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Uma fábrica de água, artigo de Osvaldo Ferreira Valente
A água sempre foi, é e será um fator importante para a sobrevivência humana. Ninguém desconhece esse fato, pois mesmo que de forma intuitiva ela é reconhecida como elemento fundamental para a vida em si e como suporte básico para a produção de bens necessários ao desenvolvimento social. Mas apesar dessa importância e mesmo o Brasil possuindo, desde janeiro de 1997, uma legislação moderna de recursos hídricos, a pesquisa recentemente publicada pelo IBGE mostrou que água continua sendo maltratada em muitos municípios. A lei é boa, é pragmática e procura tratar o assunto como objeto de planejamento, nomeando a bacia hidrográfica como “unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos”.
As bacias hidrográficas, esculpidas e delimitadas na superfície terrestre ao longo de milhares de anos e drenadas por sistemas hidrológicos formados por córregos, riachos e rios, devem ser gerenciadas como “fábricas naturais de água”. Elas são as responsáveis pela recepção e processamento das águas que chegam até elas pelas chuvas, disponibilizando-as no tempo e nas quantidades reguladas pelo comportamento de seus ecossistemas hidrológicos e familiares. E como fábricas, devem ser gerenciadas como unidades produtivas e não como monumentos ecológicos a serem apenas preservados e admirados pelo desejo emocional de retorno às origens ou da intocabilidade. As bacias da região sudeste, por exemplo, estão quase todas ocupadas por sistemas de exploração econômica e as técnicas de conservação precisam estar apropriadas a tais sistemas, pois o confronto ambientalista-produtor não é a melhor alternativa. Ele já existe há tempos e os resultados estão aí, com as bacias cada vez mais degradas e incapazes de apresentarem boas produtividades de água.
Como qualquer fábrica, a bacia pode gerar bons ou maus resultados, tais como: a) receber as águas das chuvas e processá-las em forma de enxurradas, conduzindo-as rapidamente para córregos e rios, sem preocupação prévia com suas capacidades de transporte e armazenamento; e b) receber as águas de chuvas, absorvê-las pela sua superfície porosa, conduzi-las até lençóis subterrâneos (enormes armazéns naturais) e disponibilizá-las lentamente para córregos e rios. A realização de uma ou outra alternativa dependerá da escolha das opções produtivas, ou de ocupação, e da capacidade gerencial das instituições responsáveis pela gestão das bacias (Comitês e Agências de Água).
Das alternativas expostas acima, a primeira é a responsável pelas cheias e inundações, nos períodos de chuva, e pela falta de água, nos períodos de seca. É o resultado de uma opção produtiva, ou de ocupação, mesmo que involuntária ou de descuido, e que acontece quando a superfície é impermeabilizada por construções, asfaltamentos, eliminação de quaisquer áreas verdes nas cidades, mau uso da terra no meio rural etc. O armazém (lençol) fica vazio e a diminuição da matéria prima (água de chuva), nos períodos de seca, impede a fábrica de suprir a demanda. Já a segunda alternativa implica no tratamento adequado da superfície da bacia, aumentando sua rugosidade e porosidade e criando, assim, as condições necessárias para as águas de chuvas penetrarem no solo e serem armazenadas nos lençóis subterrâneos.
A alternativa ideal descrita deve ser implementada pela colocação de obstáculos à livre circulação das águas na superfície, dando tempo para a sua absorção (infiltração) e conseqüente descida até o lençol. Aqui começa a diferenciação de entendimento dos procedimentos a serem adotados. Para o ambientalista radical, a preservação é o único procedimento eficiente e a floresta o único obstáculo aceitável a ser anteposto ao escoamento das águas pelas superfícies. A produção agropecuária, por exemplo, seria confinada a áreas muito restritas e os produtores rurais passariam a ser fustigados continuamente por leis e resoluções, cada vez mais restritivas. Já para o especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas (conservador de nascentes), quando os reflorestamentos não forem possíveis por razões socioeconômicas dos ecossistemas familiares, as retenções das águas de chuvas poderão ser conseguidas com barreiras físicas como terraços, caixas de retenção de enxurradas, paliçadas etc. Técnicas que permitem o uso das áreas para outras atividades produtivas e evitam o princípio do “oito ou oitenta”, que só provoca confrontos desnecessários com os ecossistemas familiares das bacias, com inevitáveis repercussões negativas nos ecossistemas hidrológicos e na produção de água.
A ideia de fábrica não é apenas uma hipótese utópica, pois o autor já tem experiências em sua implantação em pequenas bacias experimentais, na região de Viçosa-MG, com excelentes resultados. Após quatro anos, as vazões de seca tiveram seus valores dobrados, as enxurradas diminuídas em mais de 60%, os produtores não precisaram alterar substancialmente os seus sistemas produtivos, os custos foram baixos e não houve nenhum confronto do tipo produção versus preservação. E as bacias foram, assim, verdadeiramente revitalizadas quanto à produção de água em quantidade, conforme desejos sempre exaltados como no caso da bacia do São Francisco. Desejos que, infelizmente, não passam muitas vezes de retórica e de intenções grandiosas, quando o problema é de aplicação de tecnologias apropriadas e simples, adequadas às necessidades ambientais, socialmente justas e economicamente viáveis.
OSVALDO FERREIRA VALENTE
Professor titular aposentado da UFV; Especialista
em hidrologia e manejo de bacias hidrográficas e
autor do livro “Conservação de Nascentes- Hidrologia
e Manejo de Bacias Hidrográficas de Cabeceiras”