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Revitalização carece de verba à altura de sua relevância
Carta Maior - Antônio Biondi* e Maurício Hashizume
30/11/2004
Vale do Rio São Francisco e Brasília - “Do jeito que a água está, ela é capaz de levar apenas doenças para onde for”. A sentença é do indígena Ailson, líder do povo indígena Truká que vive na Ilha de Assunção. A ilha fica junto ao município de Cabrobó, de onde partirá o Eixo Norte do projeto de transposição do Rio São Francisco. Unanimidade em meio ao turbilhão de estudos e opiniões relacionadas ao Rio São Francisco, a revitalização ainda não é uma realidade para os que vivem e dependem das águas de um dos mais importantes rios do País. Nesse quesito, promessas e planos até bem elaborados contrastam com a escassez de recursos e a falta de articulação entre os diferentes níveis de governo.
“Há muita conversa, muito programa, muita afirmação de que é prioridade. E pouco resultado real. Quando vieram recursos, foram poucos. Mal distribuídos e mal investidos, acabaram beneficiando pouca gente”, resume Luiz Carlos Fontes, secretário-executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHRSF) e professor da Universidade Federal do Sergipe (UFS). A pedido da Agência Carta Maior, ele faz um espécie de “raio-x” da bacia. No Alto São Francisco (região mais próxima às nascentes na Serra da Canastra, em Minas Gerais), o desmatamento é um dos maiores problemas, secando muitas nascentes, acabando com as matas ciliares, ampliando a erosão e o assoreamento do rio. Há também os problemas causados pela mineração, com degradação do ambiente e mais erosão. A situação não se refere apenas ao São Francisco, mas atinge todos seus principais afluentes.
Dado interessante sobre esse trecho é que a região metropolitana de Belo Horizonte-MG abarca 30% da população de toda a bacia, compreende apenas 1% de sua área total, mas é responsável por cerca de 26% da poluição das águas do Velho Chico, principalmente pelo lançamento de dejetos urbanos e industriais nos afluentes do São Francisco como o rio das Velhas.
De acordo com o secretário-executivo do CBHRSF, no médio e sub-médio São Francisco, o problema da poluição é mais grave em Juazeiro-BA e Petrolina-PE. “Nas grandes áreas de agricultura irrigada, poluição tende a se agravar também por causa do lançamento crescente de agrotóxicos no rio. E com o crescimento das cidades, a situação tende a se agravar”. O despejo de esgoto no Velho Chico foi alvo de uma ação conjunta do Ministério Público de Pernambuco com o Ministério Público Federal que ensejou uma liminar do início de outubro deste ano obrigando a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) a suspender dentro de um prazo de 120 dias o despejo em Petrolina-PE de esgoto não-tratado no leito do rio.
Depois que a liminar foi concedida, a Compesa anunciou um investimento de R$ 40 milhões para os próximo cinco anos que terá como objetivo a conclusão dos 15% restantes para que a rede de saneamento básico possa chegar aos 100% em Petrolina-PE. “Estamos tentando fazer a nossa parte, mas o Velho Chico sofre degradações em todo o seu curso”, aponta a promotora Ana Rúbia Torres de Carvalho, uma das promotoras que acompanham o caso de Petrolina-PE. “Antes de qualquer projeto de transposição, o tratamento do esgoto deveria vir em primeiríssimo lugar. Tornar o rio saudável deveria ser prioridade. As demandas difusas [atendimento de outras bacias] vêm depois”. Apesar das ponderações, a promotora acredita na possibilidade de que os Estados banhados pelo São Francisco se unam para, juntos, sanar os problemas relativos à revitalização. “Continua sendo o rio da unidade nacional”.
Uma área chamada de Invasão, no bairro do Tabuleiro, em Juazeiro-BA, é outro exemplo do problema do crescimento das cidades. Há cerca de nove anos, Maria do Bom Conselho Galdino, nascida em Princesa Isabel-PB, veio para Juazeiro-BA e mora na Invasão. “Meu marido trabalhava como agricultor, só moramos no Tabuleiro há sete meses. Tem problema de lama, passa esgoto na casa da gente. Aqui quando chove a água entra toda na casa da gente. A maioria das casas não tem água. A gente puxou água da outra rua para não ficar sem”. A casa de Maria do Bom Conselho fica a cerca de dois quilômetros da calha do Rio São Francisco. Fica bem próximo a um curtume que só a começou a adequar sua produção em termos de lançamento de efluentes no rio há aproximadamente três anos. A casa de Maria também fica pertinho da estação de tratamento de água e esgoto do Tabuleiro, que já está saturada. Junto da Invasão, existe também um lixão. O quadro da área da Invasão está longe de ser único. Dos 504 municípios que fazem parte da bacia do São Francisco, apenas 132 municípios possuem obras de abastecimento de água e só 78 dispõe de serviço de esgotamento sanitário.
Ainda no médio e sub-médio, Luiz Carlos Fontes identifica outros dois problemas sérios: uso inadequado do solo, sobretudo no Oeste baiano, com os grandes projetos de agricultura; desmatamento grave sobre as matas na Bahia provocado pelo avanço das siderúrgicas do Quadrilátero Ferrífero, no Norte de Minas, para a obtenção de carvão. Outro dado importante: o setor siderúrgico da região em questão consome 6 milhões de toneladas de carvão por ano. Para produzir essa quantidade a cada ano, são tombados e queimados 300 mil hectares de cerrado. E para aumentar a produção de ferro, o setor já tem planos de dobrar o consumo.
O sub-médio e o baixo São Francisco, observa Luiz Carlos Fontes, concentram as barragens (com exceção de Três Marias, que fica em Minas Gerais). “No baixo São Francisco, os índices de pesca chegaram a ser considerados um fenômeno quando os lagos foram construídos. Hoje, a produção é em torno de 10% de antes das barragens (década de 1960). Qualidade, quantidade e diversidade caem ano a ano. A pesca predatória é só mais um dos fatores que influenciam esse quadro”. As lagoas marginais, que ficam nas áreas alagáveis das margens do rio, segue, têm importância muito grande no ciclo de reprodução dos peixes. “Agora não há mais cheias no baixo São Francisco, o que prejudica muito a reprodução dos peixes. Durante 12 anos sem cheias (1992 a 2004), as lagoas praticamente não receberam água, foram praticamente extintas”. Além disso, há problemas gravíssimos de navegação no baixo São Francisco entre a foz e a hidrelétrica de Xingó. Estimativas apontam que, a cada ano, 18 milhões de toneladas de terra tomam o leito do São Francisco – o equivalente a 2 milhões de caminhões caçamba – e contribuem ainda mais para o seu assoreamento.
Ele lembra que o São Francisco é fonte de captação para abastecimento humano. “Se poluir o rio todo, Sergipe entra em colapso. E a morte do rio não se dá apenas pela falta d´água ou pela poluição desenfreada, essas mudanças todas também podem ser entendidas como a morte do São Francisco, e isso está na cabeça das pessoas da região”.
Mais conhecido como seu Toinho, Antonio Gomes dos Santos nasceu em Penedo-AL, em 1931, e é pescador “desde antes de completar 18 anos”. Toinho ressalta que “estamos aqui passando os mesmos problemas que o povo passa lá no Ceará. Não é que a gente não queira mandar água para quem passa sede no Ceará, mas nós estamos com o rio na porta e passamos os mesmos problemas que eles”. Toinho lembra que “o rio tinha muito peixe. Criamos, eu e minha esposa Luzinete, nove filhos e adotamos dois. Meu patrão era o rio. Hoje, meu filho tem um filho e não pode criá-lo pelo rio”, lamenta ele, que já foi presidente da Federação de Pescadores de Alagoas. “É impressionante a quantidade de coisas que o baixo São Francisco perdeu. Por isso a gente não concorda com a transposição. Precisa revitalizar o rio”.
“O rio que controlava o mar. Com a construção da barragem de Xingó, o rio secou e o mar derrubou o nosso povoado”, conta Silvânia Souza Barreto, de 31 anos. Nascida em Cabeço, no município de Brejo Grande-SE, ela chegou a morar na capital Aracaju-SE, mas voltou para Cabeço. O povoado fica à margem do São Francisco e está sendo “engolido” pelo mar. A grande maioria dos moradores tradicionais de Cabeço já se mudou para Saramen, povoado próximo da região da foz do Rio São Francisco. “A água que temos vem da bomba, tem umas três no Cabeço, o pessoal não tem condições de ter uma”, emenda Luciano Lessa da Cruz, o Dedico, 27 anos, nascido no balneário de Guarujá-SP e casado com Silvânia. Segundo ele, o custo total de instalação de uma bomba não passa de R$ 150. A água é usada para tudo: cozinhar, beber, lavar roupa, tomar banho, etc. “Quase todo mundo vem pegar água aqui na nossa bomba”.
Mais conflitos à vista
Entre a população que será diretamente atingida pelas obras da transposição, o povo indígena Truká, cujas terras se situam no município de Cabrobó-PE, de onde partirá o Eixo Norte, promete ser um dos mais resistentes. “Com as barragens de Itaparica e depois Sobradinho, mais de 30 espécies de peixe sumiram da nossa região, como o dourado, o surubim, o pintado”, destaca Neguinho Truká que, juntamente com Ailson, são os porta-vozes do povo.
“Com a transposição, o braço menor do rio que forma a ilha de Assunção [que faz parte da terra indígena pertencente aos Truká] deve sumir, juntando a cidade à tribo”, frisa Neguinho. Em 1996, os índios retomaram a área dos invasores, construindo em seguida um sistema de fossa numa pequena área inicial da área que ocupam. Lutam até hoje para ter sistema de fossa em toda aldeia, prioridade para o povo indígena local. “Temos cinco anos lutando para criar rede de abastecimento na aldeia. Agora, em setembro de 2004, a obra começou. A segunda fase começa em 2005”, relata. “Essa transposição a gente espera que vai dar bucho. Mas não se cria”.
Ailson, representante dos indígenas no Comitê de bacia, já adianta a sua posição frente à obra. Ele acha que a transposição ainda deve passar por um impasse jurídico. Ainda assim, já vem mantendo contato com parlamentares para tentar barrar o projeto. “Se não der mesmo assim, vamos ter que tratar o caso pessoalmente mesmo”, prevê. Ele lembra que o governo brasileiro é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que define como obrigatória a participação indígena em qualquer decisão que os envolva. Nas conta de Ailson, além do povo Truká, pelo menos cinco nações indígenas serão afetadas com o projeto de transposição: Pipipã, Pankararu e Kambiwá, em Pernambuco, e o povo Tumbalalá, na Bahia.
Segundo Pedro Brito, chefe-de-gabinete do Ministério da Integração Nacional (MIN), o projeto de transposição não afetará os Truká por que o Eixo Norte partirá a uma distância de quilômetros das terras indígenas. “De longe, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do projeto de transposição do Rio São Francisco é o mais seguro do mundo dentro dessa modalidade. Até o impacto da poeira que vai subir com a construção civil foi contabilizada”. Para Brito, o atual projeto de “Integração do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”, como o Ministério prefere chamar, já é resultado de um processo de reivindicações e participação da sociedade no debate sobre o tema. Prova disso seria a redução da previsão de retirada de 300 m3/s nas projeções do governo anterior do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para apenas 26 m3/s no projeto em voga.
“A revitalização é uma decisão de governo que independe do projeto de transposição”, garante Brito. Ele pede mais colaboração dos Estados e Municípios. “O papel desses entes têm sido confortável. Pouco fazem e cobram do governo federal a revitalização do rio”. O chefe-de-gabinete do ministro Ciro Gomes lembra ainda que a revitalização é um projeto complexo que precisa buscar a sustentabilidade “para a vida”. Ele anuncia que “o governo federal tentará envolver todos”. Uma primeira rodada de conversas com representantes de governadores da região para tratar do cruzamento com os planos estaduais de recursos hídricos já foi realizada.
A soma da dotação do MIN e do Ministério do Meio Ambiente prevê R$ 100 milhões para a revitalização no Orçamento de 2005. “Pretendemos deixar todo o processo de revitalização na mão do Comitê de Bacia”, afirma Brito. Outros R$ 100 milhões, provenientes dos 6% do pagamento de royalties aos municípios por parte da Chesf, precisam ser investidos na revitalização do rio. Nesse tocante, salta aos olhos um outro “buraco”: dos 504 municípios da região da Bacia, apenas 27 têm conselhos municipais do meio ambiente. “As prefeituras precisam colaborar. Royalties estão sendo pagos pela Chesf para investir em revitalização, mas não retornam para o rio”, atesta o deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), que promete incluir dispositivo sobre a questão dos royalties em seu relatório final sobre a proposta de emenda constitucional (PEC) que cria um fundo permanente para a revitalização.
Muito pouco para o que seria necessário
Maurício Laxe, coordenador do programa de revitalização no MMA, aposta no núcleo de articulação nos Estados (formado por integrantes do MMA, do MIN e dos Ministérios Públicos Estaduais) para o sucesso da iniciativa gestada dentro de um Grupo de Trabalho Interministerial instalado ainda em 2003, aproveitando os avanços de um outro grupo que já vinha trabalhando desde 2001. “Queremos integrar o Sistema Nacional de Recursos Hídricos (SNRH) com o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). O Programa de Revitalização do Rio São Francisco é o único com previsão de 20 anos que está no PPA [Plano Plurianual 2004-2007]”, pontua Laxe.
Durante os anos de 2001 e 2002, foram reservados R$ 70 milhões para investimento na revitalização do Velho Chico. Deste total, R$ 30 milhões foram desviados para outras regiões como Rio de Janeiro e Goiás. O restante, R$ 40 milhões, foi utilizado basicamente em fiscalização – reforço dos órgãos estaduais de meio ambiente (OEMAs) e instrumentalização do Ministérios Públicos Estaduais e polícias ambientais.
O ano de 2003, segundo Laxe, foi de planejamento e preparação. “O programa de revitalização foi incluído no PPA e o GTI teve muito trabalho. O gasto foi de R$ 1,1 milhão com diagnóstico, plano estratégico de revitalização, palestras e seminários para mobilização popular”.
Neste ano, foram destinados R$ 21,2 milhões para a revitalização. Cerca de R$ 17 milhões já foram executados. “Esperamos a liberação de mais R$ 4,2 milhões até o fim de 2004”, complementa o coordenador. A verba foi para ações voltadas para conservação do solo, reflorestamento, monitoramento das águas e políticas de resíduos. “Só para o lixão de Juazeiro, foi destinado R$ 1 milhão”.
Laxe explica que, para 2005, serão atendidos dois tipos de demanda: a deduzida e a espontânea.
As deduzidas serão por meio da publicação de editais nos moldes do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) que ficarão a cargo do GTI e do Conselho Gestor do Programa de Revitalização. A demanda espontânea deve emergir de uma agenda de diálogos com setores da economia regional e outros entes da Federação. Nesse sentido, um protocolo de adesão dos municípios para criação de conselhos municipais e maior participação no Programa de Revitalização já está sendo concluído. O programa prevê a ampliação das áreas de proteção. Hoje, elas são apenas 33 e ocupam menos de 1% da área total bacia. O objetivo é ampliar as Unidades de Conservação (UCs) para chegar ao menos aos 10%. A criação de três corredores ecológicos e o investimento em turismo também fazem parte do Programa de Revitalização.
O Ministério da Cidades está destinando R$ 630 milhões só para obras de saneamento básico em 80 municípios localizados na bacia do São Francisco. Desse total, R$ 383,7 milhões referem-se a recursos de fundos públicos - Fundo de garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) – e o restante soma desde recursos do Orçamento Geral da União (OGU) deste ano, restos a pagar e empréstimos do Banco Mundial (Bird) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Vale lembrar que o Plano Decenal da Bacia do Rio São Francisco projetou os gastos necessários para a revitalização hidroambiental – não incluindo obras de infra-estrutura, exceto saneamento básico – em R$ 5,2 bilhões para os próximos dez anos. Ou seja, ainda existe uma diferença muito larga entre o que se quer e o que está sendo de fato destinado à recuperação e futura sustentabilidade do São Francisco.
*Especial para a Agência Carta Maior.