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O rio São Francisco tem os pés no chão, artigo de Apolo Heringer Lisboa
29/03/2006
São águas que começam no Sul de Minas, se avolumam nos sertões de Minas, Goiás, Distrito Federal, Bahia, Pernambuco e caminham para a bacia atlântica entre Sergipe e Alagoas. São 640.000 km² de área, população aproximada de 15 milhões e em torno de 2800 km de extensão. O rio São Francisco tem papel ímpar na integração regional e nacional do Brasil.
A desconstrução da bacia hidrográfica natural do rio São Francisco foi ocorrendo nos 505 anos de internacionalização deste território, em função da adoção, em terras brasileiras, de uma lógica de desenvolvimento subserviente a orientações e demandas estrangeiras. O que ocorreu com o bioma Mata Atlântica está ocorrendo aceleradamente com o Cerrado e a Amazônia. A ocupação com fins econômicos exclusivos, sem preocupações com a sustentabilidade ambiental e social, seja pela adoção de uma racionalidade técnico-científica questionável seja por atitudes criminosas, está selando a sorte futura do território brasileiro sem que, neste caso, a Lei de Segurança Nacional nunca haja sido evocada. Outro exemplo de agressão ao território nacional nunca enquadrado na Lei de Segurança é a transferência predatória de "solo pátrio" de valor econômico para os rios e oceano, devido à erosão provocada por intervenções humanas. Trata-se de promoção do empobrecimento, diminuindo nosso potencial de desenvolvimento e aumentando seus custos
No caso específico da degradação da bacia do São Francisco, primeiro vieram a mineração do ouro em Minas e a expansão do gado, com desmatamento para plantio de capim e lavouras de subsistência, instalando-se a erosão e o assoreamento do São Francisco e chegando ao ponto que existe hoje, com a contribuição da mineração, do carvoejamento com mata natural para a siderurgia, da acelerada expansão urbana, da agricultura e das monoculturas extensivas, como a do eucalipto, da soja, do capim, do café e outras, exigindo cada vez mais do Cerrado e de outros ecossistemas. Trata-se de procedimentos que caracterizam o desenvolvimento econômico e sócio-ambiental sem sustentabilidade, típicos de uma mentalidade utilitarista e atrasada.
Esta degradação é visível no leito do rio, pelo assoreamento, pela poluição, pela miséria social, pela extinção dos peixes. Temos hoje uma bacia mecânica, construída sobretudo pelo sistema hidrelétrico brasileiro. Ela contém água e sedimentos nas barragens e regulariza o rio, pois não fossem estas, ele estaria sendo atravessado a pé de comprido. Abaixo de Sobradinho, pelas obras das Centrais Hidrelétricas do São Francisco (CHESF), o artificialismo do rio é total, afetando a foz do rio entre Alagoas e Sergipe. A foz denuncia que o grande São Francisco está morrendo gradativamente, e isto acontecerá inexoravelmente se não se tomarem medidas urgentes, plenamente conhecidas por geólogos, engenheiros, biólogos, hidrólogos, pescadores, agricultores, ambientalistas e uma parcela dos gestores públicos. A importante via de navegação do rio São Francisco entre Pirapora (MG) e Juazeiro (BA)/Petrolina (PE) foi inviabilizada pelo assoreamento do rio.
Além desses problemas, verifica-se que prevalece, no imaginário das pessoas, uma crença estranha de que o São Francisco levita de forma autônoma, sem seus afluentes menores e nascentes do vasto sistema hidrográfico superficial e subterrâneo. E que as ações de revitalização seriam intervenções no próprio rio ou próximo dele. Na verdade isto é falso, pois o grande São Francisco é filho das nascentes e córregos, tem os pés no chão nos incontáveis riachos e nascentes de todo o território. E mais, a terra é mãe das águas. O sistema geológico, e sua fitodiversidade, com destaque para o Cerrado, geram o São Francisco. A sorte do rio se decide no trato do seu território, na racionalidade do uso e ocupação do solo, pois a capacidade e a qualidade de recepção das chuvas define o potencial dos recursos hídricos.
O crescimento das cidades e o mercado internacional, com suas demandas crescentes, atendidos pelo agro e hidro-negócios extensivos, determinam os acontecimentos no território da bacia. A retificação de cursos d'água e canalização de rios nas cidades, o lançamento dos esgotos domésticos, industriais, da produção agrícola e animal nos rios, sem prévio tratamento depurador, o uso desqualificado e generalizado do agrotóxico estão aniquilando os seres vivos que habitam rios, lagoas e suas terras, pois todos necessitam das águas para sua sobrevivência e para as cadeias alimentares interagirem. A qualidade das águas determina a qualidade de toda a cadeia alimentar. As águas como direito ao lazer público e habitat dos peixes precisam ser respeitadas pelo sistema econômico. Inclusive as outorgas para os diversos usos devem respeitar as estimativas da vazão ecológica necessária. O desmatamento generalizado está secando os rios, degenerando o solo e destruindo os ecossistemas. O ciclo hidrológico que nos repõe anualmente nossas águas está sendo ignorado por nosso sistema produtivo basicamente exportador. Sabemos que as chuvas precisam ficar onde caem, percolando o solo, com a ajuda fundamental da vegetação e, na sua ausência, de sistemas de engenharia ambiental que prolonguem o tempo de seu escoamento. A proposta é desdrenar, é promover a percolação.
A idéia de conservar e recuperar as matas ciliares de rios e lagos, sem interrupção geográfica, deve ser vista como garantia de livre circulação de vegetais e animais em todo o território protegendo, assim, geneticamente, os sistemas bióticos e suas necessidades naturais de migração. Este sistema deve procurar interligar as Unidades de Conservação e todos os ecossistemas em todo o território.
A revitalização do rio São Francisco necessita ser conduzida com visão integral do território da bacia, sem concessões ao municipalismo e ao estadualismo. A revitalização precisa de foco geográfico nos pontos mais críticos, como a Região Metropolitana de Belo Horizonte, a região de Três Marias, áreas de grandes projetos de irrigação, de grandes hidrelétricas, de mineradoras de porte e difusas. E nestes focos geográficos, que denominamos de epicentros, é necessário definir minuciosamente os itens a serem conservados ou recuperados, dando conteúdo específico a cada foco geográfico. Com esta metodologia, equacionaremos a revitalização com racionalidade ambiental e menores custos, por meio de metas (objetivos estratégicos e prazos) e sem concessões a projetos eleitorais, empresariais e regionalistas menores. Neste sentido, o projeto de transposição, como está proposto pelo Ministério da Integração Nacional e pelo Presidente da República, deverá ser integralmente revisto e subordinando às diretrizes do Plano de Recursos Hídricos do São Francisco, aprovadas por quase unanimidade pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, responsável legal por esta decisão. Sabiamente o CBH-SF deixa espaço para atendimento ao abastecimento humano fora dos limites da bacia, desde que comprovada tal necessidade e aprovada por tal Comitê. A adaptação da proposta original de transposição apresentada pelo coronel Mário Andreazza em 1982, na convenção nacional do PDS, não tem nenhuma razão de ser. O país não pode gastar 10 bilhões de dólares em obras otimistamente previstas para 15 anos a 20 anos, e sem viabilidade econômica, que irão gerar um mar de obras inacabadas, a exemplo do Projeto Jaíba, no Norte de Minas. Trata-se de obra estruturante da indústria da seca, para atender a fins menores e obscuros.
Não há separação entre história natural e história social, o peixe que expressa a vida expressa também, nas condições de desenvolvimento capitalista no território das bacias hidrográficas, a mentalidade civilizatória dos povos que as habitam e exploram. Os peixes também monitoram o desempenho dos gestores públicos no sistema ambiental. Por isto o Projeto Manuelzão afirma: o destino dos peixes anuncia o nosso.
O Brasil carece não de grandes obras contra a seca e aventuras da engenharia, mas de um programa sustentável para o semi-árido, integrando a população sertaneja ao desenvolvimento.
(*) Professor da Faculdade de Medicina da UFMG.
Coordenador Geral do Projeto Manuelzão.
Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas.
[1] Texto apresentado em palestra no III Seminário Internacional de Engenharia de Saúde, realizado pela Fundação Nacional de Saúde, em Fortaleza, em 29 de março de 2006.