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E agora, São Francisco, quem matará a tua sede?
Nos anos de 1970 e 1980, a vazão do Rio São Francisco chegava a mais de 2.600 metros cúbicos por segundo. Agora em 2018, desde o mês de maio, ela opera entre 550 e 700 metros cúbicos por segundo, atingindo uma média de 600 metros cúbicos por segundo.
Apesar da drástica redução, a Bacia do Rio continua sendo responsável pelo abastecimento de água de mais de 500 municípios, ou de simplesmente uma área de 639 mil quilômetros quadrados. Ou seja, a conta não tem como fechar.
E para além dos aspectos naturais e climáticos que envolvem o tema, que são, obviamente, os de maior peso, é inegável que a ação humana – ou a falta dela – também infere bastante neste cenário caótico.
Reservatório de Sobradinho e os sinais de seca desde 2015 (Foto: Marcello Casal Jr, Agência Brasil)
(FALTA DE) AÇÃO HUMANAIsso porque a inacabada transposição, a falta de projetos de revitalização, o desmatamento e o desperdício - todas ações oriundas do ser humano - contribuem sobremaneira para sacramentar a morte do Velho Chico, que, com ela, levará ao colapso todas as comunidades que se abastecem dele.
A começar por Aracaju, segundo José Luciano do Nascimento Lima, conhecido como Luciano de Menininha. Para Luciano, que é ex-deputado estadual e ex-prefeito de Propriá, em cinco anos faltará água na Capital e na Região Metropolitana. Na verdade, a leitura dele é de que já haja essa deficiência, mas, segundo Luciano, ela seria mascarada hoje pelo Governo do Estado.
“Em cinco anos haverá um colapso, mas pode ser antes. Porque, na realidade, já falta água, mas o Governo abafa as notícias”, opina Luciano. Para ele, a prova de que já falta água é o alto investimento do Governo em ações emergenciais, como escavações e aquisição de equipamentos.
A pergunta que parece óbvia e não quer se calar é a seguinte: e agora, São Francisco, quem matará a tua sede? Aliás, a sede desse generoso Rio será também a milhares de pessoas que necessitam dele como fonte provedora de recursos hídricos para dessedentação – e não só humana, como de outros animais.
Luciano de Menininha: não é assombro, é a realidade
INVESTIMENTOS“O Governo do Estado tem gastado milhões em ações paliativas, emergenciais e ineficazes para esconder a realidade. Eu desafio o poder público a provar que não exista essa possibilidade real de desabastecimento”, ressalta Luciano. Ele não é pitaqueiro à distância: como propriaense, nasceu quase dentro da calha do Rio, e até hoje vive por ali.
De acordo com o ex-prefeito de Propriá, região onde a seca do Rio é visível, o Governo seria mais eficaz se investisse, por exemplo, na revitalização de afluentes e de nascentes do São Francisco e de outros rios que desaguam nele.
“É só uma questão de tempo. Pode ser em cinco anos, um pouco mais ou um pouco menos, mas o colapso vai acontecer se o Estado não priorizar esse tipo de ação”, alerta. Convém deixar claro aqui que “Estado” não deve sinalizar unicamente Sergipe. O São Francisco é uma demanda nacional, que contempla Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e, com a transposição, mais Estados do Nordeste.
Na sexta-feira, 26, o ex-deputado recebeu em Propriá um grupo de amigos e empresários, que, segundo Luciano, ficaram assustados com a baixa-baixíssima do Rio. “Isso não é assombro meu, como dizem. É uma verdade. A da consequência da falta de seriedade por parte do Governo. É como limpar a sala e jogar a sujeira embaixo do tapete. Uma hora ela vai aparecer”, ressalta Luciano de Menininha.
URGENTE NÃO, NECESSÁRIO SIMAnálises mais técnicas, de figuras com mais densidade científicas da causa, porém, afastam esse nível de urgência que o ex-deputado expõe. Ailton Francisco da Rocha, superintendente de Recursos Hídricos da Secretaria de Estado do Meio Ambiente – Semarh –, garante que não há uma previsão para que nada disso ocorra.
“Apesar deste cenário crítico de baixas vazões, a hipótese de faltar água no Estado de Sergipe está descartada. Entretanto, devemos permanecer atentos e vigilantes, cobrando permanentemente que ações de revitalização sejam concretamente realizadas para que possam tirar o Velho Chico desta agonia”, ressalta Ailton Rocha.
Isso porque, embora na opinião de Ailton não haja previsão para que falte água imediata no Estado em virtude da seca no Rio, o fato de ele ser responsável por 99,7% do potencial hídrico de Sergipe faz com que a preocupação exista. “O Rio São Francisco está para nós como o Mar da Galileia está para Israel”, compara.
Deso admite ajustes na captação, mas nega previsão de falta d’água (Foto: Divulgação)
MILHÕES DE USUÁRIOSSignifica dizer que praticamente toda a água consumida pelos mais de 2,3 milhões de sergipanos vem do Rio São Francisco. “Na verdade, são 32 municípios, 412 mil domicílios e 1,4 milhão de pessoas que são abastecidos diretamente pelo Rio. Ou seja, 64% da população do Estado”, revela Napoleão Gomes Barreto Filho, superintendente de Serviços Metropolitanos de Água da Deso.
Napoleão reconhece que para não deixar todas essas pessoas sem água, foram necessários alguns ajustes. “No ano de 2017, tivemos quer fazer algumas adequações nas captações da Companhia”, admite. Mas ele também afirma que não há risco de Sergipe ter o abastecimento prejudicado por completo. “Na situação atual, não”, reforça.
Napoleão Gomes Barreto Filho está se referindo à atual regra que normatiza a vazão do Rio, estabelecida pela Agência Nacional de Água – ANA. A redução da vazão é justamente para evitar a falta de água nos municípios da Bacia.
“Nas cidades às margens do Rio São Francisco, onde temos esgoto, os sistemas estão sendo monitorados. Isso é o que compete à Deso. As demais ações são de responsabilidade do Comitê da Bacia do Rio São Francisco e da própria ANA”, ressalta Napoleão.
PAPEL DO COMITÊDe fato, o Comitê é o grande responsável por articular atividades em prol do Rio. Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia do São Francisco, explica que o papel da entidade é, segundo a legislação, o de sobretudo elaborar e aprovar o plano de recursos hídricos da Bacia.
“No ano passado, nós fizemos a revisão do plano, que tem vigência até 2026. A grande ação é essa, fazer com que os eixos, as diretrizes e os objetivos do plano sejam cumpridos da melhor forma”, esclarece Anivaldo.
Mas o presidente ressalta: o Comitê não pode fazer isso isoladamente. “A ideia é que todos os entes da Bacia – usuários, indústria, pesca artesanal, turismo, agricultura familiar e irrigada –, todos que usam as águas, sejam chamados também a agir de acordo com essas diretrizes”, destaca Anivaldo Miranda.
Anivaldo Miranda: falta sincronia nas ações do poder público (Foto: Divulgação)
TEORIA X PRÁTICANa prática, porém, não é o que acontece. Principalmente, segundo o presidente do Comitê, porque normalmente o poder público faz a parte dele, mas há muita dificuldade na realização de ações sincronizadas nas três esferas de poder – Federal, Estadual e Municipal.
“Para que essas ações sejam realizadas dentro do espirito do plano é preciso que haja sinergia entre os entes. Mas eles trabalham de maneira dessincronizada, olhando para o seu próprio umbigo, sem ter ideia do que o outro faz”, critica Anivaldo. Os 150 mil quilômetros quadrados ajudam a agravar essa falta de sinergia.
“A Bacia é muito grande e cada Estado faz seu plano de Recursos Hídricos e vai cumprindo, sem ter ideai do que o Estado vizinho está fazendo, assim como os municípios. O papel do Comitê é exatamente o de ser um grande articulador institucional e fomentar a ação conjunta”, reforça.
ALTERNATIVASEssa ação conjunta, de acordo com Anivaldo, ocorreria através de parcerias e possibilitaria a eficácia dos diversificados programas do Comitê. O Comitê faz uso dos recursos obtidos com a utilização da água para elaborar os Planos, realizar projetos de revitalização de nascentes e recargas de aquíferos.
“Um dos projetos em Sergipe é em Canindé de São Francisco, junto ao Ministério Público e à Prefeitura, onde está sendo feita a recuperação hidroambiental, com replantio de caatinga e proteção das margens”, revela Anivaldo.
O Comitê também atua na conscientização e na proteção das comunidades. “Uma de nossas preocupações é com a qualidade da água, a fim de evitar que as comunidades consumam água fora dos padrões em virtude da salinização”, destaca. O processo de salinização da água do São Francisco vem se intensificando ao longo dos anos, já que o mar avança sobre ele.
Segundo Luciano, o Rio São Francisco preenchia toda essa área, que, hoje, está seca (Foto: Luciano Nascimento)
REDUÇÃOAliás, segundo Ailton Rocha, da Semarh, a redução de vazão se deve principalmente ao longo período de seca/estiagem que comprometeu o volume equivalente dos reservatórios, situação que foi agravada pelo desmatamento. “Cerca de 48% da bacia hidrográfica do Rio São Francisco se encontra desmatada, segundo o Plano da Bacia. Além disso, o desperdício, a poluição e a fragilidade na governança também afetam o cenário”, avalia.
Para se ter ideia, no reservatório de Três Marias houve uma redução da vazão média natural da ordem de 26% e no reservatório de Sobradinho a redução da vazão média natural atingiu 37%. “Estes são dados muito preocupantes”, ressalta o superintendente.
Mas ele garante que o Estado de Sergipe tem apoiado a continuidade da política pública estadual para a gestão sustentável dos recursos hídricos, inclusive, envolvendo ainda mais os municípios para a integração efetiva entre água e as políticas urbanas relacionadas.
AÇÕES DO ESTADO“Além disso, tem apresentado junto às instituições competentes a necessidade de definição das vazões de entrega em pontos chave dos principais afluentes. Ao mesmo tempo em que vem acompanhando o monitoramento quali-quantitativo da água e apresentado proposta para promover a gestão integrada das águas superficiais e subterrâneas e de preservação”, assegura Ailton Rocha.
O superintendente de Recursos Hídricos da Semarh também afirma que o Estado visa a recuperação das áreas de recarga, principalmente as localizadas nos Estados de Minas Gerais e Bahia, e de pulsos de vazões, através de um hidrograma ambiental, para recuperar a biodiversidade do Rio.
“Nas captações de água, principalmente para abastecimento humano tem sido realizado desassoreamento e adequar as captações de água para que possam operar em regimes de vazões reduzidas. Como também rotineiramente tem acompanhado tecnicamente as discussões sobre o rio São Francisco que vem sendo coordenado pela ANA com a participação do CBHSF e outras instituições afins”, detalha Ailton.
Ailton Rocha: Estado apoia continuidade da política pública estadual para a gestão dos recursos hídricos (Foto: Divulgação)
REVITALIZAÇÃODe acordo com Ailton Rocha, com a implantação dos reservatórios, algumas consequências, como alterações na sazonalidade das vazões dos rios e na magnitude e frequência das cheias, causaram uma alteração na biodiversidade, prejudicando principalmente a pesca artesanal em decorrência da qualidade da água e a navegação com o acúmulo do assoreamento no leito do rio.
“Este cenário é agravado pelo desmatamento, desperdício, poluição e fragilidade da governança que nos leva acreditar que o outrora caudaloso rio São Francisco, denominado de rio da integração nacional, está agonizando”, ressalta Rocha. Segundo ele, foram identificados vários desafios que estão relacionados com a resolução dos principais problemas identificados.
Alguns dos mais mencionados são: resolver os problemas de governança, notadamente simplificar e desburocratizar o sistema de outorgas, gestão dos reservatórios visando o múltiplo uso da água, intensificar a fiscalização em todas as áreas de atuação da bacia hidrográfica e melhorar a articulação entre os órgãos que intervêm no gerenciamento das águas da bacia hidrográfica.
Rio é altamente explorado turisticamente em todas as regiões por onde passa (Foto: Mário Sousa)
REFLORESTAMENTOAlém destes, investir significativamente na melhoria do sistema de saneamento; apostar na conscientização ambiental da população e restabelecer sua confiança nos instrumentos de ordenamento e gerenciamento dos recursos e do território e nos organismos que os elaboram e aplicam.
“Também defendemos a implementação de um plano estruturado e abrangente de revitalização da bacia hidrográfica com reflorestação das áreas mais prejudicadas (cerrado, caatinga e mata ciliar) e das que garantem proteção de nascentes e mananciais; e) implantar o pacto das aguas superficiais e subterrâneas com definição das vazões de entrega”, explica.
Aliás, a conta da revitalização apresentada pelo Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco para o período 2016-2025 estimou a necessidade de um investimento total da ordem de R$ 30,8 bilhões, divididos em diversas áreas de atuação.
“Seria necessário um investimento estimado de R$ 29,6 bilhões: 25% para abastecimento de água (R$ 7,7 bilhões); 63% para esgotamento sanitário, resíduos sólidos e drenagem urbana (R$ 19,3 bilhões) e 9% para recuperação de áreas degradadas, matas ciliares e nascentes (R$ 2,6 bilhões)”, estima Ailton Rocha.
O valor é alto, de fato. No entanto, ver o Rio secando, perdendo sua força, colocando em risco tantas comunidades ribeirinhas, a economia de vários Estados e o abastecimento de água de milhões de pessoas pode ter um custo muito maior. E, pior, esse custo pode ser irreversível. Sim: a pergunta pede para insistir: e agora, São Francisco, quem matará a tua e tantas outras sede?
Mesmo assim, padece há anos sem ações efetivas de revitalização (Foto: Divulgação)
Canal de Xingó vinga ou não vinga?Há cerca de dois anos, o Canal de Xingó voltou à pauta das discussões políticas. O projeto levará água do Rio São Francisco a cerca de 70 mil moradores de quatro municípios dos Estados da Bahia e de Sergipe.
No entanto, ele está sendo colocado em xeque em virtude justamente da atual baixa vazão do Rio, já que o projeto visa a captação e distribuição de água. Sem água, portanto, não há projeto.
Especialistas asseguram que a obra é viável. Mais que isso: que ela é de extrema necessidade para os dois Estados. Um dos defensores do Canal é o deputado federal André Moura, líder do Governo Temer no Congresso.
Ele tomou para si a responsabilidade de fazer andar o Canal de Xingó e, ao JLPolítica, garantiu que alocaria os recursos para o projeto ainda este ano no orçamento de 2019.
André Moura: garantia de recursos para projeto do Canal (Foto: Divulgação)
Obra prevê custo de R$ 4,5 bilhõesPara o engenheiro civil e escritor Renato Conde Garcia, a construção do canal está diretamente ligada ao abastecimento de água sergipano.
Ele é autor do livro Linha Mestra Xingó, onde faz severas críticas ao abandono do Rio São Francisco e tece considerações para um reestudo do traçado do canal, apresentando uma concepção para resolver o problema do abastecimento de todos os municípios sergipanos.
Segundo Renato, todos os mananciais hoje existentes já estão sendo explorados pela Deso, e nenhum deles permite mais qualquer ampliação. Por isso, toda a água teria que vir do Rio São Francisco, o único manancial que suportaria essa envergadura. No entanto, não é à toa que o tema não avançou do campo do debate: trata-se de uma obra que prevê um custo de R$ 4,5 bilhões.
O Canal veicularia uma vazão de 36 metros cúbicos por segundo, serpenteando toda a região sofrida do semiárido. Comparativamente, para o abastecimento de toda a população sergipana, hoje não se produz 10 metros cúbicos por segundo.
Renato Conde Garcia: Linha Mestra Xingó traz crítica ao abandono do São Francisco (Foto: André Moreira/ASN)