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PROGRAMA DE CISTERNAS ENFRENTA “SECA” DE RECURSOS E FOME BATE À PORTA DO SEMIÁRIDO
Projeto-modelo vem perdendo recursos ano a ano. Edital do governo Bolsonaro pode excluir principal articuladora das construções.
20/01/2020
Modelo para outros países e fundamental no combate aos efeitos da seca, o Programa Cisternas enfrenta uma escassez nada natural: a de recursos. Desde 2003, a iniciativa promoveu a construção de 1,3 milhão de estruturas para a captação de água da chuva, o que abastece a residência de cerca de cinco milhões de pessoas. Foi um passo fundamental para que o Brasil deixasse, em 2014, o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Mas, agora, a perspectiva de zerar o déficit de famílias sem água potável e garantir a universalização do acesso à água no semiárido brasileiro está cada vez mais longe. O montante previsto pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) na Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2020 é de R$ 50,7 milhões, a destinação mais baixa desde a criação do programa.
O recorde negativo na execução, o dinheiro efetivamente gasto, é de Michel Temer (PMDB), em 2017. Segundo relatório de monitoramento da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar (Caisan), apesar de aprovado na LOA um orçamento da ordem de R$ 248,8 milhões, ao final daquele ano o saldo efetivamente disponível para novas contratações foi reduzido a R$ 49,05 milhões.
No ano seguinte, o programa registrou o menor número de construção de cisternas, com apenas 24,1 mil equipamentos – à frente apenas de 2003, ano de implementação do programa. Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o número caiu ainda mais, com 20,9 mil cisternas construídas de acesso à água para o consumo humano. Foi também o número mais baixo em termos gerais. Contando com a construção de cisternas para produção de alimentos e de cisternas escolares, um total de 24,8 mil equipamentos construídos, menos da metade das 55 mil de 2017.
Essa é a primeira reportagem da série Fome de Mentira, que analisa o desmonte de políticas públicas brasileiras na área de segurança alimentar. Em três textos, fruto de uma extensa apuração, traçamos um balanço das medidas adotadas no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.
Além dos R$ 75 milhões destinados para o programa na LOA, o Ministério da Cidadania acessou mais R$ 100 milhões para o programa por meio do Fundo de Direitos Difusos do Ministério da Justiça. A execução orçamentária, porém, não chegou nem à metade do total disponível. Segundo o Portal da Transparência, foram executados no Programa Cisternas em 2019 R$ 84,6 milhões por meio de ação orçamentária específica.
A projeção para o Plano Plurianual (PPA) 2020-2023 é de R$ 183 milhões, o que significa que o valor previsto para os próximos quatro anos não chega nem à metade dos R$ 643 milhões previstos no orçamento apenas para 2014, quando os recursos começaram a diminuir de forma mais expressiva. Os valores destinados ao programa no orçamento tiveram crescimento contínuo a partir de 2008 e atingiram o ápice em 2012 com a previsão de R$ 925,8 milhões.
A Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), organização central nessa iniciativa, estima que seria necessário R$ 1,25 bilhão para atender à demanda de construir mais 350 mil cisternas, cobrindo todo o déficit remanescente.
Fonte: Boletim informativo Ministério da Cidadania nº28, novembro de 2019. Programa Cisternas.
“O que nós propusemos ao parlamento é que isso fosse incluído no PPA 2020- 2023. Esse valor seria distribuído nos quatro anos para que a gente tivesse a universalização, pelo menos em relação às cisternas de água para o consumo humano”, explica Alexandre Pires, coordenador do Centro Sabiá de Agroecologia, sediado no Recife, e da ASA em Pernambuco.
O programa consiste na construção de cisternas para captação de água das chuvas para a população do semiárido brasileiro, o que permite que as famílias possam ter água potável durante os oito meses anuais de seca. A cisterna, com capacidade de armazenamento de 16 mil litros, permite que uma família de até 5 pessoas tenha água para necessidades básicas, como cozinhar e dar banho nas crianças.
Há dois modos de produção. Um, por empreiteiras. Outro, por organizações sociais. Nesse segundo caso, o valor médio de cada cisterna, incluindo o processo de capacitação de um representante das famílias que receberão as cisternas e dos pedreiros, é estimado em R$ 3,5 mil.
“A gente está falando de uma tecnologia social. Então, tem o envolvimento comunitário, o controle social de uso dos recursos. A gente está falando de organizações que têm uma capilaridade e conhecem as comunidades e as regiões. A gente está falando de famílias que, muitas vezes, o Estado nunca chegou a elas”, explica Rafael Neves, coordenador dos programas Um Milhão de Cisternas e Cisternas nas Escolas, da ASA.
Desde 2007 o Programa Cisternas também é responsável pela construção de unidades com maior capacidade de armazenamento, para que os agricultores do semiárido, além da água para consumo humano, tenham como produzir alimentos durante a estiagem. Nesse caso, a ASA estima a necessidade de construção de 800 mil unidades. Nos próximos quatro anos, a organização projetava fazer 240 mil, e o restante seria realizado até 2031.
A falta do equipamento faz com que um programa público afete outro. A produção agrícola permite às famílias acessar iniciativas de compra institucional, em especial o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Fonte: Boletim informativo Ministério da Cidadania nº28, novembro de 2019. Programa Cisternas.
“Desde 2014, com a diminuição dos recursos pra essa região, a gente vê progressivamente uma realidade muito grave voltar para o semiárido: a realidade da fome. São políticas de desenvolvimento que garantem uma estabilidade, uma segurança hídrica e alimentar para essas famílias. No momento em que retira isso, a gente começa a perceber que a fome volta, principalmente para as comunidades mais vulneráveis, que estão dispersas”, aponta Valquíria Lima, coordenadora executiva da ASA em Minas Gerais.
O semiárido abrange 1.262 municípios brasileiros nos nove estados do Nordeste e em parte de Minas, considerando a delimitação divulgada em 2017 pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). A região ocupa pouco mais de um milhão de km² – cerca de 12% do território nacional – onde vivem 27 milhões de pessoas, ou 12% da população brasileira. Nessa região encontram-se cerca de 80% das comunidades quilombolas brasileiras.
Em novembro, os nove governadores do Nordeste estiveram na Europa para uma série de reuniões em busca de investimentos e parceiros. Desde então, o Consórcio Nordeste – criado em 2019 para desempenhar o papel de articulador de pactos entre os gestores públicos da região – vem mantendo contatos com a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), agência da ONU sediada em Roma, com objetivo de garantir acesso à água no semiárido nordestino.
“Nossa intenção é construir soluções amplas para garantir o acesso à água para toda a população do Nordeste, acabando com o acesso a água por meio de caminhões-pipa e garantindo acesso digno e de qualidade”, informou o Consórcio por meio de nota.
Combate à desertificação
Já em um momento crítico do ponto de vista orçamentário, o programa foi contemplado em 2017 com o segundo lugar no Prêmio Internacional de Política para o Futuro da organização alemã World Future Council, em parceria com a Convenção das Nações Unidas, pelo papel no combate à desertificação no semiárido brasileiro.
Um monitoramento realizado entre 2013 e 2017 pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens e Satélites (Lapis), ligado à Universidade Federal de Alagoas (Ufal), aponta que 12,85% do semiárido brasileiro passa por um processo de desertificação, o que corresponde a uma área de 126 mil km².
“Reduzir recursos significa colocar a população mais afetada dessa região em risco frente aos impactos ambientais que pode sofrer com as secas. Você tem uma redução do regime de chuvas nos últimos anos e essa redução pode ocasionar um aprofundamento da crise hídrica. É fundamental que a gente amplie investimentos para que cada vez mais a população tenha condição de armazenar mais água, mais sementes e alimentos pra conseguir enfrentar esses contextos climáticos mais severos”, afirma Alexandre Pires.
Rozileide Santana (Assentamento Monte Santo, Gararu, SE)/ Foto: Vladia Lima/Arquivo ASA
O êxito do programa fez com que a FAO levasse a experiência brasileira de políticas públicas para o combate aos efeitos da seca no deserto do Sahel, na África, com um projeto em implementação desde 2018.
“O objetivo é permitir que milhões de pessoas na região do Sahel tenham acesso a água potável, acumulem excedentes para aumentar a produção agrícola familiar, melhorem a segurança alimentar e nutricional e fortaleçam o poder de resiliência da comunidade”, aponta o documento sobre a iniciativa, batizada de Um Milhão de Cisternas para o Sahel.
“No semiárido a base de tudo é a água. Na medida que você democratiza o acesso à água para beber, consumir e produzir alimentos, você interfere em todo o ciclo de qualidade de vida dessas famílias. Não só na segurança alimentar, mas nos aspectos de saúde, qualidade de vida das mulheres, que carregavam latas d’água na cabeça para abastecer suas famílias com água, muitas vezes imprópria”, aponta Valquíria.
A equipe do Grupo de Avaliação de Políticas Públicas e Economia do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Pernambuco (GAPPE/ PIME/ UFPE) examinou os efeitos da expansão de acesso à água potável, a partir das cisternas do programa, sobre os indicadores de mortalidade infantil por doença diarreica aguda na faixa etária de zero a quatro anos dos municípios do semiárido, durante o período de 2000 a 2010.
O estudo aponta uma redução de 19%, onde o programa tinha dois anos de atuação, e de 69% nas localidades onde o tempo de atuação era de nove anos, quando comparados com a média de mortalidade por diarreia que os municípios apresentavam em 2000. O resultado também se mostrou mais forte nos municípios com maior proporção de população rural e maior expectativa de anos de estudo, além de ser crescente em relação ao número de cisternas instaladas na localidade.
Exclusão
Se os recursos estão escassos para o programa como um todo, praticamente secaram para a principal organização da sociedade civil responsável pela execução. No primeiro ano do governo Bolsonaro, a ASA não teve nenhum novo convênio firmado para construção de cisternas.
“Nós temos convênios que vão até março. Chegando em março de 2020, para tudo. Restam dois meses, abril e maio, para fazer a prestação de contas, e aí encerra. Então, a previsão é que entre março e abril se encerrem todas as atividades em relação ao Programa Cisternas com a ASA”, afirmou Naidson Batista, coordenador da ASA na Bahia, durante uma conversa em novembro de 2019.
As verbas federais para execução do programa são destinadas à ASA por meio da Associação Programa Um Milhão de Cisternas, uma organização social de interesse público que faz a gestão física e financeira dos programas.
Lucival das bananas e Maria Santos (Caraíbas de Baixo, Simão Dias, SE)/ Foto: Vladia Lima/Arquivo ASA
O repasse, que vinha crescendo continuamente desde 2010, chegou a R$ 324,7 milhões em 2014, mas começou a diminuir em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff (PT), e atingiu o patamar mais baixo em 2017, durante o governo Temer, quando os recursos públicos transformados pela ASA em tecnologias de acesso à água foram R$ 19,3 milhões.
Em 2019, o valor recebido foi de R$ 26,47 milhões, segundo o Portal da Transparência. Esse montante, no entanto, é referente a convênios estabelecidos nos governos anteriores.
O primeiro edital para construção de novas cisternas foi aberto pelo governo Bolsonaro apenas em novembro, o único até agora de sua gestão.
O texto do edital foi formulado de forma que a ASA corre o risco de ser impedida de participar do processo. O artigo que discorre sobre as exigências a serem cumpridas pelas organizações da sociedade civil que desejem participar do processo estabelece como uma das condições “não possuir instrumento com vigência encerrada e cuja prestação de contas não tenha sido aprovada pelo Ministério da Cidadania”. A ASA tem duas prestações de contas em aberto no Ministério da Cidadania desde o início de 2018.
Cisterna-calçadão. Foto: Valda Nogueira/Arquivo ASA
Liminar concedida no dia 21 de novembro pelo desembargador federal Manoel de Oliveira Erhardt, do Tribunal Regional Federal da 5a Região, autorizou a ASA a participar do edital. A pontuação obtida permitiria que a organização ficasse responsável pelos três lotes abertos , mas outra cláusula do edital determina que uma mesma organização “poderá apresentar proposta para mais de um lote, mas deverá optar por apenas um quando convocada a apresentar a documentação relacionada à celebração do instrumento de parceria”.
O critério é questionado pelo coordenador da ASA em Pernambuco. “Isso também impede em certa medida de que a gente possa atuar onde a gente tenha condições e experiência de atuação. Nós trabalhamos no semiárido como um todo, uma ação em rede buscando uma metodologia comum, um método de gestão dos recursos e das implementações de forma articulada com o conjunto dos executores. Se eu ganho e estou demonstrando que tenho capacidade e condições para executar, por que tenho que escolher?”, pergunta.
Como surgiu
A experiência brasileira de construção de cisternas para armazenamento de água da chuva teve origem em 1999, com o surgimento da ASA, durante a 3ª Conferência das Partes da Convenção de Combate à Desertificação e à Seca (COP3), promovida pela ONU. Hoje a articulação é composta por um total de 3 mil representações da sociedade civil.
“É uma rede da sociedade civil que pensa um projeto político de desenvolvimento sustentável pro semiárido brasileiro. Nós quebramos esse paradigma quando dissemos não é por aí, não é distribuição apenas de carro-pipa e de cestas básicas para emergência”, ressalta Valquíria.
O programa de cisternas é baseado na experiência do agricultor sergipano Manuel Apolônio de Carvalho. Em um período de seca, Nel, como é conhecido, migrou para São Paulo, onde se empregou na construção civil e trabalhou com a construção de piscinas. Quando retornou para o interior do Sergipe, utilizou esse conhecimento para desenvolver um reservatório de placas de cimento que pudesse armazenar a água da chuva através do telhado de casa.
“Mesmo antes de 1999 você tinha várias experimentações de como armazenar água de chuva. De forma tradicional as famílias sempre armazenavam, mas a gente precisava encontrar uma tecnologia que pudesse ser multiplicada em larga escala, fazer com que cada família tivesse uma cisterna para captação da água da chuva”, explica Valquíria.
Em 2000, durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o Ministério do Meio Ambiente encampou um projeto-piloto para a construção de 500 cisternas na região do semiárido.
Em 2001 a ASA conseguiu uma parceria com a Agência Nacional de Águas (ANA) para a construção de 14.500 cisternas em um período de dois anos. Em 2003, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a experiência da construção de cisternas se tornou uma política pública federal dentro do Programa Fome Zero.
Rozileide Santana (Assentamento Monte Santo, Gararu, SE)/ Foto: Vladia Lima/Arquivo ASA
De 2003 até 2007 a ASA trabalhou como principal executora do projeto. A partir de 2007 a rede de organizações começa a pedir ao governo a implementação de um programa complementar, o Programa Uma Terra e Duas Águas, que prevê, além da água para o consumo humano, a construção de cisternas de maior capacidade de armazenamento para a produção dos agricultores familiares.
“Não dava para as famílias produzirem no semiárido brasileiro se a gente também não desenvolvesse tecnologias que armazenassem água da chuva para produção de alimentos. Então, a gente desenvolveu um conjunto de tecnologias sociais que armazenam água da chuva com esse objetivo, normalmente utilizados ao redor de casas, nos pequenos roçados, nos quintais familiares onde ajudam as famílias na produção”, explica Valquíria.