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A busca de elementos biológicos e conhecimentos apropriados
Manoel Dantas Vilar Filho – Engenheiro e Pecuarista
À GUISA DE INTRODUÇÃO:
A seca e a extravagância de seu destratamento
É muito desgastante ter de fazer as coisas apesar de e não há graça nenhuma em se sentir num batalhão, com o passo desencontrado. Por isso, falando sobre esses assuntos da Seca, corro o risco de ficar enfático ou maçante. Se o for, me perdoem; é um exagero natural dos crentes, mesclando a impaciência de quem resiste ao desencanto. Sei que mantenho, lá por dentro, a humildade dos apaixonados e que, enfim, devo ter os defeitos e as virtudes da Raça a que pertenço: a dos nordestinos temperados na teimosia contra a dificuldade, escorados na fidelidade a si mesmos e ao seu mundo cheio de despojamentos.
O que aprendi foi em alguns livros e através de continuada observação, na reflexão e na ação dedicadas exclusivamente ao Cariri das secas, onde a dimensão do real aniquila qualquer frivolidade, até por cima do sofrimento sem medida e sem consolo - além da fé - do seu povo.
Vou escrever como quem tenta contar de experiência vivida, pensando em acrescer alguma informação a outro que, como eu, até por lealdade às suas raízes, queira envolver o tempo da mente e da carcaça, com esse mundo áspero, bonito, possível e mal tratado da zona seca. Daí, talvez, o tom pessoal mais acentuado de algum trecho, sobretudo quando não consigo esconder travos de rigor e do pecado da ira, que, por mais que não quisesse, foram aderindo à minha expectativa. Coisa de convertido em monomaníaco, que procura se compensar dessa condição, se valendo da cortesia da clareza e da vantagem de não atropelar a mania de outros.
Devo chamar esse texto de sumário das veredas - longas e cheias de voltas, como o texto - por onde fui me aconselhando, nesses trinta e tantos anos, desde que larguei as atividades urbanas de Engenharia e Universidade e assumi, por morte desavisada do Pai, em tempo e empenho integrais, o cuidado da Fazenda, sem considerar isso uma condenação. Nessa contramão do roteiro clássico da migração dos nordestinos, desenvolvi com o semi-árido uma relação intensa, funda e inevitável, e, tanto melhore a nitidez dos caminhos, cresce uma forma de tristeza, ao digerir o contraste entre o viável de fazer e o que se faz, sendo a lógica, como é, a ética do intelecto.
Especialistas classificam as Secas em meteorológicas - periódicas e típicas de cada região, hidrológicas - baixas precipitações eventuais em qualquer clima e sócio-econômicas - resultantes da associação entre perda de bens de produção e qualquer das duas anteriores.
A Seca é uma característica normal e recorrente do Clima, diferindo de outros riscos naturais por sua lenta maturação, sem a ostensividade repentina das enchentes ou dos terremotos. É o mais complexo e o menos compreendido deles, afetando maior número de pessoas que qualquer outro. Difere da aridez, que é situação plena, e seus efeitos vão se acumulando progressivamente, perdurando anos após sua finalização. Não é mais assunto da Defesa Civil e da Caridade Pública, em boa parte do mundo onde ocorre.
Aqui, ainda lhe tratam como uma espécie de azar seu de um pedaço do Brasil, onde persistentes fatalistas teimam em morar e para quem, tecnocratas e políticos, seduzidos por uma posição intelectual mais fácil e de fazer mais simples, se limitam a masturbar-se na molhação artificial da terra para pensar em produção, indiferentes ao conflito entre o mundo real e esse comodismo do cérebro. Ainda não resolveram o problema de água para beber o uso primordial e sem sucedâneo que água tem e que é de solução sabida e accessível.
A intempestividade das chuvas do NE e seu regime distributivo, caracterizam uma região de clima singular, caprichoso, não compatível com equações de 1° grau na sua abordagem e, por conseqüência, com plantas e animais que sejam lineares nas suas condições para crescer e produzir. E nem com gente que tenha como baliza de pensamento, um cartesianismo derivado de climas regulares e coisas mansas.
Um Ensaio estatístico desenvolvido no CTA (Carlos Girardi e Luís Teixeira) em 1978, evidenciou dois tipos básicos de Secas no NE, além dos oito ou nove meses sem chover, normais, de cada ano: um período radical, isolado (ciclo de 13 anos), inserido num tempo relativamente chuvoso (1866, 1915, 1942 e, depois, 1993), e outro, um encadeamento de anos brabos - as, até então, chamadas Grandes Secas - em intervalos aproximados de 26 anos, onde dois são particularmente ruins e o número do pior grava na lembrança regional a dureza do conjunto. Os ciclos foram: 1873/78, com secas máximas em 1877 e 1878; o segundo em 1900/07, com as maiores em 1900 e 1907; um outro 1927/33, com o pico em 1931 e 1932 e o seguinte, 1951/58, com o pior em 1953 e 1958. O último, o imediatamente previsto pelo CTA, foi de 1979 a 1983, com as maiores secas em 1981 e 1983. Há poucos dias, incluindo os dados de 1978 até 2000 e afinando o tratamento matemático da nova série, demarcaram um novo período mínimo a partir de 2003.
No Cariri Velho da Paraíba (1/3 do território estadual), quando há variação dessas probabilidades é, sempre, para pior, além dos que seriam anos atípicos da série, como 1898, 1919 e depois 1998, que foram de terríveis secas gerais. Em Taperoá, as medições desde 1911, indicam: média anual de 584 mm, mínimo de 97 e máximo de 2030 mm, distribuídos em 42 dias/ano com alguma chuva, sendo apenas 14 com chuvas maiores que 10 mm. Às vezes há somente 5 dias/ano com chuvas maiores que 10 e caem aguaceiros de 150/200 mm numa mesma noite. Além disso, o 1° dia do tempo molhado, oscila desde 9 de dezembro do ano anterior até 29 de abril e o final é, também, volúvel. Creio que essa é a realidade ambiental básica de todo o semi-árido, peculiarizando essa semi-aridez, o que, entre outras coisas, desvaloriza o decalcado conceito de altura anual de chuva como padrão para avaliar o bom, o ruim, e o que fazer. No centro-sul da França, por exemplo, os seus 600 mm anuais, caem em 183 dias.
A leitura política do par de curvas (desenhos e outros comentários anexos) que desenham a análise e a projeção da série estatística (1849-1978) do CTA, revela curiosas circunstâncias e constatações de muita valia para se entender o que já houve e porque continua sem haver providências sistemáticas - como a Seca é - para acudir, efetivamente, o problema e o povo:
Cada estio maior é quem gerou, depois de acontecido, alguma iniciativa de Governo em relação às secas, sempre em tom peremptório e pretensão definitiva;
Essa formulação espasmódica é deslembrada ou esvaziada, assim que volta a chover, até que nova seca venha emocionalizar as conversas, quando se improvisa outra, sob a mesma retórica, a mesma inconsistência e a mesma transitoriedade, ainda hoje;
A visão hidraulicista (água como fator de produção faltante/excludente) da pobreza nordestina, permeou todas elas, à exceção da última - a SUDENE em 1959 - que, por sua vez, já não podia mais nada no ciclo seguinte (1979 - 83) o qual, pioneiramente, não gerou nenhuma proposta, mesmo que fosse para ser, em seguida desprezada, como nos outros;
A presença de algum nordestino assumido em função saliente no longínquo Governo Central foi, coincidentemente, decisiva para que se tentasse alguma coisa. A iniciativa veio sempre de lá. Nenhum governante nordestino incluiu, até hoje, nos seus planos de mandato, se ocupar assiduamente com a Seca, apesar da assiduidade com que ela ocorre, sendo, a partir desse ensaio e da evolução posterior do conhecimento (El Nino, La Nina; oscilação de temperaturas do Atlântico, etc); até, previsíveis;
No horizonte da tecnologia já disponível, os anos isolados são malvados, mas não matam. As Grandes Secas - hoje Ciclos - é que cortam fundo, desorganizam estruturas de produção incipientes e vão protelando à geração seguinte o papel de encontrar caminhos efetivos de viver em sintonia com a Natureza desse mundo;
O intervalo de 26 anos seria um prazo razoável, porque daria um tempo. Por outro lado e diferentemente da neve regular do Hemisfério Norte, é um complicador do processo de análise, memória e fixação de tecnologia e procedimentos, apropriados para os 100 milhões de hectares do semi-árido. A maioria dos nordestinos que não migraram como alternativa, vive de forma adulta, apenas um desses ciclos e a compreensão da zona seca só se completa no espírito e na coragem, depois que se atravessa um pedaço desses. É muito ruim ficar ruminando um próximo....sozinho...., olhando para os descompromissos e a anemia institucional de mecanismos de apoio, desde o ensino/pesquisa até o crédito rural, na outra ponta. Um segundo tombo, pegará quem eventualmente o viva, quando já é menor o ânimo e a vontade.... é se ocupar com os netos. E as pessoas que vão informar e tomar as decisões, lá do litoral molhado ou, hoje, de Brasília, são, normalmente, outras;
Resta, para quem alcançou alguma compreensão e vai ter de encarar a danação seguinte, uma certa angústia, a perplexidade de admitir, ad nausea, que tudo, essencialmente, vai se fazer como sempre, vai ser um rabisco da mesma caricatura de atitude e ação:
A tentativa simplória de salvação biológica das pessoas ("frentes de emergência" ou "frentes de trabalho" ou "frentes produtivas") confundindo-se ação humanitária com solidariedade, enquanto se relegam os rebanhos à inanição progressiva, robustecendo um equívoco secular.
A frustração das lavouras temporárias, os simulacros de trabalho e distribuição de óbolos, que conformam cada vez mais os "flagelados", com a pobreza e o menosprezo político;
A seleção de quem fica aqui continuando a ser feita pelo êxodo e uma nova geração de teimosos devendo recomeçar praticamente tudo;
As coisas sendo improvisadas por quem vive longe e no molhado, sem sangue sertanejo na veia e, ao contrário do Crucificado da Galiléia, achando que o NE das águas desarrumadas é ruim e não faz sentido. E, sem a menor cerimônia, atropelando o Padre Vieira, quando diz num dos Sermões, "... o discurso dos que não viram são palavras, o discurso dos que viram, são profecias. .."
Como bem disse Ariano Suassuna, na Palestra abrindo o "Grito da Seca" (Lages - RN, 1998) dirigindo-se aos Ministros, Técnicos e demais Autoridades presentes, junto a 3 mil produtores do Sertão do Cabugí: " ...alguns avistam a Seca, poucos enxergam a Seca".
NOTAS, REFLEXÕES, ANALOGIAS -Tentativa de articulação.
Não temos 1\3 do tempo sob friagens radicais e neves espessas. A fotossíntese exuberante do mundo tropical - mesmo o menos chovido - aponta à prevalência das energias renováveis, para máquinas e animais, dando razão ao Químico nordestino Sebastião Simões Filho, quando escreveu "não seremos a Civilização dos hidrocarbonetos fósseis, mas a Civilização dos hidratos de carbono". Comida e energia são, sabidamente, os dois grandes "gargalos" da vida possível nesse planeta.
O Imperador europeu Carlos V (1552), falou e disse: "... a coisa mais importante depois da criação do mundo foi a descoberta das Índias." No "s" desse plural, suponho que estava o Brasil, que, bem depois, já se juntou com a Índia, (grupo dos Países "não alinhados"), onde foi nascer gado Guzerá, Ghandi, e capim Buffel. Há quem diga que um legítimo 1° mundo, começaria por aí.....
Euclides da Cunha, em Os Sertões, reclama da "proverbial indiferença com que nos volvemos às coisas dessa terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos".
A construção da nacionalidade brasileira muito deveu a Frei Caneca (Confederação do Equador), a Antônio Conselheiro (guerra de Canudos) e a José Pereira (guerrilha de Princesa-PB), eventos nordestinos, certamente fixados no inconsciente coletivo, que poderão contribuir para a resistência ao internacionalismo caricatural e à grotesca pasteurização "globalizada " da Cultura e da Economia do Brasil recente e fundamentar o caminho - tendo o Brasil como referência para o Brasil e a própria semi-aridez do NE para o NE - da harmonia interna e da prosperidade desse grande País, como um todo.
O Nordeste gerou receitas de exportação que, através de intencionais ajustes de política cambial, ajudaram pesadamente no financiamento da industrialização do Sudeste, fato econômico básico para conceituar a priorização política dos desequilíbrios regionais.
O estadista paraibano João Suassuna (1926), culto e amante do sertão, alertava numa Mensagem de Governo que ". ..somos um povo sugestionado pela política inferior dos decalques. .." .
O grande economista John Kenneth Galbraith, indagado, em entrevista em São Paulo (1998) sobre a "globalização", afirmou: "Não uso essa expressão, ela exprime um conceito falso. Fomos nós, americanos, que a inventamos para dissimular nossa invasão econômica a outros países".
A ação humanitária é uma coisa bonita e muitas vezes é quem ganha corpo quando se acentuam as desigualdades e a exclusão, lançando um severo olhar crítico sobre meios e ações ineficazes. Mas não é a mesma coisa que solidariedade. Solidariedade é transformar em emprego a ajuda aos desempregados. O altivo e popular baião de Luiz Gonzaga expressa bem isso, reclamando da esmola a um homem sadio, matando-o de vergonha e vício.
Existe um triste conflito entre as realidades da zona seca e os mecanismos institucionais de lidar com elas, desde o ensino / pesquisa até a política de produção e assistência.
O Nordeste é seco. O inverno é um pequeno intervalo de tempo entre dois estios, que, às vezes, se emendam. A grande vocação das terras secas é a Pecuária. Por mais óbvia que seja, quase sempre, é preciso repetir uma mesma idéia até cansar. Há uma dramática não decisão em relação à seca do NE. Os moradores do semi-árido são credores do Brasil.
A Universidade Agrária nordestina, nunca teve o semi-árido (80% da área e metade da população) e suas secas, como tema de inspiração, fundação e trabalho. Na Bahia foi o Cacau (chegaram à CEPLAC, referência mundial do Cacau), em Pernambuco, a Cana-de-açúcar (o Estado liderou a chamada Indústria Canavieira até bem pouco tempo) , no Ceará, foi o setor de Pesca Marítima que permitiu sua elevação a Centrode Ciências Agrárias, na Reforma universitária de 1970. Na Paraíba - chamando-se, até, Escola de Agronomia do Nordeste - foi instalada no micro clima temperado de altitude do Brejo de Areia, "quando nada para casar as moças de minha terra com bons rapazes vindos de fora" segundo justificação do seu criador, nos anos 30. Somente há pouco tempo foi criada uma Escola de Agronomia em Mossoró - RN, calcada em currículo comum e ainda sem firmeza na sua perspectiva para a zona seca. Junto a ela, a "Fundação Guimarães Duque" se ocupa com a edição/reedição de Bibliografia sobre a seca. É uma semente.
A Sudene (1961), buscando "vocações verdadeiras e formar quadros adequados", ofereceu Bolsas de Estudo, desde o 1° ano do Curso Científico até o final do Superior, exclusivamente para quem quisesse fazer Agronomia ou Veterinária, programa extinto após sua pulverização, entre as distorções que ela sofreu. Pelo menos as diferenças regionais de nosso Grande País, estavam, também aí, implicitamente consideradas.
O Brasil montou o sistema de Extensão Rural, trinta anos antes da estrutura de Pesquisa Agropecuária (1975). O primeiro, por decalque de modelo exógeno. A segunda considerando, criativamente, a diversidade fisiográfica do País. Talvez essa inversão de método e prioridade, tenha o que ver com a pouca disponibilidade e difusão de tecnologias, com a consistência que regiões não convencionais precisavam.
Discutindo a proximidade do "food power" prevalecer no concerto das grandes potências do mundo, num documento enfático da OCDE (1983) , está escrito: " ...entre os tesouros mundiais, destacamos o espaço agriculturável do Brasil. .." e, mais, " ..que poderá produzir a carne mais barata do mundo, porque detém o milagre mundial do boi de fotossíntese ..."A conversa deles, a mim, cheira historicamente, a exploração, egoísmo, imposição, impiedade social ...ou, para usar equivalentes atuais, a "competitividade" e "mercado globalizado" .
Uma publicação da UNESCO ressalta " ...a sugestiva correlação entre o desenvolvimento das principais civilizações da antiguidade e as zonas áridas ou semi-áridas", comentando " ...a estranha fascinação que exercem as terras secas sobre o Homem". Essa condição foi, certamente, considerada pelo o Cristo, num simbolismo revelador, indo nascer no Cariri de Nazaré, em vez de na Babilônia artificial (a mesma do Apocalipse), ou na Mesopotâmia, das "civilizações do regadio", que sumiram na poeira do tempo.
Entre os trópicos não há desertos plenos; só além deles, onde o frio queima, pro norte e pro sul. O semi-árido brasileiro é a única região seca inter-tropical no mundo, com a maior precipitação total e com regime não regular de chuva.
"Mais grave é o equívoco do homem, enganado pela generosidade dos anos regulares, tentar desenvolver uma economia dependente de água". "A variedade de climas é um fator importante, na estratégia global de um país. O semi-árido irregular pode e deve ser aproveitado como ele é." diz Sitônio Pinto, da estirpe sertaneja do Território livre de Princesa, em seu recente e rico livro, "Dom Sertão, Dona Seca - Princípios de Geogerência ".
A Bíblia - elo entre o Homem e a Divindade - incorpora, em certo sentido, a crônica da vida de um povo no deserto. Fala em cabra 130 vezes e as ovelhas permeiam seus textos. Não fala em "canteirinho de tomate irrigado" e ensina a Vida, quando nada, no horizonte de uma pobreza honrada.
Marcus Catão, tribuno romano, no ano 184, em sua obra "De Agriculturae", consultado sobre qual o melhor emprego das terras no trabalho rural, respondeu: 1° - Proveitosa criação de gados, 2° - Criação de gados com lucros modestos, 3° - Criação de Gados sem lucros e 4° - o Aramento de terras
Na Introdução, ao livro do Ing° Ricardo Ayerza -(El Buffel Grass - Utilidad y Manejo de uma Promisória Gramínea -1981) : "O homem, em sua ignorância, tem avançado sobre as terras áridas e semi-áridas, utilizando, a miúdo, conceitos e técnicas aplicáveis somente em zonas que dispõem de adequadas quantidades de água de chuva para os cultivos. ...Assim, o homem utilizou o arado, indiscriminadamente. Assim, o homem empregou el riego indiscriminadamente. Se, mediante a utilização dessa gramínea, originária de campos tropicais secos, se incorporarem eficientemente terras marginais à produção animal, sem ter que recorrer à custosa rega artificial e nem à desastrosa aradura anual, o propósito desse livro se cumprirá".
Na Caatinga aberta do semi-árido nordestino, o sol batendo no chão, cresce, ao cair chuva, um extrato herbáceo de capins temporários e leguminosas perenes (rasteiras e arbustivas) da maior qualidade. Isso permitiu fazer sua colonização, mais que noutro lugar, nas patas de ruminantes, que marcaram o desbravamento, a vida e a cultura do Povo: o nome de rios e cidades - Rio dos Currais, Pau dos Ferros, Currais Novos, etc. -as comidas, as cantigas e festas populares - Carne de Sol ou de Ceará, Bumba meu Boi, Paçoca, Boi Bumbá, Vaquejada, "Boi do Piauí" para acalentar menino, etc. e, por fim, a Civilização do Couro, que marcou uma fase rica da Economia sertaneja.
Avaliação de especialistas mais sóbrios, considerando solo e água, estima o uso da terra do semi-árido na proporção de:
Área irrigável -1,5%
Lavoura de sequeiro -4,8%
Caatinga (Pecuária) -93,7%
Tecnologia e procedimentos para a pequena parte irrigável, são bem dominados e seguem, acompanhando a evolução natural de equipamentos, produzindo frutas diferenciadas, dependentes apenas de meios financeiros maiores que o sistema requer e de técnicas de manipulação de perecíveis.
A lavoura no sequeiro, classicamente, algodão, milho e feijão, isolados ou em consórcio, tem sido a base oficial da política (??) de produção rural do Nordeste seco. A expansão da Petroquímica ( 1960/70) e a colocação do Bicudo ( 1984/85), desnudaram radicalmente a dimensão lotérica dessa alternativa. As lavouras xerófilas sugeridas por Guimarães Duque continuam, apenas, uma referência botânica da flora regional.
A Pecuária da Caatinga, ainda numa postura extrativista, demanda de 15 a 30 ha por cabeça, que, mesmo nessa dimensão relativa, apresenta enorme vulnerabilidade aos anos de seca exacerbada isolados, ou , pior ainda, sucessivos, desmanchando rebanhos; ou produzindo contrações cumulativas na produtividade do que conseguiu, simplesmente, escapar vivo. Mesmo assim, os sertanejos do campo dizem: "a gente só se confia mesmo, em vaca, cabra ou ovelha; o resto. ...Deus é quem sabe. "
Guimarães Duque, em Conferência feita em 1972, para Ministros, Estado Maior das Forças Armadas e Governadores nordestinos, na CNI: "As secas parciais que surgem, provocam levas e levas de flagelados. A causa é que 3, 4 ou 5 milhões de famílias, lá na Caatinga, continuam a plantar milho, feijão e arroz, em regiões naturais sujeitas às secas. E esse mal continuará enquanto não for cortada a causa, enquanto adotarmos uma lavoura anti-ecológica, contra a Natureza". ".....A filosofia antiga que predominava, era aquela de molhar o Nordeste, modificar o ambiente para o homem se adaptar a ele. A história, a vida, os trabalhos, os estudos, mostraram o que é preciso: é preparar o homem para ele bem se adaptar àquela região como ela é, e fazer ali uma civilização com as cores do ambiente".
Ensaio de um estudioso rural europeu ( 1991) dizia: "na Normandia, um hectare de pasto suporta 1,5 toneladas/ano de ruminantes. No Sahel, esse mesmo hectare suporta apenas 17 kg. Ao longo do "arco" desenhado entre esses dois extremos é possível montar uma economia saudável, desde que se considere os limites de cada condição e o tipo de animal ".
Um trabalho do zootecnista inglês T. R. Preston designado "Estratégia para Produção de Bovinos nos Trópicos" (1977) afirma: "... os trópicos, longe de serem inadequados para o desenvolvimento pecuário, oferecem possibilidades de rendimento por unidade de área e de viabilidade econômica que superam em muito as perspectivas atuais e mesmo futuras dos países de clima temperado". E depois, destacando a expressão tecnologia apropriada, acrescenta: "....a natureza dos alimentos para animais, o tipo de bovinos e o sistema de exploração diferem materialmente dos que estamos acostumados a ver nos países de clima temperado. "Adiante, comentando "...as crenças ensinadas nos compêndios de Zootecnia sobre a especialização de bovinos para produzir leite ou carne", propõe que se confie "... sobretudo na função do rúmen" e não se ponham os animais a competir com o homem pelo consumo de cereais e, por fim, "... já que necessitamos tanto de carne como de leite, a base de toda a estratégia pecuária racional, é considerar as duas produções conjuntamente. ..", fundamentando a genética da dupla função, a partir de uma relação equilibrada da demanda por carne e leite e dos vegetais dos trópicos.
O professor Jorge Molina, num livro abrangente sobre o Chaco, "Una nueva conquista deI desierto - incorporacion de tierras marginales ao proceso productivo argentino" (1980) , afirma: "....de acordo com nossa experiência, quanto mais seca a região, sempre que se disponha de água e pasto, tanto maior é a produção pecuária...;" e "... há que redescobrir a produção de carne mediante a utilização de pastos e não de grãos de cereais".
Do também argentino Dr. Norberto Hás, prefaciando o livro técnico do Ingº Ricardo Ayerza, já citado: ".....o Buffel Grass ...se difundindo em diversas regiões áridas do mundo, permite incorporar um aproveitamento ganadero rentável, onde nunca fora considerado possível fazê-lo. Parcelas desse pasto são capazes de alimentar mais de uma cabeça por hectare/ano, produzindo mais de 100 kg de carne, em campos onde se requeriam 10 a 20 hectares para sustentar uma cabeça, antes dessa incorporação...." "...convertendo vastos semidesertos em regiões conquistadas para a civilização ...". Nos EE.UU, o Departamento de Conservação de Solos promoveu (1946) intensas introduções desse capim, além do que já existia no Texas, como forragem.
PALMA, levada pelos sertanejos à canonização - palma santa - foi trazida para o NE por Delmiro Gouveia no século 19 e pelos Lundgren, para Serra Talhada, na seca de 1932, nenhum dos dois tendo o menor interesse por vacas ou cabras. Certamente foram persuadidos por saber do espanto dos espanhóis com a beleza do manto que Montezuma entregou ritualmente a Cortez no momento da rendição e com o colorido das roupas das mulheres aztecas, e pensavam no carmim das cochonilas da palma para bem tingir os panos de suas fábricas. Nem tão pouco sabiam que com o nome de Figo da Índia ou Figo da Arábia, seus frutos têm fama de coisa fina nas sobremesas do mundo.
Nos supermercados de Nova York, São Paulo e, recentemente, num de Campina Grande, são oferecidos, importados da Itália, da Espanha ou dos EE.UU. Seus preços dobram na entressafra de lá, que coincide com a frutificação aqui, graças ao diferencial de temperatura que a palma exige para soltar os frutos. Como laranja ou limão, alface ou repolho, ou qualquer planta de comer, há tipos vários, como frutífera ou como verdura.
Em vez de preto funebroso, mensagem negativa e palavra inventada, no símbolo nacional da bandeira do México, consta uma bela folha de palma. Como forrageira, tem a mesma digestibilidade que silagem de milho, a comida de vaca granfina dos climas nevados e há variedades compatíveis com uma zona seca de baixa altitude e maior calor. Faltou estudarem palma corretamente e construir, também, com ela, uma fruticultura nos tabuleiros do Cariri, prescindindo de canais de irrigação e bombeamento de água.
Os brasileiros, munidos de pura intuição, foram buscar, pioneiramente, na Ásia Tropical, os bovinos que careciam para regenerar o contingente europeu da fase inicial, gerando, a partir de 6 mil e poucos exemplares, a relação de um bovino por habitante -o que poucos conseguiram - num universo de 160 milhões de cabeças, onde predominam fortemente os zebuínos de carne magra e calor dissipado, sobre os milhões de Bos taurus que continuamos importando "do reino", talvez por psicose colonial renitente, ou enganoso conceito de produtividade .
Em 1903 os australianos vieram buscar no Nordeste seco, as leguminosas (estilosantes, feijão de rolinha e, depois, jureminha) para agregar aos capins perenes que colheram (1870 !!) na Índia e no norte da África, compondo o alicerce de sustentação de sua eficiente Pecuária. Hidrologicamente são mais pobres do que nós.
Foi no NE que ocorreu a formação das únicas raças nacionais de ovelhas, as rústicas deslanadas, de pele e prolificidade superlativas, hoje intensamente procuradas para povoar os campos do Sudeste e do Norte onde não haja geadas.
Ao abandono tecno-oficial completo, inclusive pelos fazendeiros maiores -talvez herança colonial somada à defesa das lotéricas lavouras temporárias - 90% das cabras brasileiras se fixaram por si, entre a Bahia e o Piauí secos, como que ensinando que ali era o seu lugar e era bom. A seleção natural, negativa do ponto de vista da função leiteira, foi geneticamente valiosa para rusticidade, qualidade da pele e eficiência reprodutiva.
O professor e pesquisador sul-africano Jan C. Bonsma em conferência no Brasil {1982), sugeriu: "Sejam impiedosos no descarte seletivo para o melhoramento do gado, quanto a: 1°) adaptabilidade às condições locais; 2°) fertilidade; 3°) precocidade; 4°) conversão de alimentos; 5°) docilidade...
Cada região do mundo tem suas raças animais bem definidas. De vacas, cavalos, cabras, ovelhas e, até, galinhas. Basta ver que os nomes dessas raças incluem, sempre, uma referência ao lugar onde elas se formaram: boi Hereford, cavalo Andaluz, cabra Murciana, ovelha Morada Nova, galinha Plymouth, etc.. Leio nisso uma insinuante correlação dos animais com: clima, ambiente, cultura, compatibilidade... produção.
Do mesmo livro de Jorge Molina: "...Estamos na presença de uma mudança fundamental em toda a criação de bovinos da região. A introdução de sangue Zebu (levado do Brasil) pode ser o fator mais importante para se ter pleno êxito no Gran Chaco".
Em palestra de técnico brilhante, na XXVIII Reunião Anual da S.B.Z. (1991) consta: "... a energia requerida pelo gado indiano é 20% menor que a requerida para raças de Bos Taurus" e, depois "... os requerimentos de proteína bruta para manter vacas, são 28% menores em Bos Indicus, em comparação com Bos Taurus ...".
Ainda do livro sobre o Chaco argentino: "existe um Relatório muito importante, do ano de 1956, que se refere às possibilidades concretas de utilização agropecuária da região semi-árida do Chaco ...que não foi a tradicional exposição de lugares comuns da burocracia nacional ou internacional. ...A Cultura Santiagueña; desde suas origens, na conquista espanhola, esteve vinculada ao regadio. As enormes extensões do sequeiro, haviam recebido muito pouca atenção dos distintos governos. .." .
" ...Estamos em condições de afirmar que todo plano puramente agrícola nestas regiões, está, de antemão, condenado ao fracasso. O risco das colheitas é demasiado grande para ser a base da exploração. Há que ter em conta que todas as colonizações anteriormente ensaiadas, se baseavam em lavouras de forma quase exclusiva. ...A província de Santiago deI Estero lançou a primeira colonização ganadera do País, superando o velho conceito da colonização puramente agrícola. O Gran Chaco GuaIamba, pode e deve ser transformado na carniceria del mundo".
No México, um programa de fomento financia a formação anual de 200 mil hectares de capim BuffeI, já tendo mais de 1 milhão de hectares só no Estado de Sonora. No Estado de Queensland - Austrália há mais de 2 milhões de hectares, parcialmente consorciados com leguminosas nordestinas e um outro capim perene, UrocIoa, trazido da África Seca.
O Brasil, fisiograficamente tão diverso, é um país onde a definição das regras do Crédito Rural nunca foi uma atribuição do seu Ministério da Agricultura. E como Política Agrícola, pela sazonal idade intrínseca dessa atividade complexa, eleva o financiamento rural a um "insumo de produção", do mesmo quilate que a chuva, o fertilizante e o melhoramento de sementais, tem nos restado trabalhar à mercê do arbítrio de burocratas urbanóides, que nem sequer entraram numa Fazenda para saber como funciona.
O Código de Hamurabi (2 mil anos A.C.) no capítulo sobre Crédito Rural, pune a usura e proíbe o financismo, impondo, entre outras coisas, a equivalência-produto no resgate das contas.
Não há agropecuária sem crédito rural em nenhum lugar do mundo. E os desvios naturais dos climas, obrigam financiamentos especiais, emergenciais, operados temporaneamente, no interesse de produtores e....de quem empresta. Ouço muito que "o problema não é só crédito". Aprendi que "Política Agrícola" é, essencialmente, Crédito Rural. Além daí o que parece haver é muito academicismo, é tecnocrata maniqueísta subvertendo prioridades e o desenvolvimento, por alienação, da arte de explicar porque não se faz. É muito penoso aturar, quase sempre, a erudição da insignificância e a exaltação do secundário.
Em 1920/21, no curso da grande experiência geral de socialização dos meios de produção, a terra de propriedade estatal como tudo o mais, e repartida com os agricultores russos (92% da população vivia no campo) , a primeira reivindicação que faziam a Lenine nas reuniões intensivas de proselitismo e persuasão, era. ...crédito rural diferenciado.
Além da lei de 1958 e da Resolução 147 do Banco Central, de 1970, houve outros espasmos, tentando estabelecer uma Política parcial de Financiamentos rurais, para o NE: em 1974, o Polonordeste; em 1975, o Projeto Sertanejo; em 1979, o Prohidro + Crédito de Emergência; em 1984, o "Novo Polonordeste"; em 1985, a mandado do Banco Mundial, o PAPP; em 1986, o "Projeto São Vicente"; em 1987, o "Projeto Padre Cícero" e na Constituição de 1988, foi recriado o "Fundo das Secas" (os mesmos 3%, só que rateados com o Norte e o Centro-Oeste) , com o nome de Fundo Constitucional de Investimentos - FNE, e a obrigatoriedade de aplicação no semi-árido, de metade do que lhe couber .
Todos esses Programas foram muito efêmeros, vitimados por enormes distorções e descontinuidades administrativas, e o último opera sob regras alienadas e anti-éticas do BNB, autofagicamente contraposto ao objetivo para o qual foi concebido e criado.
Nos países desenvolvidos já não se discute mais Crédito Rural - é assunto resolvido lá nos começos. Técnicos e Governantes já se ocupam é com a expansão do tipo e do volume de SUBSÍDIOS da Política Agrícola que praticam. Os daqui nos acusam de tropicais ineficientes e cobram, como solução, aprender a disputar a cru e sob todos os tributos, o "mercado". Para os refrões das prioridades proclamadas ("capacitação dos produtores", "comercialização pela internete", "competitividade", "primeiro mundo", "mercado externo", etc.) e tratar com esses presunçosos arautos da "modernidade", a baladeira de Davi é pouco.....
A "ekipeconômica " brasileira, desprezando um contingente de 170 milhões de bocas como motivação, manda o Presidente Fernando Henrique esbravejar - e ele foi - na televisão contra esses procedimentos de fora. Eles até poderão reduzir algum subsídio às exportações, trocando-os pelos "subsídios transferidos" de quem importa comida de lá, como tem feito o Brasil recente, à custa do empobrecimento agudo dos agricultores brasileiros. Para a produção interna, os subsídios são crescentes e já cobrem, até, "riscos de mercado". E têm consciência de que a produção agropecuária responde, direta e indiretamente, pela grande parte dos empregos em suas respectivas Economias .
Um estudo do BNDES calculou a geração de empregos com um investimento de 1 milhão de reais: doze (12) vagas na indústria contra duzentos e noventa e sete (297) no campo. O manejo intensificado dos gados, só ele, mais do que dobra a necessidade de pessoal, por exemplo, quando a seca exacerba; enquanto rurícolas se vêem obrigados a alistar-se nas "Frentes", abandonando sua moradia, seu ambiente de trabalho, sua ocupação positiva do tempo, depois que seus animais de cria também terem sido dizimados por fome, ou pela venda a qualquer preço antes da morte, para reposição. ..."quando Deus quiser".
Como referência quantitativa, posso contar da seca cruel de 1993: ao final, já "financiado" pela generosidade de parentes e amigos, cheguei a ocupar na Fazenda 232 pessoas, acolhidas e pagas muito além da condição das, então, Frentes de Trabalho, e consegui ampliar semeaduras e preservar os gados, trazendo bagaço de cana do litoral. Na de 1998, exaurido de outros meios e sob o receio de novo constrangimento, reduzi tudo ao mínimo incompressível, para manter somente 28. No ano seguinte, nasceram apenas um terço das crias que deveriam ter nascido, enquanto as matrizes se recuperavam da magreza a que foram condenadas. Vira uma bola de neve...
Sob o regime das liberal-sociológicas "Frentes Produtivas", o rebanho dessa região, mal se refazendo da seca anterior, restou reduzido a pouco mais de 10% do que havia antes. Filas de caminhões traziam milho de Goiás e enchiam-se, na Feira de Campina Grande, de carcaças caquéticas pagas a preço de cabritos, para o retorno.
Existe uma enorme diferença entre aritmética financeira de agiota e uma leitura legítima de Economia, para não excluir a preservação da vida e do potencial produtivo de todo um povo que trabalha firme, numa região natural de equações sinuosas e nem por isso, menos verdadeiras.
Há importantes tarefas passíveis e necessárias de serem feitas, no horizonte do trabalho rural da zona seca, apesar da menor chuva em um ano, mantendo os sertanejos ocupados decentemente, respeitando sua dignidade e reforçando condições adequadas de convivência com o estio futuro: plantio de forrageiras perenes e dotadas de xerofilismo, manutenção de cercas e pastos já formados, abertura de poços e cacimbões para garantir a água do uso sem sucedâneo, etc. E, mais que tudo, o manejo dos rebanhos, que poderiam ser mantidos produzindo e não apenas vivos, com um financiamento racional do que já se sabe fazer, como acontece, prontamente, na Austrália, nos EE.UU e África do Sul, para citar exemplos que sei, preservando economicamente a estrutura básica da produção possível.
CRENÇAS E CONTAS
Um País pode crescer com o aumento do seu PIB. Uma Nação só cresce com um caráter, uma lealdade ao seu passado, uma luta pela sua identidade. Uma expressão de Ariano Suassuna falando sobre Artes, bem completaria essa afirmação, dizendo que só assim "o que vier de fora, em vez de uma influência que nos descaracteriza e esmaga, passa a ser uma incorporação que nos enriquece". A identidade e o caráter das plantas, dos bichos, do chão da terra e a forma de trabalhar nele, pedem consideração análoga para que possam prestar.
Sou da geração que fez a cabeça quando os desequilíbrios regionais eram uma prioridade política de nosso grande País; tempo que levou à instalação da Capital no Centro-oeste, à concepção da Sudene, à expansão das estradas pro norte, o Brasil deixando de ser o mapa do Chile rebatido na borda do Atlântico e a auto-estima crescente do povo trazendo o País do futuro para a Nação do presente, incluindo sinceramente o Nordeste.
A impressão atual é que revogaram esse quadro, que essa cultura foi apagada da memória do Governo do Brasil e que o NE só existe a partir da ênfase do jornal da TV Globo sobre o agravamento de suas restrições físicas. O "mercado" não irá nunca, evidentemente, cuidar de equilíbrios nacionais e, muito menos, se interessar por flagelados pelas secas nordestinas.
A intervenção do Estado é fundamental e indispensável na gerência do processo de pensar e fazer, incorporando a perenidade aos planejamentos, criando instituições que sobrevivam aos indivíduos, afinadas com as realidades - boas e más - da região da seca.
Guimarães Rosa pela boca de um personagem seu, afirma que: "o sertão é uma longa espera", consolando-se com a alegação de que ". ..coragem é matéria de outras praxes, é crer nos impossíveis" e que "...se o sertão está dentro da gente, não estranha que o sertão esteja em toda parte, que o sertão seja o mundo ...". Talvez devamos às paixões as maiores vantagens do espírito; os pensamentos vindos do coração é que nos ensinaram a razão. Até na hora de perder a resignação e a tolerância.
Fazer complicado, muita gente sabe e, em larga medida, o que falta é ter a audácia das coisas simples. A vida auto-sustentada é possível aqui, de forma bastante e limpa, na chuva e na estiagem, a partir do trabalho com elementos biológicos apropriados - dos reinos vegetal e animal - compatíveis com o ambiente e portadores da genética do crescimento compensatório que os harmoniza com a intermitência das chuvas. Do 3° reino, algum resultado poderá vir pela exploração de minérios, onde houver; da água é historicamente difícil e é pouca.
O problema está no semi, do clima. A variação de leitura que a semi-aridez permite, ora leva à desconsideração da primeira metade da palavra e trazem camelos para o Ceará, ora a outra metade vira verdinha e trazem capim Pangola da bacia de um rio perene do extremo sul e vacas holandesas pro Piauí ou pro Seridó. A umidade remanescente que havia e a areia do Saara que não tinha, mataram os camelos de pneumonia e feias feridas nos cascos. As outras, sufocadas de sol, desregulam a reprodução e mugem longamente - como de banzo - com saudades do Canadá ou da Alemanha, mesmo sob ventiladores e outros artifícios de revogação do clima.
Trabalhar a terra no semi-árido, só com plantas perenes, de preferência nativas da região e delas há muitas. Só a germinação/crescimento inicial das sementes, entre a primeira chuva da estação (de quem não se sabe o dia) e a variação da Segunda (idem), reduz à metade a chance ou o tamanho da colheita. Ter de repetir a semeadura uma, duas, três vezes, onde o inverno é tão curto, é uma impropriedade. Jogar essa loteria uma vez, com os vegetais permanentes, já é muito. A necessidade de re-semeadura, é uma constante anual nas lavourinhas que a "Agronomia " oficializada consagra aos produtores. A "Zootecnia", por sua vez, não faz menos: sob um pseudo cosmopolitismo dos animais e com um deslumbre pobre diante do "P.O.I". de produções aritmeticamente avaliadas, esquece que a Natureza mantém sábios caprichos de relativismo e equilíbrio, e não se cansa de pedir a Hemisférios inversos, vacas, cabras, ovelhas e frangos, com os quais, vendendo equívoco e alienação a criadores, espertos agentes dessa anomalia, ganham descuidados dinheiros, em cada modismo lançado ou relançado.
O Brasil, com o Nordeste seco bem incluído tem a vocação e o destino de ser, também, a grande Nação agropecuária, sobretudo pecuária, do mundo. Basta neutralizar mentes coloniais e ter a dignidade de estabelecer uma política pública de financiamentos rurais, calcada em parâmetros tecnicamente corretos e ajustados para cada região fisiográfica. Há que exumar Hamurabi e aplicar seus códigos aos híbridos de agiotagem e pobreza de espírito que cuidam (??) do Crédito Rural no País.
A leitura crítica do passado, buscando o benefício da sabedoria retrospectiva, escutando os que viram e digerindo o que ia vendo, num processo pouco linear e muitas vezes penoso de errar e corrigir, no vai e vem das veredas que se abriam, me permitiram sobreviver aqui até agora e algumas resultantes que anoto adiante, sedimentaram a minha convicção sobre um caminho que possibilita acalentar o sonho de um dia saber do Sertão seco convertido, também do ponto de vista da produção e da prosperidade, num belo pedaço do Brasil. Sem precisar vender a alma ao diabo, até pela fidelidade às raízes mais fundas da condição e da cultura desse meu mundo.
Equipei-me de tratores e arados e multipliquei por cinco a área dos roçados, embora sem descuidar as estórias do Pai de que era fundamental preservar o gado do pagamento dos financiamentos de custeio agrícola, que por isso, ele só tomava (Banco do Brasil), equivalentes à metade da área cultivada.
Logo pude aprender que quanto maior o roçado aqui, maiores o risco e o desassossego, e entendi que aquele recuo do capital de giro à meia lavoura, evitava o crédito rural funcionando ao contrário, ajudando a Seca a dizimar rebanhos, pela via de uma plantação definitivamente ineficiente, como vi acontecer com inúmeros produtores, sobretudo os de menor escala, num processo cruel que terminava na venda de suas glebas, na migração e viver numa saudade corrosiva do seu mundo original.
Confirmamos o Guzerá, de carne enxuta e leite rico, portador da condição do "crescimento compensatório", que o instinto zootécnico de meu pai fora buscar em 1934, na Fazenda Itaoca, de João de Abreu, Cantagalo RJ, definindo, depois de muito indagar, a raça bovina adequada para esse mundo peculiar.
Acertamos - puro acaso - trazer da Austrália ( 1972) a melhor variedade dos capins Buffel e o capim africano Urocloa, a partir de quem adotamos para reserva forrageira a prática bíblica da fenação, reduzindo a tecnologia oficial, então única, da ensilagem dos grossos capins exigentes em água, a um complemento eventual das possibilidades daqui. A multiplicação do potencial de uso da terra, por conta dessas gramíneas perenes, permitiu agregar o Sindi - o outro Zebuíno de função mista dos pré-desertos da Ásia, de fantástica adequação produtiva.
Passamos a catar leguminosas nativas e multiplicá-las, (algumas são perenes e outras, bi-anuais) , depois de ver fenecerem as importadas de latitudes assimétricas, em cada modismo decalcado. Fenar áreas cultivadas com essas plantas é de extrema pertinência e baixo custo de reserva protéica para complementar dietas animais no período normal de estio.
Expandimos a criação das ovelhas, encontrando no tipo Barriga-Negra, o mais rústico e prolífico das deslanadas maiores. Por derivação, elas produziram as Cariris, menores de porte e ainda mais parideiras: 1,9 borregos por parto, 2,9 crias\ovelha\ano. Mais recentemente conseguimos um grupo de Cabugis - ocorrência natural disseminada no sertão seco, de vigor e cobertura de carcaça incríveis - completando com as Morada Novas um rebanho em paz com o ambiente, com os custos de criação e com uma diversidade genética desejável.
Por aproximações sucessivas, erros e consertos, encontramos o viés de preservar a genética das cabras pirenaicas nativizadas (Parda Sertaneja, Moxotó, Graúna, Serrana Azul), regenerando sua função leiteira com um repasse leve de reprodutores homólogos, europeus de hoje, ou com seleção dentro dos agrupamentos. Alcançamos índices de 1,8 Kg/dia de leite e 1,7 cabritos/parto, média de 12 anos, somando as virtudes adquiridas pelas cabras soltas na caatinga, com a produção leiteira preservada de suas ancestrais européias, fusão batizada por Ariano - parceiro fundamental desde a idéia até hoje - de criação de "Cabras Ibero-brasileiras, vermelhas, brancas, negras e azuis".
A prioridade convencionada dos alimentos para os animais é o seu "teor de proteína", que condiciona tudo, desde a aspiração dos criadores até os financiamentos oficiais, só para concentrados protéicos, quando existem. Aprendi que o "gargalo" do manejo alimentar aqui é o volumoso da ração, sobretudo quando a seca aperta e, mais, que o Guzerá e o Sindi, dotados de flora ruminal ainda mais rica em bactérias celulolíticas, convertem magistralmente o nitrogênio inorgânico de talos e folhas em proteína assimilável. Foi o que faltava para correr atrás do bagaço de cana do litoral, juntando-o à uréia, como "seguro" da pecuária nos períodos secos, aprofundando a integração secular entre o Sertão e o Brejo paraibanos, com suas trocas de queijos, carne de sol, farinha, cachaça e rapadura. O aperfeiçoamento do uso do bagaço, hidrolizando-o por accessível via química (cal hidratada), consolidou a tecnologia básica de criar no semi-árido, faltando só a essencial política de financiamento específica, para dar consistência econômica e material ao sistema de produção complementado.
Um colega fraterno, Newton Monteiro, torcedor da Queijaria que montamos, uma vez trouxe da França como presente, dois frascos de "Fines Erves de Provence" para temperar leite de cabra, usadas para distinguir o perfume e o paladar dos queijos, além de enriquecê-los como alimento. Folhinhas anêmicas, de lugar fraco de sais e sol, desgostaram a nós dois e foram substituídas galhardamente pelas nobres ervas marmeleiro, cumaru, alfazema braba e aroeira, que além do complemento convencional, são boas para o trato respiratório, a garganta inflamada, têm cheiro de infância sertaneja e. ...cura maus olhados, segundo competência informada por vaqueiros vizinhos.
A criação das cabras sucedeu, com grande vantagem o penar e o risco das lavouras lotéricas, fechando a definição da atividade da Fazenda; Pecuária de ruminantes, centrada em recursos naturais apropriados, integrada por Bovinos, Ovinos e Caprinos, de múltipla função.
Quando dependíamos fortemente dos roçados, trabalhavam aqui 9 (nove) famílias. Com a radical pecuarização do sistema de produção passaram a trabalhar 21 {vinte e uma). As taxas de desfrute dos rebanhos ultrapassam as melhores do mundo, apesar dos contratempos bem claros pro meu entendimento. Esses dados, os únicos que pude saber objetivamente, ajudam a desmentir a falácia da condenação a Pecuária, comum entre pouco avisados e levianos analistas sociais do semi-árido.
A mim e a outros informados sobre zonas secas, só fazem exaltar a cobrança de uma Política Pública decente que leve o NE peculiar a recriar a Civilização do Couro em novas bases, mediante tecnologias próprias e a implantação de instrumentos de redução da incerteza no trabalho na terra, criando uma condição qualificada de vida, frugal como a medida do Sertão, mas suficiente para acabar com a estocagem aqui de "mão de obra barata" para usufruto alheio, estancar a migração compulsória e preservar a alegria de viver, além da dignidade dos sertanejos quando a Seca apertar.
Taperoá, Julho de 2001
Palestra no "VII Seminário sobre Viabilização do Semi-árido"10 e 11 de julho 2001 – Recife – PE
ANEXO
SECAS E CICLOS SECOS -ENSAIO DO CTA -1978- Comentários
.1873 -1879:
.Introduz a seca como problema de governo (1874) no Brasil: por articulação do Eng. militar Beaurepaire Rohan - que veio a ser Presidente da Província da Paraíba - o Imperador Pedro II, empalmou movimento humanitário do Clube de Engenharia e mandou ( "vendo até o último brilhante da Coroa, mas nenhum nordestino morrerá mais de fome ou de sede" ) para o Ceará o 1° grupo técnico (engenheiros civis e geólogos, nenhum especialista agrário) para estudar o problema do NE. Toda a "zoada " resultou em iniciar a construção de dois açudes - o do CEDRO no Ceará e o de POÇOS na Paraíba, e a tentativa de "traçar uma malha de canais de irrigação" como solução permanente. A construção dos açudes foi logo interrompida e só vieram a ser concluídos, já na República, dentro do outro ciclo seco, por ação do Vice-Presidente Rosa e Silva, quando assumiu a chefia do Governo Campos Sales, que fora a Londres. ..renegociar a dívida externa.
O traçado da malha foi prejudicado pela precariedade dos mapas disponíveis e pela intervenção do Engº Vicente Rodrigues que, no 4º dia consecutivo de tentativas topográficas, indagou. ..pela a água....., atordoando a reunião. Morreram 500 mil nordestinos de fome, em 1877. Nasceu a transportação do rio São Francisco para combater o clima, enchendo os canais.
As "Atas da Comissão Científica de Exploração", do Império, na parte dos trabalhos no NE, são ricas no adotar sem adaptar, cultura desenvolvida em regiões temperadas ao trópico seco.
Como se depreende, Pedro II, movido a boas intenções, estava inaugurando, não somente a iniciativa e a retórica oficiais, mas, também, sem se dar conta, a filosofia da água e a intermitência de atuação do Estado perante a irregularidade das chuvas nordestinas. Ou, dizendo de outra forma, a mistificação da água e a irresponsabilidade política.
.1900 -1907:
.Foi criada, em 1908, a primeira Instituição para cuidar do NE seco: a IOCS -Inspetoria de Obras Contra as Secas (depois IFOCS e depois DNOCS), que, desde as persistências no nome, insinua a ideologia (CONTRA) e a estratégia (OBRAS) para a "transclimação" do ambiente natural daqui. Nunca soube da necessidade de uma Agência de Engenharia Contra a Neve, para que as regiões de clima temperado, só então encontrassem os seus caminhos de viver
Seca isolada de 1915:
.Aqui no Cariri, ficou chamada a "fome de 15", porque as lavouras temporárias haviam sido perdidas por excesso d'água em 1913 e 1914, quando caíram 1980 e 2030 mm de chuvas concentradas. À seca de 1915 somavam-se as fomes de 13 e 14.
Com o romance de Rachei de Queiroz, a seca alcança o interesse de intelectuais e pensadores.
Seca atípica de 1919:
A IFOCS, instalada no Rio de Janeiro, que quase nada fizera até então, foi ativada e o paraibano-Presidente Epitácio Pessoa, ensaiando a "globalização" da Engenharia nacional, contratou uma firma inglesa e outra americana, para fazer construções: açudes no Ceará (Orós, Banabuiú, etc.), no Rio Grande do Norte (Gargalheiras) e na Paraíba (Piranhas, Coremas, Condado, etc.) foram só começados. O Presidente Artur Bernardes que o sucedeu, mandou desfazer as Comissões criadas. Só o porto de Natal ficou feito e o da Paraíba restou convertido em fotografias forjadas, nos relatórios dos serviços.
1927 -1933:
.Foi reativada a IFOCS e são construídos, com Getúlio Vargas presidente, por ação do seu Ministro da Viação José de Almeida, vários açudes dos iniciados em
1919.
São concebidas as "Frentes de Emergência", como estratégia de ação social e criadas linhas especiais dos ITAS da Costeira e do Loyd para levar flagelados até São Paulo, onde foram muito usados nas tropas da Revolução Constitucionalista de 1932.
Foi instalado na IFOCS, o Núcleo Agronômico, com José Augusto Trindade e Guimarães Duque, que além de sugerirem a "educação mesológica ", começaram a estudar a vegetação da região e identificar as plantas Xerófilas passíveis de cultivo econômico. A repartição própria - Instituto José Augusto Trindade, durou pouco. Sua recuperação foi tentada pela Sudene.
Seca de 1942/43:
Provocou a criação, na Constituição Brasileira, do chamado "Fundo das Secas", destaque de 3% do orçamento federal para aplicação no semi-árido. Sob essa rubrica, quando voltava a chover, o DNOCS sobrevivia e foi subscrito adiante, o Capital do Banco do Nordeste. O Fundo foi cancelado, na Revisão Constitucional de 1965.
São começados o açude Cocorobó na Bahia (conclusão no final da década de 50) e o açude Serrinha, no rio Pajeú, em Pernambuco (concluído somente em 1998 ! )
1951-1958:
O DNOCS constrói os açudes do Ceará e Rio Grande do Norte, iniciados em 1919 e barragens médias na região, contemplando irrigações e abastecimento d'água dos núcleos urbanos, cujas obras são iniciadas (na Paraíba foram 32 cidades).
Graças ao ilustre baiano Rômulo de Almeida na Assessoria do 2° Governo Vargas (a mesma que pensou a Eletrobrás, a Petrobrás, o BNDE, o Plano Viário Nacional, etc., enfim, o Brasil essencial que está sendo estraçalhado agora, com o pavoneamento de quem o faz), foi concebida, no útero das secas iniciais do ciclo, uma Instituição de amplitude maior, como Agência de Desenvolvimento do Semi-árido e se cria o Banco do Nordeste, que não soube ou não pôde alcançar essa dimensão, não tendo até hoje, sequer, um discurso para a seca.
São feitas tentativas de provocar chuvas artificiais, num céu de pouca nuvem. O Engº Janot Pacheco não conseguiu ser o amanaiara do NE.
O Congresso aprova, proposta pelo Deputado potiguar Aluísio Alves, a 1ª lei de Crédito Rural específica (n° 3471 de 28/11/58) pretendendo recompor, no curto prazo, a estrutura produtiva das Fazendas, desmontadas pela Grande Seca e, num tempo maior, substituir as "Frentes de Emergência". Os vetos impostos pelo Ministro da Fazenda fizeram-na vigorar apenas por 1 ano e anularam a outra intenção.
São criadas a CODEVASF e o Grupamento de Engenharia do Nordeste, para a área irrigável do vale e construções civis básicas.
Sob a ótica da compensação dos desequilíbrios regionais, ao final do Ciclo, é lançada a OPENO - Operação Nordeste e criada a SUDENE, como autarquia especial (regime orçamentário diferenciado) com a função de planejar e coordenar a ação do Governo da União no NE, através de Planos Trienais de trabalho. Seu Conselho Deliberativo, para obter densidade política e equidade de atuação, era composto, somente, pelos 9 Governadores da região. Conceitualmente, (1° Plano Diretor) deu o belo salto de considerar a Seca. .."muito mais uma crise na oferta de alimentos à região, do que uma crise na oferta de água ", cabendo-lhe " ...expandir a fronteira agrícola em direção à pré-Amazônia maranhense, para garantir a oferta regional de alimentos básicos" e ", ..adaptar à Seca a Agri-cultura do semi-árido". O "Projeto Maranhão", no cerne dessa estratégia, foi morto à míngua, logo em 1964, e o esvaziamento progressivo a que foi submetida, certamente, tolheu a materialização da diretriz esboçada .Foi extinta recentemente, sem ter conseguido "assumir" a Seca e o semi-árido, causa essencial da sua criação.
Seca isolada de 1970:
Continuam nos mesmos moldes de 1932, as "Frentes de Emergência " , onde foram alistados quase 2 milhões de pessoas, a um custo estimado de 2 bilhões de reais, em moeda de hoje.
A SUDENE perdera a condição de autarquia especial e, subordinada ao "Ministério do Planejamento", ironicamente dirigido por um nordestino ressentido, deixara de fazer os Planos Trienais de desenvolvimento. É "inventado" um tal de PIN / PROTERRA que a exauriu ainda mais.
O então chefe da República quis ver de perto uma frente de emergência instalada nas estradas do Ceará. O General Médici, gauchão imperativo, talvez porque carregasse sangue de camponeses imigrantes, horrorizou-se com a cena, fez, na volta, emocionado discurso em Mossoró e mandou o Banco Central, bem depressa, - Resolução 147 de 12 Junho 1970 -, "conceder empréstimos especiais aos proprietários situados em zonas do Polígono das Secas", para ". ...evitar o êxodo dos trabalhadores e minifundiários" .Ainda, privilegiou nesses financiamentos "plantios de forrageiras xerófilas" e a "implementação de lavouras permanentes" e só cobrar juros depois do segundo ano seguinte. A taxa foi baixada para 1/3 da usual naquele tempo, o prazo de amortização esticado para até o dobro do maior em vigor. E reescalonadas dívidas anteriores. Foi uma retomada do espírito da Lei de 1958 que, como ela, também durou -novo espasmo - apenas um ano. Ou seja: nada, ainda, permanente. ...como a Seca.
Começa, pela Paraíba, a estruturação das Campanhas Estaduais de Saneamento, para completar os sistemas urbanos de distribuição de água (iniciados na década 50), sob à ótica de saúde pública, para reduzir coeficientes de mortalidade infantil que, no semi-árido, têm muito a ver com as "doenças de veiculação hídrica" e não com a seca diretamente.
1979 -1983:
Nada, como avanço institucional. A Sudene já vazia (seu Conselho Deliberativo chegou a ter 23 membros, nivelando o voto e a dimensão de um Governador, mesmo que nomeado, ao de um representante qualquer do INPS, do BNB, do Ministério tal, da Associação qual, etc.) e, simploriamente dirigida, contesta bajulativamente em 1980/81, a prospecção do CTA (Centro Técnico Aeroespacial) que havia vazado para a imprensa (fora rotulado CONFIDENCIAL, para evitar "pressões sobre Brasília") em vez de considerá-la, como decentemente sugeriam os seus autores, um elemento de alerta e atuação preventiva. Limitou-se a manter as frentes de emergência convencionais/eleitorais e administrar uma frota de 5.111 carros pipas para espalhar água de beber.
São construídas "obras públicas definitivas" - milhares de açudes escavados em algum lugar - que teriam triplicado em dois anos, nos relatórios divulgados com ênfase, a acumulação de água (sic) no NE. Não resistiram à 1ª semana do inverno de 1984. O povo logo os batizou de "açudes Sonrisal" .
.Foram gastos 3,96 bilhões de dólares, havendo no último ano, 2 milhões 643 mil alistados cavoucando as estradas, enquanto as Fazendas, de qualquer tamanho, se auto-desestruturavam.
Uma tentativa de adotar financiamentos rurais de circunstância (impositivos numa situação desse tipo) é cancelada, já em 1980, o segundo ano da previsão do CTA, e da seca.
O Presidente Figueiredo, com mudança no estilo imita o Imperador Pedro II, e diz na televisão: "Ao final do meu Governo, o problema do NE estará resolvido; vou mandar para o NE, inclusive, a água que o danado do São Pedro está negando...". Curiosamente, a cena era da assinatura de Decretos criando "verbas especiais"...que o Ministro da Fazenda "contingenciou" tal como Joaquim Murtinho, logo depois de D. Pedro.
Iniciativas particulares pontuais começam a transportar bagaço de cana do litoral para "salvar" ruminantes, em vez da "retirada" dos gados, com seu custo mínimo de 50% dos lotes transpostos.
Seca 1990 -1993:
A população rural continuou agrupada às margens das estradas, agora sob o nome de "Frentes de Trabalho".
O rebanho do semi-árido é reduzido a 32%, onde nada mais restava do algodão arbóreo, dizimado pela colocação do BICUDO, desmontando um complexo de geração de empregos e derivados que integravam a Pecuária, e fazia; apesar da baixa produtividade da lavoura, circular alguma renda monetária na região.
Seca 1998:
O Brasil sob a "ideologia" de um internacionalismo postiço, já nem fala mais em desequilíbrios regionais. As mesmíssimas Frentes de Emergência, continuando o eufemismo da mudança de rótulo e o dispêndio de cifras enormes e inócuas perante secas seguintes, agora se chamam "Frentes Produtivas". A frota de carros-pipa ultrapassa 12 mil unidades. Os rebanhos foram destroçados até no Agreste mais úmido onde a seca chegou. Estimativa da Sudene calcula em 12 bilhões de dólares o gasto com as "Frentes" desde a seca de 1958 até essa.
O Presidente Fernando Henrique diz, sociologicamente, que os problemas do NE dependem de "soluções de mercado" e "de Deus e da chuva" (F.S.P. 7/5/98), quando viu a TV transpor os saques da fome do sertão para a sala de jantar do Brasil.
Os agricultores flagelados do NE foram incluídos por ele no rol dos "devedores contumazes", "caloteiros" como classificou os do Brasil. Ao El Nino natural juntou-se o EI Nino da inépcia e do obscurantismo. No mundo inteiro, onde há decência, qualquer agricultor é, necessariamente, um devedor contumaz. E não há conta "corrigida monetariamente" com índices e abstrações de pseudo "Ciência", gerados em outros setores do Trabalho. O desemprego e a miséria destroem os indivíduos, de modo que suas vítimas se abandonam à aceitação de uma vida de favores.
Seca verde 1999/2000:
Começa a tomar consistência a idéia de racionalizar a convivência com a seca, aprofundando a discussão do assunto.
Em Brasília, diretrizes oficiais internas afirmam que: ".....o problema das secas vai ser resolvido devagarinho, pela diminuição relativa da população do semi-árido e pela sua rápida urbanização, sustentada pelo emprego público municipal e estadual e pela previdência social. Cada seca tende a ser menos dramática do que a anterior, de forma que dentro de vinte a trinta anos, as secas serão uma coisa pequena para o País. "
Re-emerge a "transposição do São Francisco"; dessa vez acoplada à transposição do Tocantins. Como ainda faltam o Tapajós, o Xingu e outras águas, o que deve continuar havendo é a transposição do povo, "mão de obra barata ", que foi importante na construção do sudeste, agora talvez, como atrativo complementar para a Amazônia, cuja "internacionalização" também é re-emergente.
Seca, verde e seca, de 2001:
Já havia terminado a redação desse Anexo, quando ouvi que, "dessa vez,....tudo será diferente: foi designado um Ministro da Seca e o Programa consta de uma atuação em outra linha: Bolsa de Alimento, Vacinação, Bolsa Escola, Bolsa Renda, Bolsa não sei de quê. " E que haverá transparência (??) em tudo.
Remoendo a decretação, enquanto ouvia, fui pensando :
-não sei desse Ministro, onde foi nascido e onde foi vivido, e o que sabe da Seca;
- mudaram de uma vez só o substantivo e o adjetivo da rotulagem anterior, mas o tom e o timbre são antigos, transparentemente;
- nada para segurar os sertanejos na terra e no seu ofício;
- pelo jeito, vão ser maiores as chances de haver distorções e injustiças;
- continua o equívoco da inversão de foco: desprezo à atividade permanente - o trabalho na gleba - e tratamento hipócrita da circunstância;
- há um alongamento da Seca previsto e. uma eleição à vista.
Bateu a náusea , me levantei e quando dei fé, dizia para mim mesmo: ...vão pro Inferno, impostores, com essa inauguração do terceiro século de empulhação dos nordestinos da Seca.