Notícias
A Transposição do Rio São Francisco: A ONÇA E O COELHO, artigo de Apolo Heringer Lisboa
2005
1) O Brasil carece de um programa estratégico e integrado de gestão do semi-árido, que inclui parte significativa do nordeste setentrional, da bacia do São Francisco e do vale do Jequitinhonha. Este programa visaria a inclusão social, integração institucional regional do semi-árido, desenvolvimento de tecnologias para potencializar o aproveitamento dos diversos recursos naturais e da variedade de climas e solos desta região. Em vez disto, o governo Lula quer impor algo não combinado na eleição de 2002, o projeto de transposição do São Francisco, que o PT combatia tenazmente e ajudou a arquivar no governo de Fernando Henrique.
2) A simples presença da água, fator importantíssimo do desenvolvimento, não desencadeia o desenvolvimento com inclusão social, haja em vista que o vale do Jequitinhonha possui rios perenes e potencial hídrico enorme e até hoje não promoveu seu desenvolvimento econômico, social e inclusão. Isto também é verdade em toda a extensão do semi-árido da bacia do São Francisco.
3) O nordeste setentrional acumula água nos açudes, na ordem de 37 bilhões de metros cúbicos. A política federal de açudagem dessa região vem de 1909. Os açudes concentraram água em terreno cristalino aflorante, impróprio para a agricultura e com altas taxas de evaporação. Destinando apenas 25% desse volume ao abastecimento humano poderíamos abastecer 130 milhões de habitantes/ano. Pela concentração da propriedade da terra as opções para construção dos açudes ficaram na lógica do mandonismo regional, tornando as obras impróprias para o desenvolvimento regional com inclusão social. Era política cativa dos coronéis do latifúndio que exploram o Brasil há séculos, na chamada indústria da seca, hoje liderada pelo ministro Ciro Gomes, adversário de Lula nas últimas eleições presidenciais.
4) A proposta de transposição visa levar água do São Francisco para os açudes, na mesma política hídrica concentracionista que moldou a açudagem. Justificam isto como necessidade de sinergia hídrica para liberar as reservas dos açudes com segurança hídrica de que não vão secar seus açudes. Mas, em função dos pressupostos técnicos e sociais da política de açudagem os açudes estão significativamente inúteis, tecnicamente degradados, salinizados e poluídos, com taxas de evaporação acima de 75%, e sem sistema de adução para projetos de agricultura familiar.
5) Como fazer este tipo de desenvolvimento com o custo altíssimo da água de uma tal transposição, estimado em 5 a 6 vezes mais que seu custo para irrigação na bacia do São Francisco?
6) O São Francisco sofre com as estiagens e seus efeitos estão se agravando com a degradação ambiental e poluição crescentes, o assoreamento e o desmatamento. Ate o Amazonas está se estiolando. No apagão de 2001 e 2002 o sistema Chesf colapsou diante da escassez de água nos reservatórios de Três Marias e Sobradinho. Qual a segurança hídrica do São Francisco e do projeto de transposição?
7) Esta aventura irá criar uma demanda insuflada artificialmente sobre um fornecimento de água para atividades econômicas que não tem garantia futura de provisão, conforme decisão do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que só permite retirada de águas para uso externo à bacia para fins de abastecimento humano e dessedentação de animais, necessidades devidamente comprovadas e avaliadas, e em nenhuma hipótese para fins econômicos.
8) Justamente, são fins econômicos a razão da construção do Eixo Norte a partir de Cabrobó, para o agro ou hidro negócio da produção de frutas para exportação e criação de camarões de água doce. Atualmente, o Ministério da Integração Nacional, em sua persistente política de dissimulação, está dizendo que é para abastecer cidades do Nordeste, argumento não utilizado até agora. O argumento usado até agora, e totalmente desmascarado, era o de resolver o problema da seca, acabando com a miséria do povo pobre que sofre com a seca. O que não tem cabimento em vista da lógica concentracionista do projeto, que atingiria apenas 5% da região do semi-árido setentrional, no sistema dos açudes e jamais chegaria aos 5 milhões de agricultores que sofrem com as secas, por causa das distâncias e do custo. Só se chega neles por outra lógica.
9) Calcula-se que na vazão firme de 26,4 metros cúbicos por segundo (26,4m³/s), as bombas elevatórias funcionando ao máximo do tempo, e tendo em vista que isto aconteceria por razões técnicas durante o máximo de 9 meses com perdas de 35%, o volume de água a ser garantido seria da ordem de aproximadamente 0,4 bilhões de metros cúbicos de água, menos de 1% da capacidade de armazenamento do sistema de açudes instalado. Então, como iriam fazer o milagre da redenção do nordeste, já tantas vezes anunciado com as inaugurações dos açudes durante todo o século passado, levando para lá apenas 1% do que já está lá armazenado?
10) E a um custo de 20 bilhões de reais e 540 MW de energia elétrica ! Esta é a realidade dos números. Há uma propaganda enganosa de que as obras custariam apenas 4,5 bilhões de reais, o que se gastaria com o socorro às vítimas de uma seca, e que seriam resolvidos todos estes problemas de uma só tacada. Na verdade, não resolveria nada disto, e o custo seria aproximadamente de 20 bilhões de reais, ou seja, entre 8 e 9 bilhões de dólares. Estes dados são oficiais e da imprensa, e de declarações do vice-presidente José Alencar. O governo está dizendo como custo total da obra apenas o seu custo inicial, nos dois primeiros anos, ficando o país enganado. Trata-se de uma obra para 15 a 20 anos, se tudo correr muito bem, o que não acontece em obras desta envergadura.
11) A energia elétrica gasta no bombeamento nos eixos Norte e Leste seria aproximadamente da ordem de 290 MW, e a água retirada, na média de 64 metros cúbicos por segundo, deixaria de produzir outros 250 MW aproximadamente de energia na cascata de hidrelétricas da Chesf que se situa abaixo dos pontos de captação, o que daria um total de 540 MW de custo energético, aproximadamente a uma e meia capacidade de produção da hidrelétrica de Três Marias.
12) As transposições podem, em princípio, ser recomendadas, do ponto de vista técnico e social. Trabalhos organizados por Alberto Daker, professor da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, afirmam que uma transposição para irrigação pode ser útil e economicamente recomendável, se estiverem enquadradas em alguns critérios. Seriam eles: uma bacia rica em água e com terras impróprias para a produção econômica, por serem de má qualidade ou íngremes; outra bacia pobre em água, ou com escassez,pelos múltiplos usos que se concentraram nela, mas com terras apropriadas para a agricultura e produção animal; estas duas bacias, a potencialmente doadora e a potencialmente receptora estarem relativamente próximas e com obstáculos pequenos para uma obra de transposição, sobretudo a altitude. Mas, bastaria que uma destas condições não fosse atendida, para qualquer projeto de transposição para fins econômicos ficar tecnicamente inviabilizado. É o que acontece com este projeto de transposição do São Francisco.
13) Houve, ao longo dos tempos, duas transposições das águas do rio São Francisco, bem sucedidas e pouco citadas. A primeira ocorreu há milhões de anos, de forma natural, quando as águas do Alto e do Médio São Francisco, basicamente situadas no atual território de Minas Gerais, tomaram o rumo do sertão mineiro, bahiano, pernambucano, sergipano e alagoano. Elas correspondem a aproximadamente 74% das águas que chegam à foz no oceano Atlântico, unindo uma região de mananciais abundantes às regiões de clima semi-árido. A outra transposição se deu mais recentemente, transformando as águas do rio São Francisco em energia elétrica no sistema Chesf, Centrais Hidrelétricas do São Francisco. Quase 100% da energia elétrica do Nordeste provêm das águas do São Francisco. Gostaram tanto do rio que agora querem leva-lo para o Ceará.
14) A história da onça e do coelho é muito oportuna. Ele disse à bicharada que iria à festa dos bichos montado numa onça. Esperto, o coelhinho colocou um limãozinho na boca e bicudo, ficou na espreita da passagem da onça que compareceria à festa dos bichos naquele fim de semana. Gemendo na beira da trilha chamou a atenção do poderoso felino que lhe disse: - coelho, meu amigo, que está acontecendo? Não vai à festa? – Amiga onça, olhe meu estado. Meu dente dói muito, tenho a boca inchada; estou sem comida e sem água para beber e banhar-me. Quero ir à festa, mas não agüento andar, Seria muito pedir que a senhora me carregasse? A comovida onça acedeu ao pedido, abaixou-se solidária e o coelhinho ardiloso subiu nela, com cipó e folhas arreando-a. E partiram. Chegando na clareira beira rio da grande festa, a bicharada pasma nem acreditava na visão. E todos riram muito até terem dor de barriga. Desconfiada a onça deu uma safanada e o risonho coelho já sem o limãozinho na boca voou bem longe, correndo e caçoando até uma toca ali perto. A desmoralizada onça saltou para cima dele furiosa mas já era tarde. A onça fungou até cansar, e quando distraiu o coelhinho jogou terra nos seus olhos e fugiu da toca, passando saltitante junto à platéia e recebendo a consagradora ovação. E a bicharada elegeu o coelhinho o herói do sertão. Minas, sobretudo, fonte das águas e com grande potencial para seu desenvolvimento, a vasta Bahia do semi-árido, com suas terras e suas águas, e os outros estados da federação, com seu povo, terras, problemas e potenciais, território da onça, vão permitir que o coelhinho esperto e bicudo a faça de besta perante o Brasil?
15) O projeto de transposição do São Francisco tomou a forma de projeto de engenharia que tem hoje, modificado diversas vezes mas conservando a idéia original, através do grupo de consultores do coronel Mário Andreazza. Em 1981/1982 o dinâmico coronel ambicionava a presidência da República para consumar, com chave de ouro, sua carreira militar, como era de costume acontecer... Queria ser indicado candidato na convenção nacional do PDS porém, Paulo Maluf foi mais competente na cooptação dos delegados nordestinos. O grupo do Andreazza não morreu com ele, constituindo poderoso lobby que cerca todos os ministros e presidentes da República. Já investiram aproximadamente 100 milhões de reais em estudos e projetos, com financiamento público. Estão sempre mudando os projetos para atender a interesses políticos regionais e viabilizar o projeto de qualquer forma. Caso aconteça, no que não acredito, a transposição será a maior obra póstuma do coronelismo brasileiro e imortalizará o simpático e dinâmico coronel da ditadura militar, através do comando do então jovem político do PDS, candidato a deputado estadual no Ceará, coerente e eterno admirador dos projetos do seu guru Mário Andreazza.
16) A transposição é propaganda enganosa e dissimula a realidade da exclusão social. Imagine uma região muito pobre, seja um povoado rural seja um populoso bairro de uma cidade, onde um candidato tipo Odorico Paraguaçu promete inaugurar um grande supermercado em cada um destes locais, para resolver o problema da miséria destes locais. Uma vez inaugurado o supermercado, a população acorrerá ao luxuoso empreendimento para buscar os bens prometidos e ficará frustrada, e indignada, ao saber que só poderá levar os bens para casa pagando por eles. Mas, como adquirir os bens ali expostos diante de seus olhos se a exclusão social centenária não lhe providenciou os recursos financeiros para comprá-los e a capacidade de administrar de forma correta os bens de consumo individual e de produção.
17) O vale do Jequitinhonha não é vale do São Francisco, mas é interessante comparar a situação. Ele dispõe de rios perenes, é semi-árido, possui os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, é conhecido como o vale da miséria, está na área da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), é prioridade assumida pelo presidente Lula. Por que não fazer ali uma experiência de desenvolvimento regional do semi-árido, sem os riscos bilionários de uma obra faraônica de grande impacto físico, de grande desgaste político e de mínimo impacto social?
Apolo, Heringer Lisboa é Professor da Faculdade de Medicina da UFMG.
Coordenador Geral do Projeto Manuelzão.
Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas.