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A crise hídrica da bacia hidrográfica do rio São Francisco e de seus reservatórios fundamentais Três Marias e Sobradinho: causas, consequências e soluções
A crise hídrica da bacia hidrográfica do rio São Francisco e de seus reservatórios fundamentais Três Marias e Sobradinho: causas, consequências e soluções
Palestra apresentada pelo Hidrogeólogo e Professor Aposentado da UFCG, José do Patrocínio Tomaz Albuquerque, no I Encontro de Pesquisas sobre Crise Hídrica, Qualidade e Biodiversidade do Rio São Francisco – Belo Horizonte (MG), dia 27 de novembro de 2019.
José do Patrocínio Tomaz Albuqurque
Fig. 1- O Ciclo Hidrológico e a relação hidráulica entre seus componentes.
Sistema Aquífero e sua composição
- • Um Sistema Aquífero insere-se no contexto geológico de uma bacia sedimentar (lito-estratigráfico, estrutural e geotectônico) do conjunto de formações que a compõem e que, quase totalmente saturada, tem seus aquíferos, hidraulicamente conectados, constituindo, assim, conjuntamente com aquitardos e aquicludos, um sistema aquífero.
- • Um sistema, conforme aqui conceituado, inserido em bacia sedimentar, em seu caso mais completo, pode ser composto de dois subsistemas: um livre (contido em uma ou mais formações porosas e permeáveis aflorantes em superfície) e um “sob pressão” (formado por aquíferos confinados e/ou semiconfinados), hidraulicamente inter-relacionados, conforme está exposto na Fig.1.
- • As Figs. 2 e 3, a seguir, procuram traduzir, de uma forma simplificada, as relações intra-sistema de seus subsistemas aquíferos, assim como as suas conexões com os sistemas meteorológico, hidrográfico e oceanográfico. No caso, por hipótese, admite-se que o subsistema sob pressão é do tipo semiconfinado, com carga piezométrica superior à carga hidráulica do subsistema livre.
Sistema Aquífero e seus subsistemas
Relações do Fluxo de Água Subterrânea entre o sistema aquífero (e intra subsistemas) e os sistemas hidrográfico e oceanográfico, mostradas na figura anterior (o jogo das cargas).
Fig. 3- Corte vertical do sistema aquífero mostrando as relações entre os subsistemas e entre o sistema e os rios e o mar.
Participação das Águas Subterrâneas no Escoamento Fluvial
A descarga dos rios (drenagem direta) é composta dos seguintes componentes, conforme se pode verificar na Fig. 4, a seguir:
Escoamento superficial (Overland flow)
Fluxo de base (Baseflow) – Qb
Escoamento sub-superficial (Interflow)
Precipitação direta (Direct Precipitation)
Participação das Águas Subterrâneas no Escoamento Fluvial
Efeitos causados pelo rebaixamento da superfície freática de aquífero livre contido em uma única formação sedimentar ou em um subsistema livre formado por mais de uma formação sedimentar, todas dotadas de porosidade intersticial eficaz:
- •Alteração do regime hidrológico do rio que deixa de ser perene e se torna intermitente ou, até, efêmero.
- •Perda de água na Zona do Solo, atingindo o sistema radicular da cobertura vegetal que não tem mais condições de continuar existindo, conforme se pode visualizar no manejo da figura a seguir.
Sistema Aquífero e as reservas de seus subsistemas
- •As reservas intersticiais: renováveis e permanentes compõem o subsistema livre; as renováveis participam do ciclo hidrológico, sendo recarregada, parcial ou totalmente, por infiltração das águas pluviais precipitadas sobre a superfície aflorante do subsistema que são armazenadas e circulam no interior do subsistema aquífero e saem na calha de rios na quantidade permitida pela sua porosidade eficaz;
- •As reservas sob pressão somente ocorrem no subsistema sob pressão formado por aquíferos confinados ou semiconfinados; elas, também, são dependentes do ciclo hidrológico, tendo a sua espessura (e, consequentemente, o seu volume dependente das características elásticas ou compressivas do meio aquífero, mormente as da água por ser um fluido, expressas pelo parâmetro hidráulico denominado de coeficiente de armazenamento; este parâmetro embora dimensionalmente seja semelhante à porosidade eficaz, ele é muito menor que esta porosidade eficaz , com suas reservas correspondente sendo do tipo permanente e situadas sob o limite inferior das reservas sob pressão.
- •A infiltração da água se faz através da área de recarga dos aquíferos confinados ou semiconfinados, na medida em que o coeficiente de armazenamento permite;
- •O volume acumulado sob pressão fica todo no interior dos aquíferos que, ao serem alcançados pela perfuração de poços tubulares e que são zonas de descompressão, neles se alojam e circulam, podendo até jorrar, se o nível piezométrico do aquífero atingir ou superar a cota topográfica da superfície do terreno;
- •No caso do aquífero ser semiconfinado (situação mais comum), as reservas sob pressão podem entrar em um regime de troca hídrica com o subsistema livre processando-se um fluxo ascendente ou descendente, a depender da dimensão de suas cargas hidráulicas, conforme se pode visualizar no exemplo aqui apresentado.
Problemas decorrentes da exploração descontroladas dos diversos tipos de reservas.
A exploração ilimitada das reservas intersticiais e os problemas decorrentes:
- • Mudança no regime hidrológico de rios;
- • Redução da porosidade eficaz e, consequentemente, da permeabilidade;
- • Interiorização da interface água doce de rios/água salgada do mar.
Idem das reservas sob pressão:
- • Interiorização da mesma interface;
- • Compactação do subsistema sotoposto e subsidência de terreno.
O contexto geológico (cont.)
- •A bacia sedimentar do São Francisco ocupa uma área de 350.000 km2. A bacia é preenchida, predominantemente, por rochas sedimentares Proterozóicas que constituem o Supergrupo Espinhaço e os Grupos Araí, Paranoá, Macaúbas e Bambuí, este o grupo mais superior, aflorando com suas Formações na superfície da bacia hidrográfica do Rio São Francisco. Ainda ocorrem rochas sedimentares Permocarboníferas (Grupo Santa Fé), Eocretássicas (Grupo Areado) seguindo-se (no Neo-Cretáceo) por deposição de rochas vulcânicas (Grupo Mata da Corda) sobre as quais foram depositados os arenitos do Grupo Urucuia. Estes três últimos grupos de rocha , de idades Cretássicas e natureza continental, predominante depositados em ambiente desértico, formam as chapadas e os tabuleiros da bacia sedimentar São Francisco, sendo que o Grupo Urucuia ocupa a maior área desta bacia, formando uma chapada contínua que se estende desde o norte de Minas Gerais passando pela Bahia e pelas fronteiras dos Estados do Tocantins, Maranhão e do Piauí, formando a região hoje conhecida como Matopiba ou Mapitoba.
O contexto geológico: Tectônica e Estrutura da Bacia Sedimentar
- •O embasamento da bacia sedimentar apresenta-se dobrado em toda sua extensão em vários ciclos, o último dos quais gerou altos e baixos de grande diâmetro e extensão, no caso formando a bacia sedimentar também denominada de São Francisco;
- •Trata-se de uma bacia formada por dobramentos de fundo preenchida por Grupos de rochas com mergulho suave das bordas para o centro, sendo o Grupo Bambuí o grupo mais recente desta sequência datada do Proterozóico . Sobre ela ocorrem coberturas sedimentares horizontais, das quais se destacam os Grupos Areado e Urucuia depositados no período Cretáceo, em clima desértico em que a litologia predominante é de arenitos;
- •As rochas da sequência Proterozóica foram afetadas por falhas e as da sequência Cretássica por fraturas.
Os contextos hidrológico e hidrogeológico
- •São pós Cretássicos, mas as características quantitativa (e as qualitativas, as quais não são objeto desta minha participação) só foram conhecidas com a instalação de estações e postos fluviométricos cujos dados de vazões em cada uma delas, foram registrados em séries hidrológicas (1931-1961) usadas na construção de reservatórios superficiais, estendendo-se até os dias atuais com a finalidade adicional de se praticar uma gestão operacional segura dos mesmos.
As principais séries hidrológicas registradas na gestão (operação) de Três Marias
Fig.4- Barragem e reservatório Três Marias.
A situação entre a região do Mapitoba e a confluência dos afluentes nela estabelecida com o rio São Francisco
- •Conforme se pode verificar, o mapa de Mapitoba mostra, em vermelho. os solos irrigados nesta região, os quais s encaixam na sequência de rochas sedimentares constituintes do Grupo Urucuia que forma uma superfície plana, onde não há barragens superficiais. Toda água usada na irrigação destas áreas é proveniente do bombeamento de poços profundos nelas perfurados.
- •Um deles está contido no relatório de autoria do técnico, consultor em recursos hídricos, Rodolpho H. Ramina, elaborado para a AGB Peixe Vivo, em Dezembro de 2014, e divulgado, informalmente, no site da ABRH-Gestão, do qual se transcreve o texto seguinte: “Voei no Oeste da Bahia, nos grandes chapadões do cerrado baiano, a leste de Tocantins e do Jalapão. Sobre o Aquífero Urucuia, a caixa d’água do rio São Francisco e responsável por manter perene durante as secas, mesmo atravessando o Semiárido. Lá em cima dos chapadões, pivôs de irrigação. Medimos. Com um diâmetro em torno de 1.250 m, eles chegam a ter 125 hectares cada. Há centenas deles. Talvez mais de mil. As imagens de satélite de 2012 mostram uns 320 mil hectares com eles em todo o oeste baiano. Pivôs de irrigação usam muita água. Algumas vezes vemos as veredas transformadas em reservatórios. Na maior parte das vezes não vemos nada, a água vem do subsolo.” O relato é ilustrado por fotografias aéreas como a que mostra as inúmeras áreas de irrigação, objeto da Fig. 17, a seguir:
A situação entre a região do Mapitoba e a confluência dos afluentes nela estabelecida com o rio São Francisco
- •Uma segunda informação vem corroborar as assertivas acima colocadas. É que, segundo a ASCOM – Assessoria de Comunicação do CBHSF, existem 1.423 captações no aquífero Urucuia, entre poços e nascentes cadastradas. Estimando-se que, na realidade, elas sejam cerca de 3.000. Ainda revela a ASCOM que no aquífero Bambuí, o número de poços ascende aos 21.430 perfurados. Um exagero! O desmatamento da superfície dos tabuleiros também contribuiu, sobremaneira, para reduzir as taxas de infiltração e, consequentemente, de circulação e descarga, com a impermeabilização do solo pela sua consolidação, favorecida pelas perdas de água por evaporação. Esta perda faz com que haja concentração de sais e de óxidos, que se comportam como cimentos. Alojados entre os grãos dos sedimentos que formam o solo, a petrificação diminui a porosidade original das rochas granulares como as areias, transformadas em arenitos. Finalmente, contribuiu para o consumo de quase todo o volume útil de Sobradinho o fato de que, por cerca de 40 dias do ano de 2013, o ONS, com a anuência de a ANA ter liberado uma vazão acima da capacidade de regularização de Sobradinho, atingindo picos de 3.000 m3/s, com o objetivo de injetar energia na rede de distribuição interligada, visando suprir a deficiência dessa demanda da região Sudeste do Brasil Ver figura 18, a seguir:
Vazões mínimas
Vazões defluentes médias mínimas diárias de Sobradinho inferiores a 1300 m³/s (1.281 m3/s mais a vazão incremental do trecho entre Sobradinho e a foz do São Francisco ocasionam problemas na navegação (trecho Sobradinho / Juazeiro), em diversas captações de industrias, bem como em tomadas d´água para abastecimento de cidades e projetos agrícolas localizados no trecho Sobradinho / Itaparica. Já foram liberadas vazões médias diárias inferiores a este valor, excepcionalmente, por conta do racionamento de energia (1987 e 2001), tendo sido necessária em 2001, a Resolução da Presidência da República Nº 39 de 21/08/2001 autorizando a adoção de vazões abaixo da média mínima diária citada. Os demais usuários do rio foram devidamente alertados quando da realização das referidas programações de vazões médias mínimas diárias, assim como foi necessária a execução de obras provisórias para viabilizá-las. Fonte: Ramina, H. R, “Concepção de uma estratégia robusta para a Gestão dos Usos Múltiplos das Águas na Bacia Hidrográfica do rio São Francisco” (Volumes I, II e III). As vazão defluente na foz do rio São Francisco inferior a 1300 m3/s (ela se tornou menor muito antes da seca que começou em 2.012, conforme dados do posto de Traipu;) provoca a interiorização da interface água doce do rio/água salgada do mar tornando as água do rio impróprias para consumo humano. É o que ocorre desde então, afetando o abastecimento das comunidades ribeirinha e das cidades situadas no baixo curso do rio como Penedo e até Aracaju que capta água neste trecho do baixo curso do rio. Conforme foi visto esta vazão corresponde ao fluxo de base suprida, principalmente, pelos aquíferos do sistema São Francisco.
Comentários Finais
- •A revitalização quantitativa (e a qualitativa, também) passa pelo reflorestamento da bacia (incluindo a área da mata ciliar), pela recuperação de fontes, etc. Mas isto não é suficiente. É fundamental a manutenção da vazão de base, desde Sobradinho que deve chegar a Xingó que deve defluí-la ao baixo curso do rio, a fim de colocar a interface água doce do rio/água salgada do mar em sua localização original e recuperar a potabilidade destas águas para o abastecimento humano das comunidades ribeirinha e das cidades abastecidas por captação “a fio d’água”. Em outras palavras, atender às demandas ecológicas. Como a vazão firme de Sobradinho ascende, em condições normais de oferta, a 1856 m3/s a descarga para uso socioeconômico é, evidentemente, igual a 556 m3/s. mais do que isso provoca a mesma crise que a bacia hidrográfica do São Francis passa atualmente, assim com os seus reservatórios que, na próxima seca, podem até entrar em volume morto. A gestão atual está administrando volumes, como se os reservatórios não tivessem vazões firmes e os rios fossem sempre intermitentes, o que não se coaduna com as suas características hidroclimatológicas naturais.
Fonte
Francisco de Assis Pereira