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TRANSPOSIÇÃO EM RUMO AO DESMANTELO
João Suassuna - Eng° Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
Os principais reservatórios do São Francisco encontram-se com baixos níveis de acumulação e o racionamento de energia elétrica parece iminente.
A represa de Sobradinho, pertencente ao sistema CHESF, foi construída pelo governo federal para regularizar a vazão média do rio São Francisco, garantindo, desse modo, a geração de energia no complexo hidrelétrico de Paulo Afonso. Para tanto, Sobradinho recebe água do alto São Francisco entre os meses de novembro e abril e utiliza esse volume acumulado, entre os meses de maio e outubro, gerando energia. Essas ações tornam-se necessárias, tendo em vista as reais limitações do rio, em razão da não disponibilidade das vazões naturais necessárias à geração e, consequentemente, ao atendimento da demanda energética do Nordeste. Portanto, a acumulação no referido reservatório regularizador torna-se uma questão fundamental e até mesmo obrigatória para o perfeito funcionamento do sistema elétrico nordestino.
Recentemente, o Diário de Pernambuco publicou três matérias (nos dias 7, 8 e 9 de março de 2001) nas quais foram feitas alusões às questões da geração de energia em consequência do período de seca que assola, não apenas o Nordeste, mas todo o país.
A primeira matéria, publicada no dia 7 de março, intitulada "Energia pode ser racionada no Nordeste", trata da possibilidade de a CHESF vir a adotar medidas drásticas de contenção da demanda de água nos seus reservatórios (leia-se: racionamento de energia), na tentativa de garantir os volumes necessários ao processo gerador de energia elétrica da região. Menciona a matéria o baixo volume acumulado na represa de Sobradinho, de aproximadamente 37,66% de sua capacidade útil (note-se que estamos no mês de março e, portanto, no período em que a represa deveria estar com sua cota volumétrica máxima, ou pelo menos próxima dela) não tendo sido registrado, até então, um índice tão reduzido para aquele mês, desde a sua construção há 23 anos. Se o sistema elétrico brasileiro não fosse interligado, garantem alguns técnicos da CHESF, já teríamos como certo o racionamento e, caso a situação crítica dos volumes dos reservatórios perdure, tudo indica que teremos que importar boa parte da energia produzida em Tucuruí (hidrelétrica paraense controlada pela Eletronorte), isso porque as represas do Sudeste encontram-se em situação igualmente crítica, ou seja, mesmo com a alternativa salvadora da interligação do sistema gerador do país, há o agravante de o problema ficar mais sério ainda, tendo em vista a precária situação acumulatória em que se encontram tais reservatórios. Segundo informações do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), órgão responsável em acompanhar o nível dos reservatórios e gerenciar a troca de energia entre as geradoras do país, a quantidade de água armazenada no Sul, Sudeste e Centro-Oeste é de aproximadamente 38% da capacidade total, ou seja, aquilo que era antes considerado como válvula de escape para o bom funcionamento do processo gerador do Nordeste passa a ser, nas atuais circunstâncias, mais um complicador.
A seca que incide na bacia do São Francisco, já há algum tempo, traz conseqüências imediatas no processo acumulatório de suas represas. O quadro abaixo mostra a variação do fluxo de entrada e saída de água em alguns dos principais reservatórios da bacia do São Francisco, nos três primeiros meses de 2001.
Reservatórios |
Volume útil em março/2001 (em %) |
Entrada de água por dia ( em m³/s) |
Saída de água por dia (em m³/s) |
Três Marias |
34,69 |
198 |
499 |
Sobradinho |
37,66 |
1.320 |
2.376 |
Itaparica |
52,00 |
1.831 |
2.086 |
Numa rápida análise das informações contidas no quadro acima, percebe-se que, sob o ponto de vista do balanço do processo de entrada versus o de saída de água para usos múltiplos, o sistema está operando em alerta vermelho. Note-se que está saindo das represas um volume de água muito maior do que aquele que está sendo acumulado. Nesse sentido, a proposta da transposição de águas do São Francisco torna-se motivo de preocupações, em razão de a localização das tomadas de água do projeto estar prevista para o trecho compreendido entre as represas de Sobradinho e Itaparica, locais onde a situação volumétrica é reconhecidamente crítica.
A segunda matéria, publicada no dia 8 de março, intitulada "Seca faz energia subir no atacado", faz referência, além do aumento do risco de racionamento de energia elétrica na região, à alta de preços no Mercado Atacadista de Energia (MAE), em conseqüência da falta de chuvas no Sudeste e no Nordeste do país. Segundo a matéria, o preço do megawatt/hora, que era vendido no Nordeste a R$ 33,87 em janeiro, está sendo negociado no mês de março a R$ 154,21 (aumento de 355,29%). Preocupados com a situação energética do país, o ONS e a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) estão com o propósito de avaliar o nível dos reservatórios das hidrelétricas e discutir soluções para tentar reverter a situação crítica que o setor elétrico vem atravessando. Com a falta de água nos reservatórios do país, o preço da energia naturalmente sobe, afetando os valores no atacado (lei da oferta e da procura).
No quadro abaixo estão discriminados os preços no atacado, nos três primeiros meses de 2001.
Preço no atacado do megawatt/hora (em Reais)
Mercado |
Janeiro |
Fevereiro |
Março |
Sudeste/Centro-Oeste |
56,92 |
160,29 |
165,97 |
Sul |
56,92 |
160,29 |
165,97 |
Nordeste |
33,87 |
121,47 |
154,21 |
Norte |
33,87 |
121,47 |
154,21 |
Como pode ser observado nesse quadro, entre janeiro e março deste ano os preços da energia elétrica negociada pela MAE no Norte e Nordeste do país praticamente quintuplicaram. No Sul/Sudeste, também houve um aumento considerável. Esse aumento é reflexo direto da falta de chuvas nas citadas regiões, onde, sem água, as usinas hidrelétricas são obrigadas a reduzir a produção de energia, onerando o seu custo.
A terceira e última matéria, publicada no dia 9 de março, intitulada "Privatização da CHESF divide o mercado", faz críticas ao atual modelo de privatização adotado pelo governo federal, levantando os problemas de geração de energia a partir dos baixos volumes acumulados nos principais reservatórios do país e alertando sobre os chamados cortes seletivos de energia, um suposto artifício do governo no qual, em horários de pico, é desligada a energia de uma área para abastecer outra. Com a adoção dessa estratégia, o governo dá sinais de que o assunto vem sendo tratado, exclusivamente, sob a ótica financeira, não havendo, portanto, a preocupação com o bem-estar do usuário da energia, nem tampouco com a necessidade dos investimentos fundamentais à modernização do parque gerador, o que poderá trazer conseqüências gravíssimas, principalmente para o Nordeste brasileiro, que tem seu sistema gerador localizado em um único rio, cujas águas também são utilizadas na irrigação, navegação, consumo humano e animal e abastecimento de cidades e indústrias.
Essas questões têm-nos motivado a publicar textos no "site" da Fundação Joaquim Nabuco, nos quais procuramos fazer um alerta sobre as limitações do rio, principalmente quanto à geração de energia e aos usos múltiplos de suas águas, assuntos que necessitam ser mais discutidos com a comunidade, pois é ela que irá pagar as contas ao término do processo transpositório, quer usufrua ou não de suas águas.
Em maio de 1998, escrevemos um texto intitulado "Transposição do Rio São Francisco: um erro que poderá ser fatal", no qual foram feitas referências ao racionamento de energia elétrica ocorrido em Recife (PE), no final da década de oitenta, motivado por problemas de vazão do rio, e às prováveis conseqüências na geração de energia, caso o rio venha a suprir o projeto transpositório com os volumes programados.
Em outubro de 1999, no texto intitulado "Transposição: impactos da bacia hidrográfica do São Francisco", entre outros impactos, comentamos o conflito existente no uso das águas do rio pelos setores irrigacionista e gerador de energia, com a perspectiva de colapso energético iminente, caso o projeto transpositório torne-se realidade nos moldes previstos.
Em julho de 2000, no texto "Transposição de águas do São Francisco: com a corda no pescoço e de mãos atadas", fizemos comentários sobre as limitações naturais do rio quanto aos usos múltiplos de suas águas, com enfoque especial para os baixos volumes acumulados nos principais reservatórios do setor elétrico brasileiro, mostrando que os problemas de geração não são exclusivos do Nordeste. O problema passou a ser considerado de âmbito nacional.
Em outubro de 2000, no texto intitulado "A transposição de águas do São Francisco poderá ocasionar um ‘processo vaga-lume’ no sistema elétrico nordestino", fizemos referências sobre várias matérias publicadas pela mídia, alusivas à influência da seca na geração de energia elétrica no país, com ênfase no projeto de transposição do São Francisco como precursor de possíveis apagões no Nordeste, motivados, sobretudo, por questões de limitações naturais do rio.
Nesse contexto de penúria hídrica e da possibilidade de colapso iminente no sistema gerador de energia, foi publicado pela Secretaria de Infra-Estrutura Hídrica do Ministério de Integração Nacional, na edição do dia 8 de março do Jornal do Comércio de Recife, um artigo intitulado"Transposição com Transparência", no qual há referências aos benefícios que o projeto vai trazer à população nordestina, através do abastecimento de mais de oito milhões de pessoas; da geração de mais de um milhão de empregos; da garantia de que a natureza não sofrerá prejuízos e de que a pequena perda na capacidade de geração de energia elétrica será compensada por outras iniciativas do governo, oriundas da geração termelétrica. Com relação ao uso dos volumes pretendidos para o atendimento das demandas previstas no projeto, chega-se ao detalhe de comentar que "a mínima porção de água que será retirada, sequer poderá ser registrada pelos mais modernos aparelhos que medem a vazão do rio".
De acordo com a edição da matéria, tem-se a nítida impressão de que o governo não tem conhecimento de causa com relação às questões do São Francisco. Primeiramente, porque não se estão levando em consideração as reais limitações do rio, notadamente a sua incapacidade de atendimento aos múltiplos usos de suas águas. Em segundo lugar, a proposta nos parece mais viável para ser implementada nos rios que compõem a bacia amazônica, que não apresentam problemas de vazão. O fato de um aparelho de precisão não registrar, no São Francisco, a diminuição do seu nível aos constantes bombeamentos, não nos parece um bom exemplo a ser aqui analisado. Falta-lhe seriedade no tratamento dos assuntos técnicos. Falta a percepção de proporcionalidade entre o volume que está sendo retirado do rio, através do bombeamento, e o volume de água existente no caudal. É a lógica do "aquilo que não se percebe não existe". Sob essa ótica, é acreditar que não existe desgaste no pneu de um automóvel, aos setenta mil quilômetros rodados, pelo simples fato de não se perceber o desgaste que ocorre a cada volta do pneu em contato com o chão.
No caso específico da transposição, é fundamental se observar que a mesma está sendo proposta em um rio cuja vazão já se encontra em patamares críticos e, portanto, sem ter a mínima disponibilidade hídrica para outros usos. Esse, sim, é o melhor parâmetro para se demonstrar a necessidade atual de se ter que importar energia de outros centros geradores do país, sendo uma questão absolutamente necessária para ser discutida nos fóruns sobre a transposição, na atualidade. Mas, mesmo assim, as autoridades insistem em querer tratar a transposição do São Francisco, como tratam o simples ato de tomar um copo de refrigerante, no qual, ao se succionar o canudinho, é observada a diminuição do nível do líquido até o seu total desaparecimento no fundo do copo. É hilariante, mas é isso que as autoridades realmente acreditam.
Recife, 15 de março de 2001