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Conflito institucional remete transposição para a Justiça
Disponível em:
Carta Maior
Antônio Biondi* e Maurício Hashizume
30/11/2004
Créditos da foto: Aldo Maranhão
Vale do São Francisco e Brasília - A determinação da promotora Luciana Khoury, coordenadora do Projeto de Revitalização do São Francisco no âmbito do Ministério Público do Estado da Bahia, serve como exemplo da intensidade em que se encontra o conflito institucional sobre o projeto de transposição do rio São Francisco. "Mesmo sendo o governo federal, não podemos admitir que um empreendimento seja feito ao arrepio da lei".
O tom da declaração da promotora confirma o imbróglio jurídico provocado pela liminar concedida pela juíza-substituta da 16ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, Iolete Maria Fialho de Oliveira, que definiu o cancelamento de uma das mais importantes votações que cercam a proposta. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) foi convocado para votar, na última terça-feira (30), parecer técnico da Agência Nacional de Águas (ANA) que comprova a disponibilidade de água para o projeto de transposição encabeçado pelo Ministério da Integração Nacional (MIN).
Sobre a disponibilidade hídrica para o empreendimento, o presidente da ANA, Jerson Kelman, afirma que o órgão já se manifestou "de forma tão consistente tecnicamente que hoje não há quem seriamente questione se há ou não água suficiente para ser transportada para os açudes da região receptora". Diz ele: "É claro que há! O que continua a ser questionado é a oportunidade de se fazer um empreendimento que vai consumir parte considerável do orçamento federal enquanto existem ainda tantas carências em todo o semi-árido, inclusive na própria bacia do São Francisco. Portanto, a discussão remanescente é sobre alocação de reais [recursos financeiros], não de água", coloca.
A aprovação do parecer da ANA abriria o caminho institucional para que o CNRH pudesse se ancorar no artigo 35 da Lei 9433/1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, para "deliberar sobre os projetos de aproveitamento de recursos hídricos cujas repercussões extrapolem o âmbito dos Estados em que serão implantados", autorizando o uso de caráter econômico das águas transportadas. Em reunião realizada em outubro, o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco admitiu a transposição somente para abastecimento humano e dessedentação animal nos casos de comprovada indisponibilidade hídrica da região beneficiada.
"Consideramos que a situação é muito grave no que se refere à possibilidade de negação dos princípios que dão sustentação ao Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Esta questão transcende o âmbito regional e não atinge apenas o Comitê do rio São Francisco. A questão tem repercussões nacionais", afirma o colegiado do Comitê de Bacia em comunicado público recém-divulgado. O questionamento de competências, na visão do Comitê, deixa "cada vez mais claro que o papel que se esperava do Comitê era o de que poderia até se opor, mas nunca poderia ser capaz de barrar decisões de grande envergadura emanadas do poder central, no caso, federal".
A liminar que impossibilitou a definição do destino das águas do Velho Chico pelo CNRH sustenta que uma decisão como essas não pode ser tomada em um contexto acirrado de conflito pelo uso da água. Os procuradores do Ministério Público que propuseram a suspensão da votação e foram atendidos pela liminar argumentam que o Plano Decenal da Bacia do Rio São Francisco é como um código, uma lei. As diretrizes e prioridades definidas para a alocação de recursos hídricos para fora da bacia, um dos itens do Plano, não podem, portanto, ser simplesmente desconsideradas. Na linha defendida pelos representantes do Ministério Público do DF e Ministério Público Federal que apresentaram a solicitação, o CNRH tem a incumbência de arbitrar apenas acerca de critérios gerais. Outras quatro peças jurídicas foram protocoladas contra a votação no Conselho: uma na Bahia e outras três em Sergipe.
O projeto propriamente dito do governo também pode ser alvo de liminar Luciana Khoury confirmou para a reportagem daAgência Carta Maior que deve entrar com uma ação civil pública. Segundo ela, existem algumas mudanças de grande repercussão - como a perda do potencial de geração hidrelétrica e a ativação de usinas termelétricas. Ela vê risco de "danos irreversíveis" que não resolvem problemas de abastecimento para a população mais necessitada e adianta que deve se ancorar na questão da "responsabilidade da aplicação dos recursos públicos".
Na Bahia, aliás, o próprio governo estadual, com base em estudos elaborados por seus órgãos competentes - o Centro de Recursos Ambientais (CRA), a Superintendência de Recursos Hídricos (SRH) e a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) - já se posicionou contra a proposta de transposição colocada pelo Poder Executivo federal.
Deputados estaduais integrantes da Comissão do Rio São Francisco na Assembléia Legislativa da Bahia entregaram ao governador Paulo Souto (PFL) uma cópia da moção de protesto contra o projeto de transposição do Rio São Francisco, aprovada por unanimidade pela Casa.
Por seu turno, a governadora Wilma de Faria (PSB), do Rio Grande do Norte, vem prestando apoio ao projeto do governo federal. O Estado potiguar será um dos beneficiados pelas águas transportadas do Velho Chico. O presidente da seção do Sergipe da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Henri Clay Andrade, convocou ainda uma reunião do conselho estadual da entidade com o objetivo de discutir o ajuizamento de outra ação civil pública na Justiça Federal para impedir a obra da transposição do rio São Francisco sem que o Programa de Revitalização seja completamente executado.
A Advocacia-Geral da União (AGU) já foi acionada para tentar derrubar a liminar expedida no caso da votação no CNRH, mas fontes do governo federal consultadas pela Agência Carta Maior acreditam que dificilmente o impasse será resolvido sem a intervenção de tribunais superiores da Justiça. O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) confirmou que as audiências públicas para o licenciamento ambiental, marcados para começar no próximo dia 6 dezembro, não serão adiadas.
A voz do povo...
Na plenária final da Conferência Nacional do Meio Ambiente, realizada no final de 2003, os delegados e delegadas definiram posição contrária à transposição. No final do encontro, porém, uma moção foi aprovada no apagar das luzes da Conferência para sublinhar a importância da consideração dos impactos socioambientais caso a obra de transposição do São Francisco venha mesmo a se tornar realidade.
Em debates importantes em dois grandes eventos realizados na semana passada - a Conferência Nacional da Terra e da Água, realizada em Brasília, e o Fórum Social Nordestino, ocorrido na cidade de Recife -, representantes de organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos sociais voltaram a manifestar plena contrariedade em relação ao empreendimento.
*Especial para Agência Carta Maior.