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Guzerá arcaico 3: depois dos tropeços, sempre se chega ao Guzerá, artigo de Manoel Dantas Vilar Filho (Manelito)
Aqui no Brasil, desse tamanhão, de flora variada e exuberante, de percalços climáticos menores, de vocação pecuária sem paralelo, bem na medida do verdadeiro primeiro mundo (que são a Ásia e o Norte da África) – onde surgiram o Homem e sua inquietação, o Cristo e o Sermão da Montanha, Gandhi e sua mansidão valente, o capim Buffel e o gado Guzerá – não há porque admitir a obscuridade da sucessão de manias futilizantes, que tanto agridem o prumo e a persistência da sensatez. Misturar raças foi bom para fazer o povo brasileiro. Mas para fazer vaca, ovelha e cabra, não. A verdade, força subterrânea ativa, alcançável ou não, é um valor e o crivo da lógica tem poder normativo, para quem almeja o saber e seus resultados.
- A “Zootecnia Oficial” ou oficiosa do Brasil, ainda não tem firmeza num corpo de doutrina e teoria próprios. É frouxa, infensa à crônica histórica da pecuária nacional e marcada, em sua essência, por desgraciosa submissão intelectual, técnica e política, que reduz muita gente do ramo a bisonhas caricaturas “globalizadas”, sem identidade. Gente demitida da faculdade de pensar, geralmente ancorada em especializações fruídas em latitudes e culturas conflitivas, longe da Índia e da África. Tudo bem, se o problema fosse estudar lá fora, no estrangeiro, e não nos currais e campos daqui mesmo, sem ficar pretendendo a reinvenção da roda.
Os simples pecuaristas ficam atônitos, confusos, quando buscam apoios institucionais para se esclarecer e prosperar. Defendem-se pelo instinto ou, brasileiramente, fazendo blague:
“...o homem falou bonito, mas não entendi o que ele quer...vamos ver se eu me ajeito na próxima vez...” – cansei de ouvir, ao final de Seminários e Fóruns de Capacitação dos Produtores, que são apresentados como bandeira prioritária – ou o biombo de refúgio – de alienadas Agências de Fomento Rural e Assistência Técnica, particularmente do Nordeste.
A rendição perniciosa começa por um entronchamento exibicionista da fala: produção rural virou “agribusiness", nas paredes pregam papeletas com “No Smoking”, as reuniões chamam-se “workshops”, o folheto é chamado “folder”, chamam cafezinho de “coffee-break”, curral virou “free-stall” e cocho para bezerro é “creep-feeding”. Só vejo a hora, procurarem “The Best Brazilian Breed” e não acharem o Guzerá, quando, depois do bimestiço, lançaram o “cruzamento industrial” – como se ao menos, fosse cruzamento “zootécnico”! Agora, o “The Best” passou a ser um tal de “Three-Cross” (Bovino Composto), que é a mistura de qualquer boi europeu com as nobres zebuínas brasileiras, depois misturados de novo. Para começar, esqueceram que a vida de um criador é curto tempo para trocar tanto de camisa e digerir essa massa de modernismos, posta no lugar das evidências, sendo 4 anos o tempo mínimo de uma geração de bovinos. Para terminar, talvez, só a vida eterna que bem merecem, como digo em momentos de pecar pela ira, imaginando-os num ciclo especial do Inferno, à mercê do patrono dos invertidos e da vulgaridade, Lúcifer.
À custa de poucos zebuínos nos pastos, o Brasil tornou-se o grande produtor de carne enxuta de colesterol e de um mundaréu de vacas, para si e para o mundo. Na outra ponta, já que separam as funções, é o maior importador de europeias especializadas... e de leite em pó! Duvido, com a ousadia que um leigo se dá, que a máquina que transforma fotossintetizados em carne, não possa transformar a mesma biomassa em leite. É uma questão de tipo e marca do motor, bastando trocar a especulação leviana pelo óbvio.
Nessas horas pecadoras e angustiosas, lá me vou reler a intervenção de Barisson Villares, ilustrado Professor Zootécnico brasileiro, no 1° Simpósio de Bovinos Leiteiros nos Trópicos (1982).
“(...) Somos, por assim dizer, filiados à escola conceitual do equilíbrio agropecuário, para a produção e exploração de bovinos mistos, nas regiões tropicais brasileiras”.
“(...) Trópicos úmidos, onde a elaboração da biomassa forrageira é, quantitativamente, incomparável...plantas que fazem a mais eficiente fotossíntese pelo ciclo do C4, não têm competidores na produção de biomassa...”.
“(...) o exame sereno, cuidadoso e racional... a temperatura ao redor da linha dos trópicos... adaptação bioclimatológica...”.
“(...) o estoque de grandes rebanhos zebuínos com habilidade leiteira, associado ao extraordinário homem brasileiro, constituem recursos naturais e humanos altamente positivos para as expectativas de melhoramento da produção leiteira”.
Nunca esqueci dele, na Exposição Nacional de Guzerá em Brasília (1988), em palestra didaticamente perfeita, onde os debatedores seríamos eu e Antônio Ernesto Salvo, que cedemos nossos tempos para ele continuar, quando, após comentar dados positivos de produção do Gir e do Nelore, encerrou, usando igualmente informações objetivas, com o enquadramento definitivo da raça: “O Guzerá tem a carne do Nelore, o leite do Gir e... ainda é rústico”.
A estrutura de pesquisa Agropecuária do Brasil, magistralmente organizada sob a forma de Centros regionais e por produtos, embora que 30 anos depois da estrutura de Extensão Rural, por obra de um “consultor” gringo, Mr. Applle, após a Segunda Guerra, já fez coisas fantásticas na área de lavouras. Na de pecuária, nem tanto. Mantiveram o “gado de corte” e “gado de leite” separados e, para o 1°, foram atrás de “cross-breedings” milagrosos. Os touros europeus, como não aguentavam namorar no campo vasto, acompanhando as vacas, pois só queriam sombra e beira d´água, atrapalharam os casalamentos.
Correndo por fora, o Nelore, que, desde sua região de origem na Índia, é bom de serviço em terra de Ph alto e verde permanente, retocado pela feliz importação da década 60, levou o país até um bovino por habitante e a exportar carne. E quando precisa digerir pasto no estágio maduro dos capins, se resolve por aqui mesmo, pegando Guzerá e fazendo Guzonel. Este é um cruzamento entre duas raças definidas, de transição, e não uma mistura descaracterizadora de tipos, até que o Guzerá de dupla função chegue, quando a demografia se adensar no Centro Oeste e o Nelore desbravador seguir adiante.
Para o leite, começaram (1977) querendo fazer uma “raça” nova, o MLB, num pacote decalcado da AMZ da Austrália, terra seca porém de colonização inglesa. Tentaram sem a intuição criativa de brasileiro na partida, sem Joãos de Abreu, e chegaram gloriosamente até “Mico do CNPGL” (lembra do Monkey norteamericano?), um 5/8 de holandês vermelho canadense e 3/8 de Guzerá, numa 3ª geração de misturas que vai dar no que todo sertanejo sabe bem. As zebuínas selecionadas no Brasil, às centenas, já superavam, muito, a herdabilidade e a produção das 44 “Micas” avaliadas e as proclamadas DLPs, do Catálogo da empresa de sêmen, para onde este pitoresco primata foi mandado. Curiosamente, mico, aqui, tem outro significado, além de sagui: alguém está pagando um mico! Ai, o jeito foi colocar tiras paralelas de amarelo e verde, na folha, contraposta às sugestivas vermelhas e azuis de mesmo formato que estavam lá. As tiras indicavam claramente o cordão sanitário de isolamento entre o boi desajeitado e as acrescentadas três vacas Guzerá, Sindi e Gir, acima de 3.500 kg de leite, derivadas de uma genética profunda, melhorada entre nós mesmos, (agora, sim, escrevo melhorada sem aspas), entre nós, criadores do Brasil, e uma lista grande de outras produções, puras Guzerás, de mesmo nível. Num espaço que sobrava – desabafo da banda cangaceira do meu sangue – pregou o recorte de dois rifles, um verde e outro amarelo, um mirando o macaco e o outro, a macaqueação de quem, por decisão de justiça braba, tem merecimento para levar bala!
As etapas seguintes – Zebu Leiteiro e Búfalo Leiteiro – foram substituídas por “pesquisas” com canadenses e americanas de 30 kg/dia, de nomes compridos tipo “Watts Punk KLB42E Funk”, que não há vaqueiro nem dono que acerte chamar, hospedadas naqueles currais arrevesados, com ar condicionado onde precisasse, cujos custos de alimentação e veterinária, repetidamente, todo incauto indefeso corre deles, logo que se dá conta. A “American Holstein Society” bate palmas, porque deverão ocorrer novas vindas, já que, chegando aqui, elas tapam o paridor por autodefesa e o tempo a passar é longo, até que se desenterre a lucidez, a fé e o patriotismo crítico, desse monte de enganação. Mudaram as raças a que deveriam ser pesquisadas e promovidas em bases técnicas, para vacas pré-fixadas, monogastrizadas, já prontas, quando teriam de mudar, já que seriam elas, o clima, o senso elementar, o homem, o pasto e o país.
- Em 1980, o Governo de Pernambuco, engodado por assessoria técnica plantando bananeira, financiou, a 3.000 dólares + frete a importação de cosmopolitas (??) holando-canadense-argentinas, 200 novilhas prenhes, para o interior despovoado pela seca de 79. Pariram a cria da barriga, natimortas em 1/3 e mais 1/3 logo depois. Ao final da outra seca, 1983, ninguém tinha parido novamente, até porque, por terrível desconforto e desequilíbrio... morreram. No rastro, o prejuízo e a desilusão de sertanejos, ainda acusados da culpa pela mortandade, permanecendo desorientados pelo curto-circuito da cultura (sic) que lhes tinham enfiado goela abaixo.
- Em 1994, ignorando, aí duas lições do passado, “para recompor o rebanho pernambucano, dizimado pela seca de 93”, a legenda da ampla fotografia de 1ª página, do jornal do Comércio, continuava...”desembarcaram ontem, no Aeroporto dos Guararapes, 119 novilhas holandesas do Canadá, de alta performance para a produção de leite”.
Financiadas oficialmente, com o bafejo, no corpo da notícia, de “insuspeitáveis pareceres técnicos”, no choque térmico da descida, finaram-se vinte e uma, que seriam desembarcadas primeiro, conforme a foto, de uma defunta bem flagrada de pernas pro ar, no meio, entre o bojo do avião em cima e a carreta boiadeira estacionada em baixo. Logo ali, ao pé do Morro símbolo e glória da Restauração Pernambucana! Não deu pra segurar...protestei por essa falta de respeito às “mulheres de Tejucupapo”, trazendo de volta, sob a forma quadrúpede, os expulsados há 300 anos, por elas, a pontapé de traseiro e puxavante de cabelos, à falta de outras armas.
Três meses depois, só restavam cinco, e nova importação da mesma fonte, agora enriquecida com Pardo Suíças Hitleriana...da Alemanha frígida, tinha acontecido. No terraço de casa, onde ouvia sem ter pedido, o relatório, fiquei sabendo que, das novas 50 (novos 5.000 dólares/cabeça) só haviam morrido 8, porque estavam bem alimentadas e assistidas corretamente, no “estágio de imunização e...aclimatação” (!?), num conjunto só, em Garanhuns, por uma equipe de 36 técnicos.
Quase um veterinário por vaca, ventiladores e 20 kg de concentrados por vaca/dia...é “zootecnia” demais pros meus juízos. À saída deles, corri pro curral e depois, pro Escritório, carente de refrigério na mente e paz no espírito. Fui olhar as Guzerás, e reler a Conferência do respeitado técnico argentino Ricardo Ayerza, na Reunião da SBZ (1991) aqui na Paraíba, e depois rezar pra Deus, invocando sua misericórdia:
“...a energia requerida pelo gado indiano é 20% menor que a requerida para raças de Bos taurus”.
“...a proteína bruta requerida para manter vacas Bos taurus é 28% maior, em comparação com o Bos indicus”.
E que citava seu professor Jorge Molina, do livro “A Nova Conquista do Deserto” (1979), acerca da colonização do Chaco, de seu país:
“...as raças inglesas deram bons resultados na pradaria dos pampas. No Gran Chaco, não têm aplicação nenhuma, salvo, como temos visto em algumas granjas da zona, se tenham os touros alimentados com alfafa e mantidos na sombra”.
“...quanto mais se mestiçavam com raças europeias, tanto menor era a produção pecuária. Em muitos casos se chegava, inclusive, a 35% de produção”.
“Todos os plantéis de produção de carne utilizando grãos de cereais, aptos para seu consumo direto pelo homem, se revelaram totalmente ineficientes do ponto de vista do fluxo de energia que participava no processo...”
“Em Israel, um informe do Instituto Volcani (1975) indicou a total ineficiência energética da pecuária israelense. Por cada kilocaloria no produto final obtido, se estavam gastando 2,4 kilocalorias só de combustível...despropósito impossível de continuar com a alta dos preços do petróleo...”
“...temos de redescobrir a produção de carne e leite mediante a utilização de pastos e não de grãos de cereais...”
“Segundo Borlaugh – prêmio Nobel da Paz – 30% dos cereais do mundo são consumidos para produzir carne...”
“...o mesmo Dr. Borlaugh diz que, se se eliminar o animal como intermediário, em escala mundial, o problema da alimentação podia ser resolvido em tempo prudencial...”
Também destacou alegações escritas por Bonsma, que a mim dizem, sempre, muito:
“A seleção é nossa ferramenta mais poderosa e é chegado o momento em que devemos regionalizar nossa produção ganadera sobre bases ecológicas...animais que possam suportar altas temperaturas atmosféricas...imprescindível selecionar gado com pelagem suave, lisa, de cor clara...”
“...a meta da criação animal é produzir a máxima quantidade por unidade de superfície e somente será um eixo, através da completa adaptabilidade e uma seleção por eficiência funcional e eficiente conversão dos alimentos...
“...a relação entre o animal e seu meio ambiente deve ser compreendida muito bem.”
Estudaram a fundo e vieram buscar Zebu no Brasil, considerando o problema da raça a criar, “componente técnica fundamental” para o atraso ou a evolução possível, para converter “...el Gran Chaco em la carniceria del mundo”. (O Chaco, geograficamente, tem a mesma dimensão que o Semi-Árido nordestino).
Outras lições incluindo heresias
- Precisei reler, também, as entrevistas de Felisberto Camargo, 1952 e 1954, brilhante e sério zootecnista brasileiro, dirigindo o IPEAN – Instituto de Pesquisas Agropecuária do Norte, no Pará, que, de tal modo conscientizado pela experiência em seu ofício, condenava as vacas tristonhas, como o caminho para ter leite e carne naquele mundão futuroso da Amazônia.
Havendo já repassado à Universidade do Pará, 40 fêmeas Guzerá-JA para pesquisa e difusão, voltava da Ásia trazendo 31 Sindis, “gado nacional do Paquistão”, originado ao norte, no Afeganistão, material genético diferenciado, por ser destinado ao Governo do Brasil. Explicava essas duas iniciativas e sua insistência, senão bendita teimosia, para chegar em Fernando de Noronha, dentro do avião com o gado. Vencida a quarentena exigida de dois anos (!?), transferiu o rebanho para Belterra e, só aí, dignamente, requereu sua aposentadoria do público serviço e deu, na saída, a segunda entrevista, ao “Mundo Agrário” do Diário de Notícias, contando as coisas essenciais.
Fora punido porque, já no Paquistão, não cumpriu a contra-ordem do Ministro suspendendo a compra e depois, fez-se a luz, foi condecorado por Ministro posterior, porque trouxe. Encontrou, para nós, por esse caminho de aspereza e desencontro, mais um zebuíno milenar de ainda menor volume aparente e poderosa eficiência: precoce, prolífico, bom de leite, rústico, de ossos finos e carcaça rica. Vitória do Brasil real...Viva o povo brasileiro!
- Eu já tinha sabido porque a raça Chianina, seca, pernalta, grandona, selecionada pelos italianos para tração pesada nos Alpes e, por isso, arquivada pelo motor a diesel, de repente voltou a se expandir: o Brasil passou a compra-la avidamente. Vi muito o rastro de Chianina nas coxas batidas e na altura súbita de muitas “Nelores” em Exposições. A medicina havia descoberto mais sobre o colesterol ruim e as raças inglesas de corte, abaseadas por seleção, tiveram que enxugar a gordura entremeada nas carnes, “levantando” as carcaças da proximidade do chão. O conceito de “carne boa”, de repente, foi trocado.
Os arautos da nova circunstância, parcos de critério, sem lembrar que os zebus não precisavam disso porque já tinham, naturalmente, a carne enxuta, com a gordura menor e apenas sobreposta, proclamaram a “modernity” e danaram-se a sungar as canelas do gado: “boi alto”, dorso e anca na mesma horizontal e peso absoluto crescente, para estourar, com ossos pesadões e banha, as tabelas das pistas de julgamento. O rendimento em carne, a fertilidade e a produção de leite para a cria desabaram; a parte consciente que safou-se dessa, vem corrigindo o desvio. A perna alta da vez tinha a mesma natureza de conversa oca, que a orelha grande de antanho...O subdesenvolvimento é um fenômeno integral!
Mas, até aí, ainda entendi: “...o Nelore é criado para corte e o primeiro mundo (sic) do patrono fez na dele, eu, que sou “moderno” e “de vanguarda” tenho de fazer na minha...”; esquecendo a lição do experiente Professor Bonsma, da África do Sul, numa conferência em São Paulo (1982), onde demonstrou que um Zebu e um Bos taurus diferem radicalmente, desde as narinas até a ponta da cauda, por fora e por dentro.
- O que não pude entender até hoje, foi o surto herege posterior de “Guzerá moderno”, que passei a ver e ouvir sob elogios. Lá se foi ele, conduzindo a reboque daquele Neloroso, “campeão” de pistas internacionais e efêmeras, sem qualquer necessidade, até porque esse – se era pra imitar dissonâncias alheias sem pensar – já recuava do equívoco engendrado e o Guzerá, em seu lugar, já tinha tudo: era bastante eficiente no seu porte racional, na área (e não somente a linha) dorso-lombar ampla, garupa inclinada para fecundar e parir fácil, coxões cheios e afastados para caber bom úbere, harmônico, enfim, de categoria plena e própria. Fizeram compostos anômalos: sem lombo largo, sem leite, sem chifres, neo-orelhudo, ossudão, disforme, com o andar e jeito de cavalo trupizupe, de fenótipo confuso e genótipo diluído, porém...pesados. Muito pesados, aliás, na balança vivo, nos neo-umbigos e no novo estilo, sem refinamento de linhas, sem a nobreza da raça, modernozo, brega, parecendo coisa de Miami e não da Índia.
A dificuldade para um novo criador distinguir entre o fortuito bem cantado e a verdade permanente, perturba a administração do conflito entre uma vaidade e a razão – que emergirá um dia – e mais estraga do que ajuda a expandir a raça, deixando mais longe o ponto de equilíbrio entre a racionalidade e o...orgulho. Mesmo o orgulho sendo considerado o pai dos pecados, é fatal: quem se envolve com o Guzerá, chega nele, embora convertido num fator de construção. Ficar na vaidade menor é coisa de diletante, é ruim: não é positiva, ilude o portador, confunde o neófito e cansa a paciência dos outros.
Outras alegrias: a sustentação da persistência e a elaboração da perenidade
- De volta ao pavilhão onde assistimos a ordenha de Guzerás sem farmacologia, dando até 21 kg e onde uma novilha muito expressiva da raça, precoce e dócil por natureza, sem maior trato, já convertia pro balde 12 kg de leite, meus dois filhos Joaquim e Daniel, comentavam, intrigados, o julgamento que acabavam de assistir – o primeiro a que prestavam atenção. A Campeã teve peso absoluto de 699 kg e a reservada, 698, ambas com ria ao pé. Eles, considerando o resultado trocado, pois achavam bem melhor a segunda e tendo ouvido que essa tonelagem era resultante do embaiamento permanente, desde bezerras, e a adição no cocho de até 18 kg/dia de concentrados e que “assim é que se tem de fazer, para entrar nas pistas”, estranhavam a magrelice e pêlos grossos dos bezerros, apesar do farelo, e estavam confusos para discernir entre o bom e o melhor, entre o que era certo ou errado. Certamente surpresos com a “filosofia” e o contraste entre o que viram/ouviram e as cocheiras da Carnaúba, já cogitavam de me supor um sovina com as vacas, desatualizado na vontade e na “ciência” da criação.
Roosevelt Garcia, o guzeratista dono da novilha boa e da acuidade, do humor refinado e da riqueza intelectual que se conhece, foi em socorro deles: “Quem decide mesmo é a balança, por isso a diferença na premiação. Aquela conversa do rapaz de chapéu texano é mero discurso de abertura; é uma só, banal, anódina, descorada pra qualquer categoria de idade e qualquer raça. É jogo de arquibancadas e não pro curral. Reparem até no detalhe, nem mais é chamado de juiz, aquele que pergunta, explica, pondera, ensina e, por fim, dá a sentença; agora já é classificado de jurado. Por analogia com os Tribunais, os jurados são apenas palpiteiros, quem sabe distinguir é o outro; deixem isso pra lá e atentem para a ação construtiva implícita nesses baldes cheios e nessas vacas relativas, sem exagero de tamanho, costelas cobertas e bezerros gordos, sem patacas de banha no corpo e sem jeitão de macho, comendo feno e concentrado leve”.
Outro companheiro, ao lado, comentou: a humanidade não começou agora e o que é feito hoje com o apelido enfático do moderno, não é, necessariamente, superior ao de ontem, chamado por isso, de antigo, arcaico. Muitas vezes, sem qualquer saudosismo, o clássico, o “arcaico”, é melhor, é perene. Foi o que faltava pra Roosevelt arrematar: “O Guzerá arcaico é que vale a pena, é, por exemplo, o meu, o de seu Pai, o de Woden Madruga, o de João de Abreu e de Mohenjo-Daro, o de quem crê em Deus e olha adiante, a partir do que já houve, do ontem, para seguir no seu trabalho, do qual depende para viver”.
Gostei dessa trama toda e fiquei chamando o Guzerá x Guzerá, de Arcaico e tenho passado a estória adiante, com aceitações reflexivas.
A Joaquim e Daniel, de volta à casa, dei pra ler uma parte do livro “Estudos sobre Seleção do Gado”, do professor Bonsma, formulador da teoria da Eficiência Funcional de Bovinos, chamado a fazer palestras no mundo inteiro, onde trata da influência do meio – a luz, a temperatura, a radiação solar, a latitude, a acidez do chão, o vento, a altitude, etc. sobre os gados.
“...Em minha concepção da produção animal, o homem é o fator ambiental mais importante...
“...se o homem muda os métodos devido a fatores esternos à fazenda e perde o incentivo para criar melhores animais, o programa de melhoramento degenerará...é uma faceta da produção pecuária dos Estados Unidos que me preocupa. Muitos criadores...não necessitam obter utilidades de suas fazendas, já que fazem dinheiro em outros campos, do comércio e da indústria...participam da produção ganadera porque a consideram um símbolo de sua posição social e financeira. Assim, muitas das iniciativas que começam sendo um honesto esforço para disseminar sementais superiores têm degenerado, até chegar a converter-se em simples acontecimentos sociais, onde se demonstra o poder material e se comercia através da posição social e da amizade...”.
Agora há pouco, eles vieram me mostrar, muito animados, o artigo “A cara do Nelore”, na revista Agropecuária Tropical, do tradicional criador Orestes Prata Tibery Júnior:
“..que o sucesso não seja passageiro...É preciso que esteja alicerçado na pureza racial que está sendo descaracterizada...na harmonia da carcaça que está sendo menos importante que o super-peso, na fertilidade que está sendo valorizada pela prenhes precoce...na grande maioria feita artificialmente”...
“...será que os mais pesados são os melhores?...Nelore não pode seguir os métodos de seleção das raças europeias...verdadeiro “arrastão tecnológico”...As mães dos grandes raçadores não são as vaconas pesadas e grosseiras, e sim as femininas caracterizadas e harmoniosas”...
“...Já erramos feio com os pernaltas que atrasaram a nossa seleção. Agora erramos com o exagero do peso e da prenhes precoce...o Nelore já tem peso suficiente...vamos cuidar da boa distribuição da carcaça...o padrão racial existe e tem que ser respeitado”...
“...Nelore tem que ter cara. A cara do Nelore é a mesma de sua origem, de animais com histórico e carga genética...não pode caminhar para virar cara de Brahman”...
Apelo do Brasil real. Ele está também ai. Viva ele!
- Ouvi há poucos dias, na palestra de um perplexo assessor espanhol da FAO, para conservação de recursos genéticos animais, temporariamente no Brasil, que os belgas ativaram a criação de BBB porque...o Brasil estava pedindo compra. O “charme” desse boizanzão bundoso, é não saber mais andar e as vacas só parirem por cesarianas. Assim é de lascar; é doidice demais da banda caricata do Brasil... Morras a esse estado de espírito globoso, pseudo integrador dos bichos e povos do mundo!!
- O último guzeratista que acompanhei, pela televisão, foi o leilão da Exposição de Governador Valadares, agora em julho. Virgílio Melo e Vânia Pena, do Centro Brasileiro de Melhoramento do Guzerá, haviam me dito que esperavam aquela mostra ser uma espécie de divisor de águas para a raça e seu mercado. A meu ver, foi. A campeã do torneio (29 kg/dia), era uma Guzerá arcaica espetacular, com 15 anos de idade! Ela e as demais, um grupo grande de boas leiteiras, liras bem assentadas na canga, mansas, vivazes, foram arrematadas a bom preço. Quando surgiam umas mochoilas, as freudianas como eu chamo, grosseiras, longas orelhas, viradas pra frente, pescoço curto esticado pro chão e olhar feroz, os vaqueiros subiam na cerca...e os lances esfriavam.
Nosso estimado companheiro, Benício Cavalcanti, criador de entusiasmo e visão imensas, recém Presidente da ACGB, telefonou, vibrante: Eu vi lá que o Guzerá voltou a convencer...tinha carcaça ampla, tinha leite, tinha temperamento, tinha raça e deu preço. Quem não se enquadrava, valeu bem menos. Copiar Brahman ou repetir o desencontro histórico dos orelhudos, é um retrocesso, não tem sentido nenhum. É uma questão, até, de patriotismo.
Lá fui eu de novo...viva o Brasil real, viva o povo brasileiro!!
- Não se deve negar, a ninguém, o exercício sagrado do livre arbítrio ou o valor de discordâncias iluminadoras, senão, no extremo da conversão desses consentimentos, em leviandade ou discórdia.
Há quem “simpatize” e queira outro boi x vaca, ou, subvertendo as referências, atropela virtudes imemoriais, plasmadas nos cinco mil anos desde Mohenjo-Daro, que fixaram a rusticidade, a harmonia entre forma e tamanho, a prepotência genética, a beleza fidalga, a fertilidade e a evolução multifuncional do Kankrej x Guzerá, misturando-o com outras coisas, em troca de volumes forjados, canelas de subférteis, suspensão dos chifres para dissimulações, ou o que mais seja, desse viés sem razões fundamentadas. Um anúncio recente dizendo “Guzerá, o Zebu com carcaça de europeu”, é uma contrafação, uma calúnia zootécnica, uma besteira; Guzerá tem que ter carcaça de Zebu Guzerá...até porque é melhor!!
Fui inteiramente convencido de que, se o lugar for o mundo ensolarado, sem friagens do chão, de fotossíntese plena ou secura intercalada, se a vontade é enxergar o Brasil tropical produzindo para o seu povo, alimentos qualificados até nos custos, e, mais que tudo, o Nordeste pecuário do Brasil, o melhor caminho e não outro, é o da expansão do Guzerá de verdade – compatível, puro, comedor de folhagens, porte médio e expressivo, bom de leite e de lombo, firme de Genética, sem crises de aclimação.
Ou, no horizonte de uma pecuária ímpar, aquele que carrega consigo o essencial e acessórios valiosos: convergência e perenidade das variáveis zootécnicas primárias, integração de funções produtivas, melhor aproveitador de pastagens maduras, antecipador do futuro e, pelo lado subjetivo do Bem, indutor da contemplação da Beleza, aumentando a alegria de viver e, por tudo, à valentia interior que ajuda a nos defendermos de mistificações subversivas, como a panaceia da “globalização competitiva”, servindo de desculpa para tudo que é erro, tudo quanto é feio e de mau gosto, que converte o circunstancial em negativismo e que exprime, por si mesma, um conceito falso.
O Guzerá verdadeiro, “arcaico”, na Índia também chamado Talabad, que significa “o gado do lugar”, pode romper muitas limitações da produção rural e de satisfação humana; ele é tecnicamente apropriado, politicamente racional, economicamente bastante e emocionalmente saudável, capaz de resistir a espasmos coloniais. E o melhor cruzamento será, pois, o Guzerá...com Guzerá. Os fundamentos biológicos e o equilíbrio funcional desse elemento extraordinário, não podem ser destratados. É uma grosseria com Chuí, Domadora e Energia, é desconsiderar a Civilização que se cria no mundo dos Trópicos, e até, uma falta de respeito à grandeza do Deus Shiva, que concebeu o Kankrej em louvor ao boi Nandi, a divindade.
- Talvez tenha, nesses assuntos de meu entorno da vida de trabalho, me transformado num obcecado, recorrente, angustiado, mas, sempre um esperançoso. Minha relação com o Sertão é intensa, funda e inevitável. Há que se tornar Brasil como referência para o Brasil, numa síntese entre a lógica cartesiana, o potencial claro e a consciência histórica, para consolidar a Nação brasileira e, dentro dela, mais que tudo, o seu Nordeste das águas desarrumadas, da Civilização do Couro” recriada em novas bases tecnológicas.
Ainda tenho um sonho: é ver esse Nordeste sóbrio, semeado de capins Buffel e suas leguminosas nativas, Palma, Guzerá, Cabras Ibero-brasileiras de múltipla função e ovelhas deslanadas não enegrecidas por ignorância ou engodo e, por via de consequência, de gente feliz, capaz de preservar a intrínseca alergia do povo brasileiro.
O outro sonho é que o Guzerá, o gado do lugar, pela sua amplitude e sinergia, seja nomeado “gado nacional do Brasil”, o que proponho aqui.
Indiciado, ou vai preso na etapa seguinte, ou é absolvido e volta pra casa; o depoimento que dá, às vezes é decisivo.
Depois de agora, se me contrariarem, não acho outro jeito: vou preservar, sem sofismas, a cortesia da clareza, inspirado num cabreiro sertanejo, que veio escolher bodes e disse, contente por isso, que as conversas aqui, sobre raças animais, eram firmadas, não tinham “se” nem “talvez”, e vou buscar a paz, imitando um personagem de Ariano Suassuna que, para sair de um falatório sem prumo e rumo, atalhou a discussão, dividindo a humanidade em dois grupos: os que concordavam com ele...e os equivocados. O filho de Deus, conterrâneo pelo Cariri de Nazaré, me perdoará do pecado eventual, seja pelo tamanho desse depoimento ou pela soberba implícita no final dele.
[1][1] Dr. Manelito é engenheiro e criador. Atualmente Diretor Técnico do Instituto do Semi-árido, em Campina Grande PB. (Maio de 2004)
Extraído do texto “Guzerá em 3 tempos”.
Item 3: “O institucional bambo: a Luz, alguma malcriação, tristezas e seus antídotos”.