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A INSUSTENTÁVEL PROPOSTA DA TRANSPOSIÇÃO, artigo de Clóvis Cavalcanti
16/04/2007
Entre outubro de 1982 e outubro de 1983, a Fundação Joaquim Nabuco, sempre pioneira nessa quadra histórica, efetuou uma pesquisa sobre a idéia da transposição do rio São Francisco. Foi um estudo encomendado pelo então Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), que era dirigido à época pelo futuro superintendente da Sudene e governador do Maranhão, José Reinaldo Tavares. O DNOS fazia parte do Ministério do Interior, cujo titular, o coronel Mário Andreazza, tinha pretensões de candidatar-se a Presidente da República em 1985. Vigorava ainda o execrável sistema de eleições indiretas – apoiado por inúmeros políticos que hoje aparecem como se tivessem sido sempre defensores incondicionais das diretas. Andreazza tinha popularidade no Nordeste devido a suas ações voltadas para a região. Com o propósito de angariar mais votos dos eleitores nordestinos qualificados para o Colégio Eleitoral, fez surgir – ou melhor, ressurgir – a proposta de efetuar-se um desvio de águas do Velho Chico para áreas secas ao norte do rio. O que o DNOS queria da Fundação Nabuco era verificar em que medida o projeto encontrava ressonância junto à população supostamente beneficiária e em que medida e sob que modalidade as comunidades poderiam ser solicitadas a se ajustar a um esquema de tão ampla intervenção. A preocupação era “saber se a região comporta o projeto, se ela reagiria positivamente, se se justificariam os altos investimentos previstos” – como está dito na apresentação do livro “Transposição do São Francisco: A dimensão socioeconômica”, resultante da pesquisa e coordenado pelos economistas Dirceu Pessoa – que faleceu antes da publicação, em 1989, da obra – e Osmil Galindo. Fui participante também do trabalho, havendo desenhado com Dirceu Pessoa a proposta que o DNOS aprovou. Na ocasião, um engenheiro do DNOS, José Simas, estava completamente convicto de que o a transposição era uma empreitada brilhante. Ele insinuava gentilmente que referendássemos isso na pesquisa.
No livro da investigação, é esclarecido que o projeto de transposição não incide sobre uma área vazia, cuja ocupação pudesse ser organizada pelo planejador ao sabor das possibilidades e das restrições da malha hidráulica. Pelo contrário, o território visado possuía povoamento antigo, com características agrícolas e socioeconômicas bem definidas. E com uma população que sabe o que quer e está acostumada às intempéries com que tem que conviver. O projeto significaria uma transformação da situação preexistente a partir da alteração de um parâmetro crítico – a disponibilidade de água. Ao se confrontar a população com a nova realidade a ser estabelecida, revelava-se uma dimensão muito mais ampla e complexa para os grupos sociais interessados, dimensão essa que ia muito além da simples implementação técnica da transposição, por bem justificada e conduzida que fosse. A primeira coisa a notar, na verdade, era uma grande ignorância relativamente às intenções do DNOS e à idéia mesma da transposição. No levantamento de campo da pesquisa, praticamente todos os entrevistados demonstravam desconhecer o projeto. Apenas sabiam expressar dúvidas e temores quando se lhes explicava do que se tratava. Talvez esse não seja mais o caso hoje, quando o assunto tem sido tão focado por setores organizados da sociedade, inclusive com a vantagem de existir agora um Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco, conforme previsto na legislação mais recente. De qualquer forma, não é de praxe no Brasil, quando se lança um projeto de porte como o da transposição do São Francisco ou o da Refinaria de Suape, perguntar antes o que a população afetada acha. Os pais do empreendimento pressupõem sua própria onisciência e esperam apenas convencer os “ignorantes” da sabedoria de suas decisões. Foi assim em 1982-1983, se bem que, aí, diante das resistências à proposta do DNOS-Andreazza, o governo, mesmo em pleno regime militar, abandonou seus planos.
Não é o que está acontecendo agora. Como diz o bispo de Barra (Bahia), Dom Luiz Flávio Cappio, em artigo no Estado de São Paulo, de 22 de março, “O governo não nos ouve. Precisei fazer greve de fome para ser ouvido”. E olhe que se trata de um bispo da Igreja Católica. D. Cappio conta que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva lhe perguntou depois de sua greve: “Mas, frei, por que o senhor não veio conversar comigo?”. Ao que ele respondeu: “Presidente, vim sim. Várias vezes. Pode olhar na sua mesa. Todos os documentos contrários à transposição têm a minha assinatura”. Na contundente afirmação do bispo, ninguém foi ouvido. E mais: o projeto é autoritário; enfia-se, segundo D. Cappio, “goela a baixo do brasileiro algo contestado e que divide”. Ora, grandes obras nos dias de hoje não podem de forma alguma ser impostas “goela a baixo”. É preciso fazer consultas, ouvir o que pensam os interessados – que, no caso, são milhões de pessoas simples, normalmente esquecidas em qualquer planejamento. Acontece ainda que, atualmente, a dimensão ambiental do projeto, colocada em plano secundário há 25 anos, possui peso da maior relevância. Afinal, são cada vez mais óbvios os graves problemas ambientais que ameaçam o mundo. No caso do São Francisco, há todo um ecossistema em torno do rio que se acha bastante degradado e esgotado.
- Cappio relata que, numa caminhada que fez “da nascente à foz do rio, de outubro de 1992 a outubro de 1993”, detectou “todo tipo de agressão, como a destruição das fontes, a morte das lagoas e dos brejos e o desmatamento das matas ciliares que protegem os barrancos”. Do mesmo modo: “O assoreamento é cada vez maior, com queda dos barrancos e poluição das águas pelos dejetos sanitários das cidades, pelos dejetos químicos das indústrias e pelos agrotóxicos de grandes projetos de irrigação”. Essa é a voz de quem, exatamente dez anos depois da pesquisa da Fundação Joaquim Nabuco, fez uma caminhada histórica ao longo do Rio da Unidade Nacional. Seu alerta não é irresponsável. Pelo contrário, trata-se de um clamor que é também da maioria esmagadora do Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco e de quase todas as associações da sociedade civil e comunidades que vivem nas proximidades do São Francisco. Como assegura lucidamente D. Cappio, “Um anêmico, como é o caso do São Francisco, não pode doar sangue. Antes de exigir que o rio seja utilizado para o multiuso é preciso revitalizá-lo”. Na sua visão, que é compartilhada por uma multidão de cidadãos e técnicos, precisa-se de “um projeto de revitalização que leve em conta as nascentes, as matas e florestas da calha principal e dos tributários do rio”. Não se pode esquecer ainda que, em face do aquecimento global, e das prováveis perdas hídricas que ocorrerão no Nordeste, não há como se justificar uma extração de água do anêmico rio São Francisco.
Artigo editado no Blog do Magno
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