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Território, o uso e a ocupação de terra no Brasil: o caso da agricultura irrigada
Conferência do Chefe da Embrapa Territorial, Evaristo de Miranda
17/01/2019
Evaristo de Miranda, da Embrapa, em vídeo que viralizou — Foto: Reprodução/Youtube/Foro de Agricultura América del Sur
Evaristo de Miranda se tornou um requisitado palestrante em eventos promovidos pelo agronegócio. Chefe-geral da Embrapa Territorial, ele comanda uma equipe de 20 pesquisadores e analistas que mapeiam o uso e a ocupação das terras em todo o território nacional. Parte dos conteúdos compartilhados por Evaristo tem soado como música para um segmento do agronegócio que sempre viu na floresta um obstáculo aos seus interesses.
Embora tenha colaborado com diversas equipes de transição em governos anteriores - inclusive do Governo Lula - Evaristo nunca teve o nome cogitado para ser ministro. Ao se aproximar da equipe do então candidato à presidência Jair Bolsonaro, quase virou ministro do Meio Ambiente. Teria declinado alegando motivos pessoais. Ainda assim, percebe-se na retórica do presidente eleito em favor da expansão da fronteira agrícola (com menos Unidades de Conservação e possibilidade de revisão das terras indígenas já homologadas bem como das comunidades quilombolas) o uso de algumas informações garimpadas nos trabalhos de Evaristo.
Um vídeo polêmico
Nesses primeiros dias de 2019, viralizou nas redes sociais um polêmico vídeo de 25 minutos em que Evaristo de Miranda aparece palestrando no VI Fórum de Agricultura da América do Sul, realizado em agosto do ano passado em Curitiba. Ele desfia uma avalanche de números para sustentar a tese de que o Brasil protege ou preserva quase metade de seu território (48,9%), o que equivaleria a 28 países da Europa. Segundo Evaristo, nos próximos 30 anos, o mercado mundial de alimentos deverá adicionar 40 bilhões de dólares em novos negócios, e apenas dois países teriam condições de disputar esse bolo: Brasil e Estados Unidos. Evaristo afirma de que produtores de milho americanos já estariam fazendo campanha para que os proprietários rurais de lá financiem as ONGs ambientalistas daqui que lutam pela preservação das florestas, e assim deixem o Brasil fora do páreo.
“É legítimo dar terra para índio. O problema é que não cabe”, diz ele em certo momento da palestra, ao comentar que já existem 600 terras indígenas homologadas. Na gravação, Evaristo aparece também criticando o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento que assegura transparência à situação de cada propriedade no que diz respeito às regras de proteção previstas no Código Florestal. Diz que o CAR é o “maior trabalho escravo” da história do Brasil. “Cinco milhões de pessoas obrigadas (a fazer o CAR), sem ganhar nada, sob ameaça de perda de crédito, coagidas”.
Ainda segundo Evaristo, em média, metade da propriedade rural em todo o Brasil estaria hoje preservada, o que corresponderia a 25,6% do território nacional. Diz que ninguém protege mais o meio ambiente do que os proprietários rurais, e que, pelos cálculos dele, seriam mais de 3 trilhões de reais em ativos imobilizados em prol do meio ambiente. “É uma poupança que não dá retorno, não remunera nada. E os agricultores ainda estão gastando por ano quase 20 bilhões de reais para manter essas áreas preservadas.”
Repercussões do vídeo
Ouvi algumas opiniões sobre esta palestra que viralizou nas redes. Para o ex-ministro do Meio Ambiente na gestão Fernando Henrique Cardoso, José Carlos Carvalho, Evaristo trata os ativos ambientais - principalmente os da Amazônia - como um problema, e se esquece de dizer que as chuvas que sustentam a agricultura nas regiões Centro-Oeste e Sudeste dependem visceralmente das nuvens formadas a partir da Floresta Amazônica. Também causou estranheza ao ex-ministro que, em sua palestra, Evaristo de Miranda “omita deliberadamente o fato reconhecido pelo próprio Ministério da Agricultura, de que o Brasil possui 50 milhões de hectares de terras degradadas, abandonadas ou subutilizadas pela agropecuária”. Segundo o ex-ministro, “é uma grande contradição do agronegócio brasileiro defender novos desmatamentos e deixar uma área equivalente a duas vezes o tamanho do Estado de São Paulo degradada ou subutilizada”.
Ex-ministro Carlos Minc — Foto: Mariucha Machado/G1
Ministro do Meio Ambiente no Governo Lula, Carlos Minc, diz que a visão de Evaristo é estreita e manipuladora, e suas conclusões são devastadoras para o país do mundo que mais desmata e extingue espécies ameaçadas. “Isso acontece não só na Amazônia como no Cerrado, onde o Evaristo acentuou a produção de grãos. Este desmatamento do Cerrado ameaça diretamente e comprovadamente as matas ciliares e a oferta de água doce, sem a qual a agricultura não poderá seguir se expandindo”. Além disso, enfatiza Minc, Evaristo desconhece os estudos do Ipea e da Embrapa que atribuem valor econômico aos parques e as florestas em pé.
Carlos Rittl, do Observatório do Clima, entende que os dados divulgados no vídeo por Miranda nem deveriam ser discutidos seriamente, já que nunca foram publicados como artigos científicos. “Os slides exibidos contêm várias distorções. Por exemplo: ele usa dados de áreas declaradas pelos proprietários de terra como reserva legal e área de preservação permanente (no Cadastro Ambiental Rural), como aquilo que iremos encontrar no território. Mas não usa qualquer análise de imagens de satélite para comparar o que foi declarado com o que existe de fato na propriedade. Várias análises preliminares feitas por instituições sérias como o Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) constataram muitos problemas nessas declarações”. Ainda segundo Rittl, Miranda inclui as Áreas de Proteção Ambiental (APAs) - que correspondem a mais de 50% área das Unidades de Conservação do país - dentro do cálculo das áreas onde não se pode produzir nada. “Na verdade, a atividade produtiva é regulamentada dentro dessas áreas. Ele distorce, portanto, não apenas a realidade do território, mas a própria leitura da legislação”, afirma.
Área de assentamento no Pará — Foto: Incra/Divulgação
Nurit Bensusan, bióloga do Instituto Socioambiental, diz que o vídeo tem como intenção “desconstruir as políticas de conservação ambiental e de preservação dos povos indígenas em nome de um agronegócio voraz, sem compromisso com o futuro do país”. Segundo ela, não há futuro para a agricultura sem a conservação dos recursos hídricos e dos solos, e a mitigação das mudanças climáticas. Nurit critica o fato de Miranda não reconhecer a importância dos povos indígenas, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais na conservação de áreas estratégicas para a resiliência da própria agricultura. “É um enorme desserviço ao país e demonstra uma intenção de confundir a sociedade brasileira. A agricultura e a pecuária podem ser desenvolvidas de forma racional, com um compromisso em favor do futuro de todos”.
A contestação dos pares
Um dos sinais do prestígio de Evaristo de Miranda no segmento do agronegócio foi o pré-lançamento de seu último livro na Frente Parlamentar da Agropecuária, no ano passado em Brasília, com as presenças do então ministro da Agricultura, Blairo Maggi, e da então líder da bancada ruralista (atual ministra da Agricultura), Tereza Cristina. Na oportunidade, Maggi afirmou que a obra reforça a ideia de que “o Brasil tem a agricultura mais sustentável do mundo se comparado com a produção que alcança”. De acordo com a Assessoria de Comunicação da Frente Parlamentar da Agropecuária, os 7.400 exemplares da primeira edição do livro contaram com o apoio de 15 instituições do setor, além do próprio Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Maggi assina o prefácio.
Evaristo de Miranda em imagem de arquivo — Foto: Reprodução/ EPTV
Alguns dados apurados por Evaristo de Miranda vêm sendo contestados pelos seus pares na comunidade científica, inclusive na própria Embrapa. São os casos de Raoni Rajão e Britaldo Soares-Filho (UFMG), Gerd Spavorek (USP), Marcos Costa Heil (UFV), entre outros. A crítica comumente feita é a de falta rigor científico nos estudos de Evaristo, que seriam desenvolvidos para justificar retrocessos ambientais. Vez por outra, surgem discrepâncias entre os resultados apontados por ele daqueles publicados na literatura científica.
Uma das diferenças mais importantes aparece justamente nos dados consolidados sobre qual o tamanho da área protegida no Brasil pelo antigo Código Florestal. Um artigo publicado na prestigiosa revista científica Science em 2014, por uma equipe liderada por Britaldo Soares-Filho e Raoni Rajão, mostra que essa área seria de 240 milhões de hectares. Um outro estudo mais recente, de 2018, publicado na também influente Global Change Biology, pela equipe de Gerd Spavoreck, indica que essa área seria de 191 milhões de hectares. O cálculo divulgado por Evaristo aponta 402 milhões de hectares, um valor entre 67% e 210% maior que o número calculado e publicado em revistas científicas. Ainda nos tempos de discussão do Código Florestal, um outro motivo de polêmica foi o fato de Evaristo utilizar em seus cálculos - segundo esses pesquisadores - uma largura fixa de 500 metros, mesmo em igarapés e rios cuja APP (Área de Proteção Ambiental) determinada por lei é de 30 metros. O resultado disso é que não sobraria praticamente área alguma para agricultura.
Houve também forte reação desses pesquisadores à sugestão encaminhada por Evaristo a Bolsonaro de que seria um erro proteger os 83 milhões de hectares de florestas não destinadas na Amazônia (terras devolutas), sugerindo que essas áreas poderiam ser desmatadas. Na avaliação deles, as áreas protegidas na Amazônia não geram um custo para o país, pelo contrário. A Floresta Amazônica, enfatizam, gera valor ao fornecer um fluxo de vapor d’água regular para manter o regime de chuvas necessário para a alta produtividade agropecuária. Um artigo recente publicado pelo professor Britaldo Soares-Filho, na Nature Sustainability, afirma que “caso as áreas ainda não destinadas forem desmatadas teremos uma perda anual de quase meio bilhão de dólares por ano, o que corresponde a uma diminuição de 35% de renda líquida da soja, no principal estado produtor da região”.
Eduardo Assad, quando era secretário de Mudanças Climáticas do governo Dilma Rousseff. — Foto: Dennis Barbosa/G1
Outro crítico do trabalho de Evaristo Miranda é o também pesquisador da Embrapa Eduardo Assad, um dos responsáveis pela criação do Programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono). Assad disse durante um evento em agosto do ano passado que teme pela reputação da instituição, ao afirmar que desde 1989 “Miranda esteve a serviço do que tem de pior na política ambiental e rural brasileira. Nesses últimos 30 anos demos pareceres contra diversos trabalhos que saíram desse laboratório (...). Por favor, não confundam: existe uma Embrapa que é muito séria, e existe um grupo da Embrapa que não é respeitado nem dentro da empresa”, disse ele.
Assad considera um problema o fato de Evaristo não submeter seus trabalhos aos pares. “Não há revisão nenhuma, em lugar nenhum. Existe uma coisa chamada metodologia científica, ou seja, quando você publica alguma coisa em qualquer canto do mundo você pode pegar aqueles dados e replicá-los, alcançando os mesmos resultados do autor do estudo. É impossível chegar aos mesmos resultados do Evaristo. Falta robustez científica e isso já foi dito a ele diversas vezes”.
O que diz Evaristo de Miranda
“Não considero que essa palestra estimule o desmatamento”, me disse Evaristo durante pouco mais de uma hora de entrevista por telefone. Ele afirma que não mencionou a importância das florestas para a biodiversidade nem para a produção de água porque esses não eram os assuntos da palestra, mas declara-se alguém preocupado com as duas questões. “O agronegócio não tem necessidade de expandir área de pasto ou de lavoura sobre vegetação nativa. O caminho é a tecnologia. Isso também vale para a disputa desse mercado adicional de alimentos estimado em 40 bilhões de dólares nos próximos 30 anos”, disse ele.
Sobre as críticas em relação à metodologia utilizada, Evaristo disse que ela está disponível no site da Embrapa . E cita a convergência de um número apurado por ele e pelo MapBiomas, uma plataforma on-line com mapas anuais da cobertura e uso do solo no Brasil produzida por uma rede de ONGs, universidades e empresas. Segundo Evaristo, enquanto o percentual de vegetação nativa apurado por ele é de 66,3%, o do MapBiomas é de 66,5%. Apenas esta convergência foi apontada por Evaristo.
Ele reconhece, no entanto, que os resultados compartilhados nas palestras são “dinâmicos”, o que impediria sucessivas publicações em revistas especializadas. “Temos dados suficientes para publicar um artigo científico sobre o uso e a ocupação das terras no Brasil. Isso deve acontecer após o encerramento do Cadastro Ambiental Rural (CAR)”.
Sobre o fato de não haver mencionado na palestra os 50 milhões de hectares de pastagens degradadas no Brasil, Evaristo questionou a informação: “Onde estão as pastagens? Onde está o mapa dessas pastagens degradadas?”. A informação está disponível na página 10 do documento “ Invertendo o sinal de carbono da Agropecuária Brasileira - Uma Iniciativa do Potencial de Mitigação de Tecnologias do Plano ABC de 2012 a 2023 ”, estudo coordenado pelo colega de Evaristo de Miranda na Embrapa, Eduardo Assad. O mapa das pastagens degradadas é acessível pelo site do Lapig (Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento) da Universidade Federal de Goiás.
Pesquisador da Embrapa desde 1980, Evaristo de Miranda diz desconhecer a razão pela qual o vídeo de uma palestra feita há quase cinco meses ter viralizado neste momento nas redes sociais. O fato é que, neste início de Governo Bolsonaro, com a confirmação das promessas de campanha que remetem ao enfraquecimento da área ambiental e da maior vulnerabilidade dos movimentos indígenas e quilombolas, os dados compartilhados por Evaristo - na forma como aparecem na palestra – estão servindo de nutriente para o desmonte das políticas vigentes nesses setores.