Notícias
RACIONAMENTO: O PREÇO DA IRRESPONSABILIDADE
João Suassuna - Eng° Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
O governo federal apostou nas chuvas que não caíram
Em 1995 escrevemos um texto intitulado
TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO: possibilidades técnicas versus vontade política
, no qual, entre outros assuntos, comentamos a visita que o presidente Fernando Henrique Cardoso fez ao Nordeste com a finalidade de trazer recursos para um programa que chamou de "Compromisso pela vida do Rio São Francisco" (matéria publicada nos principais jornais do Recife do dia 6 de junho daquele ano). Sua Excelência, junto a sua comitiva, foi à nascente do rio, tomou um pouco de água e transmitiu sua mensagem de apoio à transposição dizendo que "O Rio é generoso e não há de secar porque os estados nordestinos pegam um pouquinho de água aqui e ali".
Com a atual situação em que se encontra o país em termos de racionamento de energia elétrica, dá para perceber que, com aquele gesto, o presidente errou e errou feio em suas previsões, pois mesmo sem se pegar um pouquinho de água aqui e ali evitou-se o problema de racionamento de energia no país. Essa questão é grave, tendo em vista ser o São Francisco responsável por mais de 90% da energia gerada no Nordeste brasileiro. Todavia, não faltaram alertas de nossa parte para se evitar o pior: que o país viesse a ter os chamados apagões.
O mote do Presidente de "pegar um pouquinho de água aqui e ali" foi o suficiente para nos incentivar na elaboração de uma série de textos em defesa da vida do velho Chico, numa tentativa de mostrar as reais limitações do rio para o abastecimento das populações sedentas nordestinas, conforme divulgado no "site" da Fundação Joaquim Nabuco.
O governo, ao nosso modo de entender, cometeu dois erros graves: apostou na interligação do sistema elétrico brasileiro para o suprimento da energia necessária ao desenvolvimento do Nordeste, e na boa vontade de São Pedro em enviar chuvas suficientes para o abastecimento dos principais reservatórios responsáveis pela geração de energia do país. O que aconteceu, ao longo dos quatro últimos anos, foi uma situação já anunciada previamente: ocorreram secas sucessivas, não apenas aqui no Nordeste, mas em todo o país, e ficou evidente a incapacidade da interligação do sistema elétrico brasileiro em suprir a demanda energética das regiões, em especial a nordestina. Nesse sentido, o Brasil caminha para o apagão, recebendo críticas dos mais diversos setores da sociedade, não apenas pela falta de planejamento na área energética, mas, e principalmente, pela falta de investimentos nesse setor.
Em julho de 2000, tivemos a oportunidade de comentar tal fato no texto intitulado
TRANSPOSIÇÃO DE ÁGUAS DO SÃO FRANCISCO: com a corda no pescoço e de mãos atadas
. Nele, fizemos uma análise comparativa dos percentuais volumétricos acumulados pelas principais represas pertencentes a diversas bacias hidrográficas do país, concluindo que os problemas de acumulação hoje vivenciados não diziam respeito apenas às represas localizadas nas bacias hidrográficas nordestinas: passavam a ter dimensões mais amplas. O problema passava a ser nacional.
Na questão da interligação do sistema elétrico brasileiro, fizemos comentários acerca de Tucuruí, mostrando que, no caso específico do Nordeste, essa questão tinha caráter paliativo, pois ao se resolver, momentaneamente, um problema local de fornecimento de energia, criava-se outro de igual magnitude na região Norte, traduzido na possibilidade de exaustão precoce do seu potencial gerador. Chegamos ao ponto de questionar até quando a usina de Tucuruí iria suportar essa oferta extra de energia para o Nordeste e advertimos que essa questão deveria ser levada em consideração em futuros planejamentos do setor elétrico nacional. Acerca desse assunto, acertamos nas nossas previsões: a região Norte também terá que racionar em 20% o consumo de sua energia, para possibilitar o suprimento de 1000 MW/h que atualmente estão sendo fornecidos ao Nordeste por Tucuruí.
O curioso é que participamos, por várias ocasiões, de apresentações do projeto de Transposição feitas pelo governo federal, nas quais questionou-se o problema da ocorrência das secas na região, que colocava em risco a viabilidade do projeto transpositório do rio. A resposta apresentada pelos representantes do governo foi a de que as secas eram situações "circunstanciais" e que, certamente, após períodos chuvosos sucessivos, a situação tenderia à normalidade. Para nós, esse é o tipo de resposta que bem caracteriza o pensamento das pessoas que não têm o mínimo compromisso com a região e, portanto, não a conhecem com a profundidade devida. Primeiramente, é preciso que fique bem claro que "circunstancial" é a normalidade pluviométrica no Nordeste (traduzida pela caída de chuvas em períodos e quantidades satisfatórios), notadamente em sua região semi-árida e, em segundo lugar, que o "normal" é o astro rei no céu azul sem nuvens e uma eterna espera por chuvas. Ao se apostar em um quadro diferente desse aqui descrito, tem-se boas possibilidades de insucessos, e os que estamos vivenciando atualmente no Brasil são uma prova disso.
Para nós, está-se tornando muito fácil comentar as conseqüências dos erros grosseiros de avaliação cometidos pelo governo, principalmente quando o assunto diz respeito à utilização do ambiente natural do nosso país. Normalmente, em tais casos, a economia tende a ser atingida na sua essência. Para se ter idéia da magnitude desse problema, citamos um exemplo: o custo da energia. Em março de 2001 escrevemos um texto intitulado
TRANSPOSIÇÃO EM RUMO AO DESMANTELO
, no qual fizemos referências ao custo da energia negociado pelo Mercado Atacadista de Energia (MAE), de janeiro a março de 2001. Em janeiro, o MW/hora estava sendo negociado, no Nordeste, a R$ 33,87 e em março a R$ 154,21, ou seja, cinco vezes mais cara. Esse aumento abusivo bem reflete a falta do produto em relação à quantidade que está sendo demandada. Na lei da economia, quando um bem escasso é demandado, a tendência desse bem é subir de preço. É o que está acontecendo com a nossa energia. Estamos no mês de junho de 2001 e o preço do MW/hora gerado já ultrapassou os R$ 600,00, com reflexos significativos no bolso da população. O lamentável é que, até setembro de 2000, o Nordeste, por intermédio da CHESF, estava enviando energia para o Sudeste, conforme consta no boletim de notícias do Ministério de Minas e Energia, no qual se afirma que, naquele período, "a situação do abastecimento energético do Nordeste também melhorou em razão das chuvas no Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Com a melhoria da capacidade de geração dessas regiões, o Nordeste suspendeu o envio de energia para o abastecimento de Estados do Sudeste, poupando água para aumentar o nível dos reservatórios das usinas da CHESF". Essa energia enviada ao Sudeste, até setembro do ano passado, certamente nos fará muita falta até o final do ano de 2001, período no qual se iniciam as chuvas nas nascentes do São Francisco.
Se fizermos uma análise mais profunda dessa situação, iremos chegar à conclusão de que o racionamento de energia, iniciado do mês de junho de 2001, deveria ter sido iniciado em janeiro, tendo em vista o histórico das secas na bacia do São Francisco desde 1997 e o início da alta abusiva nos preços da energia gerada. Em suma: o volume de água gasto na geração de energia, no período de janeiro a junho de 2001, sem racionamento, também nos fará uma falta enorme até novembro. É viver para crer.
Ainda sobre as questões da transposição do São Francisco, é necessário que sejam questionados outros assuntos importantes e merecedores da atenção de toda sociedade. Referimo-nos aos estudos de impactos ambientais e de viabilidade técnica-econômica que foram realizados por consórcios internacionais. Sobre esses assuntos, é estarrecedor chegarmos a conclusão de que tais estudos não foram capazes de identificar os problemas da escassez de água que atualmente estão pondo em risco todo o setor de geração de energia do Nordeste. Ao contrário, após serem analisados 49 fatores de risco, 38 dos quais com efeitos negativos ao ambiente, o projeto recebeu o parecer "ambientalmente viável", conforme consta no texto por nós publicado em novembro de 2000, intitulado "TRANSPOSIÇÃO: um esclarecimento e um acerto nas previsões". Na nossa avaliação, esses consórcios só chegaram a essa conclusão por desconhecerem inteiramente a realidade nordestina. A esse respeito publicamos um texto em fevereiro de 1999 intitulado "TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA NA AGRICULTURA: um decalque mal feito" mostrando a importância das latitudes na percepção do ambiente de cada região e as conseqüências advindas de decalques mal feitos de tecnologias alienígenas ao nosso meio. Com efeito, cremos que é chegada a hora de averiguarmos com mais detalhes tais questões, fazendo uma análise mais acurada de como foram feitas as licitações para a contratação de tais estudos, bem como o montante de recursos orçados para a sua realização, uma vez que essa conta irá sair do bolso de cada um dos contribuintes brasileiros.
Outro exemplo da ignorância da nossa realidade diz respeito à transposição de águas do São Francisco para o Rio Grande do Norte. Nesse caso, é imprescindível questionarmos o verdadeiro custo das águas ao chegar naquele estado, tendo em vista a distância entre a margem do rio e o usuário final ser muito extensa, o seu destino previsto para locais onde ela já é abundante (no arenito Açu, formação Dunas e Barreiras e na represa Armando Ribeiro Gonçalves) e também por não terem sido contemplados os locais onde ela é realmente necessária, a exemplo da região do Seridó no referido estado. Esse fato nos leva a acreditar que os políticos, isso de uma maneira geral, não costumam ouvir previamente os técnicos e elaboram suas políticas sem qualquer planejamento ou conhecimento de causa, só se pronunciando tardiamente para exigir sacrifícios do nosso povo já tão sacrificado. Todas essas questões foram tratadas em três textos de nossa autoria. O primeiro, publicado em maio de 1998 intitulado "VONTADE POLÍTICA É A VERDADEIRA SECA DO NORDESTE" o outro, publicado em julho de 2000, intitulado "TRANSPOSIÇÃO: o grau de nacionalismo dos nossos dirigentes está demasiadamente baixo ou mesmo inexiste" e o último publicado em setembro de 2000 intitulado "TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE: a água irá chegar em locais onde ela já é abundante".
É importante, também, que atualmente se leve em consideração o destino dos recursos que já foram orçados no Orçamento Geral da União - cerca de R$ 300 milhões - para o início das obras transpositórias das águas do São Francisco. Como existe atualmente a impossibilidade técnica de se iniciar a transposição, por razões obvias, seria mais do que pertinente que os mesmos fossem alocados na revitalização do rio que é uma das atividades mais importantes na atualidade e mantenedora da vida do Velho Chico.
Finalmente, já que o governo apelou para questões celestiais, na perspectiva de fazer chover na bacia do São Francisco, cremos que é chegada a hora de apelarmos também para a pajelança, no intuito de alcançarmos o mesmo propósito.
Quando, em 1998, boa parte das florestas do estado de Roraima ardeu em chamas que atingiram mais de 1/3 do seu território, o governo federal contou com a ajuda de dois pajés da tribo Caiapó para solucionar o problema pirotécnico, os quais, munidos de chicotes, açoitaram um pequeno córrego nas proximidades do incêndio, fazendo chegar as chuvas providenciais.
Não desejamos a mesma sorte para o São Francisco, pois ele não merece ser tratado no açoite, mas sugerimos aos nossos dirigentes que procurem novamente os serviços indígenas dos pajés caiapó para açoitar, dessa feita, o Lago Paranoá em Brasília, região que fica próxima não apenas das nascentes do São Francisco, como também do poder central do país, para fazer chover nas cabeceiras do São Francisco e, quem sabe, acumular água para gerar energia suficiente para iluminar as mentes dos nossos políticos, que andam atualmente com as baterias descarregadas, quase apagando, a exemplo do Brasil, que segue na rota da escuridão.
Recife, 12 de junho de 2001.