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A transposição anacrônica, artigo de José Maria Alves da Silva
Disponível em:
19/10/2005
O projeto de transposição do rio São Francisco já nasceu anacrônico. Se vier a se concretizar, como é bem provável, dados os poderosos interesses que se aglutinam em torno dele, estaremos rendendo homenagens a um passado inglório, revitalizando a "indústria da seca" e reforçando arcaicas instituições que historicamente têm barrado o desenvolvimento nacional.
Enquanto, na agenda das preocupações mundiais, as atenções se voltam cada vez mais para o problema da água, o Brasil está em vias de implantar um projeto que aumenta a já excessiva exploração de recursos hídricos. Segundo o novo pensamento agro-ambiental, antes de solução, a irrigação artificial deve ser vista como fonte de problemas adicionais, entre os quais estão os relacionados à salinização de solos e escoamento de resíduos tóxicos, por exemplo.
Embora já se tenham feito notar há muito tempo, esses problemas ainda não sensibilizaram nossos governantes, os quais têm preferido proclamar os êxitos econômicos do agronegócio, enquanto ignoram ou fingem ignorar os danos ambientais associados. ? o império da visão imediatista. As exportações agropecuárias geram, no curto prazo, divisas necessárias para manter a dívida externa sob controle, mas os efeitos da devastação ambiental só irão mostrar sua face negra a prazo bem mais longo. Os políticos confiam na memória curta do povo brasileiro.
A justificativa mor, encobridora de segundas intenções, é clássica: combater a seca, como se a seca fosse um mal a ser combatido. Sob o pretexto de fornecer água e criar oportunidades de ocupação produtiva para populações autóctones, o que se almeja, na verdade, são obras capazes de valorizar terras nos currais eleitorais, assegurar o abastecimento de água em grandes cidades dos Estados beneficiados e gerar lucros para empreiteiras e indústrias de cimento, equipamentos, canos, bombas, etc. O projeto também servirá para criar mais cabides de emprego público, pois aumentará as funções do DNOCS ou da CODEVASF (ou será que vão criar outra companhia de desenvolvimento para o São Francisco transposto?).
Projetos de estrutura física dispendiosa não constituem novidade no Nordeste desde que Dom Pedro II inaugurou o açude Cedro no Ceará, proferindo sua firme disposição de "ir até o empenho da última jóia da coroa para livrar o povo nordestino da seca". De lá para cá muitas obras, algumas faraônicas, foram realizadas sob os mesmos pretextos. Criaram-se várias instituições parãstatais que serviram para inchar orçamentos públicos, com baixo alcance dos objetivos propostos.
O que funciona hoje nos perímetros públicos de irrigação, como o Jaíba, no Norte de Minas Gerais, são áreas outorgadas às empresas privadas. Por uma série de razões, a começar de uma incompatibilidade cultural do sertanejo nordestino com as "exigências" da agricultura irrigada, a história dos assentamentos originais é uma história de insucessos. Quem estuda com seriedade os problemas nordestinos sabe bem que a escassez de água pode agravá-los, mas não é por falta dela que eles existem.
O semi-árido brasileiro carece de políticas bem fundamentadas e atentas aos aspectos ambientais, sociais e antropológicos. Isso não ocorre por falta de estudos ou pesquisas, mas sim de disposição governamental firme e decidida. As bases de um plano de desenvolvimento sócio-econômico sustentável para o semi-árido já foram estabelecidas há muito tempo pelo engenheiro agrônomo José Guimarães Duque (1903 - 1978). Atuando na área agronômica da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas - IFOCS, depois transformada no atual DNOCS, Guimarães Duque vivenciou as maiores secas nordestinas ocorridas durante mais de trinta anos, o que lhe deu uma formidável base de conhecimento sobre a realidade regional. Ele participou ativamente da elaboração de estudos e mapeamentos edafoclimáticos do Nordeste, que incluíam recomendações claras e específicas para o aproveitamento econômico sustentável dos recursos naturais.
No plano de Guimarães Duque, em vez de um "fardo" para a nação, a região semi-árida poderia se converter em fator chave de uma estratégia nacionalista integradora. O plano não requer gastos bilionários para ser implementado, e, por basear-se na economia dos recursos hídricos, em vez de sua superutilização, está em perfeita sintonia com o chamado pensamento futurista sobre economia e meio ambiente.
O que existe de novo e progressista no Brasil são antigas idéias de homens como Guimarães Duque; por trás desse projeto de transposição está o que há de mais arcaico e reacionário.
* José Maria Alves da Silva, 52, doutor em economia pela USP, professor e membro do Conselho Superior da Universidade Federal de Viçosa.
** Artigo originalmente publicado no Jornal da Ciência - SBPC - edição eletrônica de 17/03/2005