perpetuada.
Recife, 25/06/2007