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Sucesso sustentável no sertão ameniza o impacto da seca
Sociedade nordestina se mobiliza para construir cisternas e outros tipos de unidades de captação de água para quase 500 mil famílias.
Letícia Lins*
30/07/2013
A cisterna de calçadão de Antonio abastece toda sua família Foto: Hans von Manteuffel
CAIANA, RIO GRANDE DO NORTE - Uma experiência da sociedade civil mostra que é possível enfrentar o difícil clima do semiárido nordestino sem gastar rios de dinheiro. O Nordeste costuma ter a imagem associada à fome, à sede e à pobreza provocadas pela seca. A região abriga o mais populoso semiárido do planeta. São 22 milhões de habitantes, distribuídos em 1.133 municípios, que se espalham por 915 mil quilômetros quadrados.
Curiosamente, a área é tida, também, como o semiárido mais chuvoso do mundo, com registros de precipitações pluviométricas que chegam a 800 milímetros anuais. As chuvas, no entanto, são concentradas em determinadas épocas do ano.
Como resultado a conta não fecha, porque a água da chuva evapora rapidamente devido aos altos índices de insolação da Caatinga. Em poucos meses, a água acaba.
Os programas governamentais têm alcançado resultados pífios na amenização dos efeitos da seca, seja com medidas assistencialistas ou com a realização de obras que consumiram décadas de trabalho e dinheiro. Mas um trabalho bem-sucedido buscou soluções simples e baratas.
Ele é resultado da maior mobilização da sociedade civil no Nordeste, onde três mil entidades — entre sindicatos, associações comunitárias, instituições religiosas, organizações não-governamentais e conselhos municipais — participam da Articulação no Semiárido. A rede ASA, como é mais conhecida, surgiu em 1999, com a proposta de implantar 1 milhão de cisternas no agreste e no sertão nodestinos, para garantir água potável a 5 milhões de famílias.
A ASA criou o PM1C, o Programa Um Milhão de Cisternas que, pouco a pouco, muda a paisagem e a vida do sertanejo, antes fadado a andar até dez quilômetros por dia para conseguir uma lata de água, muitas vezes de má qualidade, para abastecer a família. As cisternas implantadas pela ASA somam hoje mais de 476 mil unidades de 16 mil litros em residências e mais 850 de 52 mil, em escolas que antes dependiam do carro-pipa para ter acesso à água.
De acordo com a ASA, a boa administração da chamada cisterna de placa, que capta água pluvial, garante o consumo doméstico de água fica garantido nos meses de escassez de chuva. De tecnologia simples e barata (a implantação custa R$ 2,4 mil por unidade), os reservatórios provocaram grandes mudanças na vida dos sertanejos.
Sem precisar passar tanto tempo em busca de água, eles puderam se dedicar mais às pequenas plantações que sustentam suas famílias. Educação e lazer se tornaram acessíveis pela primeira vez para algumas das famílias beneficiadas.
Moradora do sítio Pai Antônio, na comunidade de Caiana, em Campo Grande, Rio Grande do Norte, a agricultora Damiana Fernandes da Silva, de 39 anos, não gosta nem de lembrar da vida que levava antes:
— Ave Maria, a mudança é grande! — comemora, mostrando a cisterna que abastece a família de cinco pessoas. — Quando não tinha inverno (
referindo-se à estação chuvosa
), a gente cavava a mão um poço ou o leito do rio, procurando água. Para lavar a louça, andava com a bacia na cabeça por mais de dois quilômetros. Naquele tempo morria muita criança de diarreia. Hoje tenho água em casa. No dia 19 de abril, em uma só noite, caiu uma chuva que encheu tudo.
Se somadas as cisternas domésticas a outras iniciativas de captação e conservação de água, as 80 famílias do vilarejo vivem do que plantam, em pleno sertão. Além do milho e do feijão, Damiana cultiva hortaliças, frutos e plantas medicinais. O mesmo acontece com os lavradores da cidade vizinha de Areia Branca, a 232 quilômetros de Natal.
Embora ainda não tenha atingido o objetivo traçado de implantar 1 milhão de cisternas, a ASA já começou a executar uma iniciativa complementar: o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que consiste no uso de tecnologias simples que garantam água para os animais e a lavoura de famílias do sertão.
Neste segundo programa, até o momento, já foram implantadas quase 19 mil unidades de captação de água. São barragens subterrâneas, barraginhas (diversas pequenas barragens), BAPs (bombas de água) e barreiros-trincheiras (construídos sob o solo). Outras tecnologias, tão simples quanto as necessidades do homem da Caatinga, também vêm sendo implementadas pelo programa, como tanques de pedras e caldeirões, além de cisternas de vários tipos, como a calçadão e a enxurrada. Essas técnicas aproveitam a água da chuva e garantem às famílias água para seus pequenos rebanhos e para o plantio. Enquanto o primeiro programa era voltado apenas para o abastecimento da casa.
Processo libertador
Iniciativas como estas permitiram aos moradores de Caiana atravessar a última seca, tida como a maior dos últimos 50 anos, sem o registro de mortes de animais. Além das cisternas, a comunidade conta com uma BAP, instalada em um poço que passou duas décadas desativado. A água não é lá essas coisas, mas mata a sede do rebanho. Com cinco filhos, João Fernandes Nogueira, 59 anos, e a mulher, Rita Maria de Paula, de 49, garantiram o abastecimento familiar com a cisterna. Já com o poço, conseguiram manter o roçado e os bichos.
— Tenho 15 bodes e algumas ovelhas, e nenhum morreu na seca, devido à água do poço, que também serviu para lavar louça e as roupas — conta ele. — Conseguimos plantar milho, feijão, melancia e jerimum.
Perto dali, José Maria da Costa, 55, e a mulher, Expedita Almeida Fernandes, 51, também comemoram: os dezoito bois, as cinco ovelhas e os três bodes sobreviveram à seca. Eles conseguiram dar água aos animais com uma barraginha, que também serviu à plantação. Antes obrigado a andar três horas por dia atrás de água, o jumento Cabano está agora aposentado no pasto.
Outra moradora, Maria Nogueira, de 80 anos, com seis filhos, comemora. Ela nasceu em 1932, ano de uma grande seca. E já perdeu as contas das outras que enfrentou. Hoje, com duas cisternas, tem seis cabeças de gado e dez ovelhas que sobreviveram à seca. Seu filho vendeu seis bois durante a estiagem.
Na semana passada, a ASA reuniu mais de 2 mil pessoas no município de Areia Branca, a 232 quilômetros de Natal, para participar da inauguração de implementações do P1+2. Para este projeto, a organização vem ganhando apoio importante do governo federal — através do Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome — e de empresas e bancos estatais, como a Petrobras, o BNDES e o Banco do Brasil. Na festa, um dos mais eufóricos era Antônio Pinheiro, o seu Totonho, de 65 anos, do sítio Boa Sorte, em Areia Branca, que exibia orgulhoso os produtos do roçado. Em sua propriedade, há cisterna de placa, cisterna de enxurrada e, por conta própria, fará um barreiro-trincheira.
— Eu antes via a chuva e ficava triste, vendo a água escorrer e ir embora. Agora não posso mais reclamar — comemora.
Na semana passada, o diretor de Exploração e Produção da Petrobras, José Miranda Formigli, confirmou repasse de R$200 milhões à ASA, que permitirão a implementação de 20 mil de unidades do P1+2, para beneficiar famílias de 210 municípios nordestinos. Ele também prometeu doar poços perfurados pela Petrobras a comunidades do sertão do Rio Grande do Norte. No estado, fica o maior campo terrestre de extração de petróleo do país.
Para Naidison Baptista, um dos coordenadores da ASA, essas tecnologias simples, associadas a uma grande rede de proteção social, fazem o homem da Caatinga passar por um processo libertador:
— Com água em casa, as pessoas entraram em uma outra dimensão da cidadania. Com o prolongamento da seca, a água de muitos desses reservatórios até se acabou. Mas muitas comunidades, em vez de entrar na fila para mendigar a água, pediam a pipa para abastecer suas cisternas. Em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, houve vilarejos onde os prefeitos queriam escolher os beneficiados pelos carros-pipas. Mas os moradores disseram a eles: “sua tarefa é abastecer, o processo de distribuição é conosco”.
Questionado sobre o motivo dessa mudança, ele lembra que os beneficiados pelo programa não precisam mais trocar o voto por água. Sendo impossível combater a seca, argumenta, não resta outra solução senão conviver com ela.
— Há duas questões fundamentais — aponta Baptista. — A primeira é o acesso à terra. Temos 2 milhões de famílias de pequenos agricultores que vivem no semiárido. Eles representam 42% de toda a agricultura familiar do país, mas ocupam apenas 4,2% das terras agricultáveis. A segunda é que precisamos desenvolver uma nova mentalidade, tecnologias e concepção de estoque. Estoque de água, alimentos, sementes e animais adaptados para o semiárido. Se criarmos esse arcabouço, pode vir a seca que for, as pessoas vão aprender a conviver.
* Enviada especial