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RUMINAÇÕES DE UM CRIADOR, PENSANDO NA BAHIA - terra do começo e síntese do Brasil
Por Manoel Dantas Vilar Filho (Manelito)
Fazenda Carnaúba – Taperoá (PB)
Março de 1998
Cada região do mundo, tem suas raças animais bem definidas. De vacas, cavalos, cabras, ovelhas e, até, galinhas. Basta ver que os nomes dessas raças incluem, sempre, uma referência geográfica do lugar onde elas foram feitas: boi Hereford, cavalo Andaluz, cabra Murciana, ovelha Morada Nova, galinha Plymouth, etc. .. Leio nisso, uma insinuante correlação dos animais com: clima, ambiente, cultura, compatibilidade... produção. Aqui no Brasil, fisiograficamente tão diferenciado e com um potencial pecuário sem similar no mundo, ainda não é bem assim. O homem, sua inteligência e seu interesse, mexeram com os animais ao longo do tempo, para obter deles, a comida e os serviços de que precisavam. Passou, assim, da ZOOLOGIA à ZOOTECNIA, mediu, pesou, batizou, definiu tipos diversos e um patrimônio natural foi se convertendo em valor de Economia e Vida, submetido a melhoramentos funcionais e às ambições da condição humana. Sempre, cada coisa a seu tempo e em seu lugar, inclusive essas ambições, que às vezes até cegam, quando pressionadas por um imediatismo de circunstância.A introdução de zebuínos no Brasil, certamente, teve o que ver com injunções dessa natureza. A partir de exemplares largados por navios na costa da Bahia, a intuição dos brasileiros foi buscar na Índia, os bovinos de que careciam, para regenerar o contingente europeu da fase colonial, que, criado para o clima temperado, de friagens e neves, só poderia, mesmo, é estranhar o calor luxuriante da Mata Atlântica e a secura do Sertão, de vegetação aberta e ervas no chão. Se gente descompensada já é ruim, imagine bicho... Os portugueses levaram a Capital de Salvador para o Sul, talvez buscando um clima mais aproximado do seu e os animais que trouxeram, que cuidassem de se adequar ao sol que não tinham e às plantas mais valentes que não conheciam. No reajuste compulsório das funções da pança, diminuíram de produção, eram muitos os pêlos que traziam e teriam que esticar a pouca pele (ou encurtar a carcaça), para dissipar o excesso de energia que pegavam pelo lombo. Em larga medida, "andaram para trás". E desse tipo de raça, certamente, não restará ninguém, quando os brasileiros assumirem criticamente o passado e a peculiaridade do País e acreditarem que o verdadeiro primeiro mundo será por aqui, na exuberância das energias renováveis dessa terra, afinal, abençoada por Deus. Os zebuínos, ao contrário, "andaram para frente". Basta comparar as fotografias dos rebanhos pioneiros com o que se vê hoje nas Fazendas e Exposições. Basta considerar que entraram no Brasil pouco mais de seis mil cabeças, contra alguns milhões de "Bos Taurus" e ver, no rebanho nacional (160 milhões), mais de 80% com corcova saliente, numa progressão, em um século, que gerou a proporção de um bovino por habitante, o que quase ninguém conseguiu.
O pessoal da OCDE (o clube dos países ricos) escreveu, num relatório deles: " ...o tesouro mundial número um é o espaço agriculturável do Brasil", que também "...detém o milagre mundial do boi de fotossíntese", quando o petróleo começou a saltar de preço e os contornos do "food-power", substituindo o "atomic-power", começaram a tomar nitidez, no jogo mediato do poder, entre as grandes potências. A conversa deles, a mim, cheira, historicamente, a usura, exploração, egoísmo, imposição, impiedade social... ou, para usar equivalentes atuais, a "competitividades" e "globalização"...Pouco me diz, como criador nordestino - brasileiro, a produção de 30 kg de leite/dia de uma vaca trancada numa baia com ventilador, o tamanho grande de um touro "importado", ou os dois quilos, em 42 dias, de um frango brancoso. Para isso, inclusive, esses animais comem comida de gente, máquinas de transformar que são, ao invés de produzir direta e saudável comida de gente. Fica meio atravessado, considerar "hormônios" e "fatores de crescimento" (? ?) como ração apropriada para animais geradores de alimento humano. O Brasil pode produzir carne, leite e pele, partindo de pastos do chão, através dos grandes ruminantes que foi buscar na Ásia, dos médios que vieram deslanados da África e das cabras que, entregues a si mesmas, adaptaram-se, em 400 anos, ao Nordeste semi-árido. Isso tudo para, em primeiro lugar, alimentar e servir um grande povo, resultante de mistura de raças, que está crescendo aqui. Misturar raças de gente, parece que é bom e perene. De vaca ou cabra, não...
Se uma vaca produzir 1.500 kg de leite em 300 dias e uma cria a cada 14 meses, produzirá uma oferta de 0,5 litro de leite por pessoa/dia (o consumo brasileiro é a metade disso), e de 50 kg de carne por pessoa/ano (o consumo brasileiro é de 26 kg ), ou seja, numa relação básica: uma vaca já será muito boa se produzir 3,6 kg de leite para cada kg de carne, de sua cria, para abate. Essa, a meu ver, seria a equação elementar do equilíbrio, da harmonia das funções, carne e leite tirados da mesma vaca, do mesmo pasto, no mesmo curral. O conceito de carne de um lado e de leite de outro, pode ter sido adequado nas latitudes nevadas; não aqui, no mundo privilegiado da fotossíntese plena.
Um sertanejo, meu vizinho, conversando analogias comigo, disse uma vez: para seguir uma boa viagem, precisa-se juntar a estrada, o carro e o combustível; cuidar só de um ou dois, não resolve: o carro depende do motor, o motor é função do combustível e a estrada, do asfalto ou esburacada. Se o asfaltamento representar a evolução e se a gasolina em vez de azul, for normal (pasto), a vaca (motor) do Brasil Tropical, será uma zebuína de função mista, para construir a bela viagem até o futuro. De outra parte, olhando a geografia da Ásia, de onde vieram nossos zebus milenares, vai se ver: no entorno do grande deserto ao norte - chuvas anuais de 100 a 400 mm, em três meses, altas temperaturas, solos duros - surgiram o SINDI e o GUZERÁ. Mais ao centro, - terras de altitude, chuvas entre 600 e 1.000 mm em onze meses do ano, florestas marginais, temperaturas amenas - fica a terra do Gir e mais para o sul - zona de rios perenes, solos fertilíssimos e verde permanente - foi onde criou-se o Nelore. Meu pai começou a criar zebus em 1934, antes de eu nascer. Vivi, desde pequeno, num curral onde Leite, João de Abreu, Cantagalo, Sêca, Guzerá, eram assuntos do dia-a-dia e meu mundo mítico de menino, povoado dessas imagens, condicionou, naturalmente, minha compreensão. Lá adiante, por morte dele, abandonei as atividades urbanas de Engenharia e Universidade e assumi, em tempo e empenho integrais, a administração das fazendas, no Carirí mais seco do NE. Se impunha, juntar às coisas da emoção e da simpatia (como é mais bonita e altiva uma vaca Guzerá erada!), variáveis concretas do trabalho, da razão. Larguei-me a perguntar, medir, lembrar, conferir, buscar, não somente as estórias e anotações do pai, como os poucos escritos de técnicos e opiniões de criadores, mundo afora. Era preciso definir tudo pragmaticamente (cacoete de engenheiro?), até porque a Fazenda passou a ser de um conjunto de pessoas, irmãos e agregados, que me delegavam o serviço e o poder. Custou muito esforço escolher. Encontrar afinal, uma convergência entre a avaliação objetiva, a beleza e a sublimação das saudades, foi ótimo: ficamos com o Guzerá. ..
Vi muita garrota Guzerá, quase caquética, no final de um ano mais seco, recuperar adiante o porte normal, me mostrando o que lia sobre "crescimento compensatório" de animais e plantas condicionados à intermitência da chuva, enquanto as mestiças de preto de vizinhos, permaneciam atrofiadas; vi as Nelores, em áreas próximas, virando cabritas e as Indubrasil da outra fazenda continuando só com os ossos e orelhas, parindo a primeira vez com 6 ou 7 anos.Fazer controle leiteiro sistemático, particular ou oficializado, foi muito importante, assim como, conferir com especialistas a diferença pré suposta da fisiologia dos animais, para converter material fibroso em carcaça, leite ou sobrevivência. Num trabalho do Congresso de Zootecnia, por fim, achei escrito: "a necessidade de energia e de proteína bruta, são menores em 20% e 28%, entre um Zebuíno e um "Bos Taurus" de mesmo peso corporal". A flora bacteriana do rúmen, difere entre um e outro. O professor Barisson Villares, eminente zootecnista brasileiro, depois de projetar dados de produção do Gir e de pesagens de Nelore (conferência na Exposição Nacional, em Brasília), arrematou: "o Guzerá tem o leite do Gir, a carne do Nelore e ...é rústico". O Zootecnista Felisberto Camargo, que foi buscar SINDI no Paquistão para produzir leite, ao lado do Guzerá JA, no clima rigoroso da Amazônia, disse (entrevista ao Suplemento Agrário, do jornal Diário de Notícias -1954) que, no futuro (o problema era, então, de quantidade),...o gado para produzir leite no Nordeste do Brasil, será o Guzerá puro" . Ver hoje, os intervalos entre partos em 15 meses e as 472 lactações já controladas (predominando novilhas), por dentro e após todas as secas daqui, com médias de 2.859 kg de leite, em 291 dias e 5,7% de matéria gorda (80% do leite vai para laticínios) ou, convertendo para comparar, 3.211 kg de leite a 4%, quando a Nova Zelândia produz - e não quer mais do que isso - 3.233 kg a 3,1 %, por vaca holandesa a pasto, me faz crer, após tanta indagação e vivência, que é esse o caminho definitivo e que o Brasil vai escapar, quando fizer uma Política Agrícola decente, apesar dos dirigentes entreguistas, do falso internacionalismo e da alienação dos últimos tempos. Por conta de tudo, de minha parte, desde que não se confunda radical com sectário, confesso que consegui a paz da radicalidade: a melhor raça para o Brasil Tropical - ainda mais se no seu pedaço de chuvas desarrumadas - produzir carne e leite para si e venda de excedentes aos outros, é o Guzerá de dupla função. Fora disso, vai ser conversa de amador, de modismo ou vaidades, transitórios, como tudo que ainda comporta aprendizagem e correção.