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Revitalização – uma epopeia, artigo de Manoel Bomfim Ribeiro
Brasília, 19/10/2005
Com os compromissos, assumidos pelo Governo, de aprofundar os estudos da Transposição do São Francisco e dar prioridade ao Programa da Revitalização, após a revolta pacífica de Dom Luiz Cappio, podemos debruçar, agora, sobre este grande tema que é a salvação do nosso rio. A atitude de um homem forte trouxe à mostra da sociedade o desprezo e o abandono que o Governo tem por esta grande jugular do Nordeste brasileiro.
Por todo o século XX, o Governo, com início no final do Império (1886), construiu, no Nordeste, a maior rede de açudagem do Planeta. Foi também neste mesmo século XX que o rio São Francisco foi literalmente demolido. Enquanto se construía lá, se demolia cá. Cerca de 40 navios a vapor, singrando de Juazeiro a Pirapora, 1371 km, consumia, como lenha, 900 hectares de mata ciliar, anualmente. A agricultura empírica, com métodos rudimentares, foi deixando o solo do Vale totalmente desnudo. No tempo de Cabral, a bacia hidrográfica do rio tinha total cobertura verde, a chuva caia sobre a copa das árvores, escorria pelas galharias, e ia formar os lençóis freáticos que alimentavam o seu talvegue. A água era cristalina, a máxima enchente era de 12.000 m³/s e a mínima 5.000 m³/s, em termos gerais. Era um rio equilibrado.
Agora temos um vale desnudado pela sanha dos madeireiros e por outros processos destrutivos. Solo calcinado, as águas das chuvas descem como um bólido, abrindo grandes voçorocas, aterrando o rio e os seus tributários. A largura se abriu de 500 metros, em média, para 1000 metros, pelo fenômeno das terras caídas. A máxima enchente chegou a 19.000 m³/s e a mínima a 500 m³/s, 3% da máxima – rio desequilibrado. Com o mesmo volume de água, mas com sua largura dobrada, o momento de calado caiu, perdeu-se o tirante de navegação, prejudicando totalmente a navegabilidade do Grande rio. O homem é um vândalo, um destruidor das messes que a natureza nos ofereceu.
A poluição do São Francisco ocorreu pelo processo natural com o aumento populacional. A poluição dos rios da terra é causada pelo homem inculto e pelo homem civilizado. Todos fazem do seu rio uma cesta de lixo. O homem vive em função do rio, mas ele é o seu próprio algoz. Toda a concha hidrográfica tornou-se, totalmente, degradada.
A revitalização do nosso rio é a inversão do processo, é o restabelecimento de toda a bacia deteriorada e mutilada pelas ações antrópicas exercidas ao longo do século XX.
Vejamos em que consiste a tão comentada revitalização, que não é nada fácil:
- Projetos existentes. Reunir e ordenar todos os projetos e programas da Bacia. Existem cerca de 500 projetos entre particulares e públicos, municipais, estaduais e federais, que devem ser ordenados e priorizados, tendo a Bacia como unidade de planejamento.
- Hidrometria. Recuperar e ampliar a rede hidrométrica do rio e de todos os seus tributários: fluviometria, pluviometria, temperatura, evaporação, insolação, etc, que é o recenseamento do rio, das águas de toda sua bacia. Trabalho caro, penoso e demorado. Foi um programa que já existiu no tempo do Departamento de Portos e Vias Navegáveis, hoje, totalmente esquecido e desprezado. É a vida de um rio.
- Sedimentometria. Instalar postos no rio, nos seus tributários e nos seus barramentos. Estes postos sedimentométricos, distribuídos por toda a bacia, medem o material sólido carreado pelas águas, no período sazonal de cheias, responsável pelo grande assoreamento da calha principal, que obstrui a navegação e promove o aterramento das grandes represas construídas.
- Reflorestamento. Bacia hidrográfica do rio com 168 confluentes, rede filamentar de riachos e milhares de micro bacias. Trabalho demorado e árduo com técnicas apoiadas na silvicultura, na arboricultura e na vegetação de baixo extrato, adequadas à vocação do solo, para conter os processos erosivos do Vale, recompondo todo o seu manto verde. Esta operação gigante, mesmo abstraindo cidades, vilas, sistema viário e projetos agropecuários deve atingir mais de 40% da bacia hidrográfica do rio.
- Lagoas marginais. Consiste na restauração das lagoas, maternidade e berçário de toda fauna potâmica. Estas lagoas ganglionares, ao longo da calha, em ambas as margens, são o útero do rio, hoje, destruído, literalmente, pela mão do homem. A fecundação dos peixes reofílicos, responsáveis pela piracema, é extra corpórea e o nascimento dos alevinos ocorre nessas lagoas rasas e quentes. Grande nicho de reprodução, com rica e farta alimentação para anfíbios e répteis, para a fauna terrestre e alada, onde pássaros e insetos se insinuam por toda a ambiência, gerando um bioma de vida própria – água, vegetação e homem – a que chamamos de biocenose. Esta é a vida que faz pulsar o rio.
- Despoluição. Tema para adultos. Não é impossível, mas haja dinheiro. A poluição teve o seu começo nos primórdios da civilização, excrementos humanos, animais mortos, lixos. Depois vieram os biocidas, a química, os agrotóxicos, a mineração, etc. A poluição contrasta com todos os índices de civilidade. O NILO e sua fantástica rede de canais está contaminado pelos insumos agrícolas. Cairo e Alexandria lançam fosfatos e nitratos no rio, poluindo o litoral mediterrâneo. O TÂMISA, no início dos anos 90, era uma cloaca e a Agência inglesa “Nacional Rivers Autority” (NRA), em 9 anos, ressuscitou o rio, despejando, hoje, suas águas cristalinas no Mar do Norte. O GANGES, rio místico, cheio de lendas e fábulas, recebe, “in natura”, os dejetos de cidades milenares como Nova Delhi, Benares, Patna e Calcutá, esta, o maior porto fluvial da Índia. O RENO, em 1986, ficou vermelho de mercúrio, 300 toneladas de pesticidas destruindo a micro e macro fauna e a microflora do vale, poluição vinda de Basiléia, o “Vale Químico da Suíça”. Os países europeus, todos eles, recebem fortes pressões da Comunidade Econômica Europeia para não poluírem os seus rios. O PARAÍBA DO SUL, cujo vale é o mais industrializado do Brasil (Minas, São Paulo e Rio), com Votorantim, Refinaria, Cervejarias, etc, só possui 12% dos municípios com tratamento de esgoto. O CAPIBARIBE, com seus 250 km renasceu no início dos anos 90, com o modelo matemático dos ingleses usado no Tâmisa, mas o vinhoto e a lama negra e fétida já voltaram ao seu leito. O PARNAÍBA, irmão siamês do São Francisco, está com seus mananciais soterrados, suas belas nascentes nos contrafortes da Serra das Mangabeiras estão obstruídas. Voçorocas imensas. No TIETÊ, já foram gastos mais de US$ 2 bilhões e continua sendo um exemplo invejável de poluição. São 40.000 indústrias e 1,3 milhão de toneladas/dia de esgotos, mas a capacidade de tratamento é apenas, de 10%. Vergonha nacional. A lista é infindável. E o VELHO CHICO, o rio que querem tirar do lugar? À sua direita, o rio das Velhas recebe, diariamente, 470 toneladas de dejetos da Grande Belo Horizonte, não há BDO que resista. À sua direita, também, o Paraopeba, contribuindo com poluição pesada e venenosa, mercúrio, cádmio, zinco, arsênio, tudo gerado pelo Quadrilátero Ferrífero Mineiro. Acresce mais os agrotóxicos de 300 mil hectares irrigados, às margens do rio e seus afluentes. Despoluir o rio é um desafio.
- Saneamento básico. Existe no Vale do São Francisco 415 cidades e mais de 800 povoações entre distritos, vilarejos e aglomerados humanos, ocupando terras da Bacia, por cinco estados da federação, totalizando 15 milhões de habitantes, numa superfície de 640.000 km², área igual à toda a Península Ibérica (Espanha + Portugal) e mais a Dinamarca, três países europeus. Nada, quase nada temos de saneamento. É outro desafio para esta territorial e imensa bacia hidrográfica.
- Navegabilidade. Este é o último item da revitalização do rio. Instalado todo o processo sedimentométrico na calha principal e nos seus afluentes e, uma vez, plantado e implantado o reflorestamento da Bacia, determinam-se os pontos de depósitos aluvionais e os seus volumes para a grande operação de dragagem. Esta dragagem é contínua, rio acima e rio abaixo, ao longo do curso principal e dos afluentes navegáveis, garantindo uma navegabilidade permanente durante 365 dias do ano. Só assim o transporte fluvial poderá ser restabelecido.
O grande paradigma, um exemplo para o mundo inteiro, é a revitalização do vale do rio TENNESSEE a conhecida TVA (Tennessee Autority Valley) que se tornou um símbolo de desenvolvimento hídrico unificado. A bacia foi projetada e executada como um todo, respeitando a unidade de sua própria natureza. Ela tem uma área de 360.000 km², metade da bacia do nosso rio e despeja no Ohio 60 bilhões m³/ano. O S. Francisco despeja 100 bilhões no Atlântico. O Presidente Franklin Delano Roosevelt elegeu essa revitalização, como a grande epopeia de sua administração. Em 20 anos (1933-1953), planejou e construiu toda sua obra: 39 grandes barramentos, sendo cada um deles, um polo de energia, um polo de piscicultura, um polo de irrigação e um polo de turismo. Restabeleceu a navegação em 1.040 km dos seus 1.650 km de extensão, e mais, criou, dentro da bacia, 233 parques de recreação, todos com boa infraestrutura. Suas margens são perfeitamente contidas e encaixadas, a água é cristalina, um rio niveal e indômito, hoje, um rio sereno e majestoso.
Este é um rio revitalizado na acepção técnica do termo. É tudo o que temos a fazer no São Francisco. Diante do que expomos, a REVITALIZAÇÃO DO SÃO FRANCISCO É UMA EPOPÉIA, obra para 30 anos ininterruptos, um projeto governamental para administrações sucessivas. Nunca pensar em menos de 100 bilhões de dólares.
Manoel Bomfim Ribeiro, eng. Civil
Ex-diretor regional do DNOCS, da CODEVASF e Consultor da SRH/MMA
Fone: (61) 3322-4997 e 9984-5700