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Questões técnicas da transposição: o presidente Lula não sabia, artigo de João Suassuna
Engrossando as fileiras de retirantes da seca, o presidente Lula, ainda muito jovem, dirigiu-se a São Paulo, onde se estabeleceu no ramo da metalurgia, que o obrigou a afastar-se definitivamente de seu torrão natal. Evidentemente, por abraçar esse novo desafio em sua vida, o presidente distanciou-se das questões ambientais do Nordeste seco, a ponto de não vislumbrar ou mesmo não ter idéia formada sobre as conseqüências delas advindas, quando das tomadas de decisões em projetos envolvendo assuntos relacionados ao ambiente natural da sua região. Isso ficou muito claro nas decisões tomadas no projeto de Integração da Bacia do rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional, mais conhecido hoje como Transposição do rio São Francisco.
Vários são os pontos sobre os quais recaem esses nossos argumentos, a começar pela construção dos 700 km de canais a serem abertos em plena caatinga nordestina, localizados em geologia cristalina, portanto nos piores solos da região. Nesse tipo de geologia, os solos são rasos e pedregosos, nos quais a rocha que os originam está praticamente à superfície, chegando a aflorar em alguns pontos. Isso significa que a construção de canais em tal situação (os canais terão 25 m de largura, 5 m de profundidade e 700 km de extensão) volta e meia encontrará rochas em seu traçado o que demandará, em muitos casos, o uso de explosivos para a desobstrução de seu caminho, dificultando e atrasando o cronograma de execução da obra. Partindo-se da premissa de que, nessas condições, é possível a execução de 100 m de canais por dia – difícil de ser alcançado devido às dificuldades já relatadas -, seriam necessários cerca de 7.000 dias para concluir os 700 km de canais, correspondendo a mais de 17 anos para execução das obras. Portanto, não procede a informação das autoridades responsáveis pelo projeto de que as águas do São Francisco já estarão disponíveis à população dos estados receptores no Natal do ano de 2006.
Outra questão a ser comentada diz respeito ao número de pessoas que serão atendidas pelo projeto. Segundo as autoridades serão abastecidas 12 milhões de pessoas no Semi-árido nordestino. Ora, os estados receptores das águas do rio São Francisco (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba) possuem uma população de 13,5 milhões de habitantes. Excluídos desse total o contingente populacional já atendido pelo abastecimento d´água nas grandes capitais e nos principais centros urbanos desses três estados, o número de pessoas cai para 9,5 milhões. A pergunta que não quer calar é a seguinte: onde estão esses 12 milhões de habitantes que serão atendidos pelo projeto?
Nesse sentido, preocupa-nos, também, a informação de que Sua Excelência pretende desapropriar 2,5 km de terras em ambos os lados dos canais, ao longo de seus 700 km, beneficiando uma área de 350 mil ha de terras, para o desenvolvimento da agricultura familiar regional. Sem tirar o mérito e a importância de se apoiar a agricultura nordestina, cabe-nos um alerta ao senhor presidente: com a inexistência de estudos de aptidão de solos nesses locais, fica difícil a obtenção de êxito no empreendimento. Esses solos, de péssima qualidade (geologia cristalina), não se prestam para o uso em atividades irrigacionistas. Pretender dar apoio a agricultura familiar nessas condições edáficas, com o uso irrestrito das águas do Velho Chico irá resultar em riscos previsíveis, com conseqüências incalculáveis.
Outro assunto que merece ser citado diz respeito ao exagerado índice evaporimétrico existente na região por onde irão passar os canais (estima-se na região semi-árida um potencial evaporimétrico da ordem de 2.000 mm ao ano), o que resultará numa evaporação exacerbada das águas que irão ser transpostas. As dimensões dos canais já citadas anteriormente e a constante movimentação da água no seu interior irão facilitar sobremaneira as perdas da água por evaporação. Além do mais, existem as perdas ditas casuais, que são aquelas motivadas pelo furto da água. Isso será uma realidade, principalmente em comunidades próximas aos canais, as quais, em anos secos, buscarão o abastecimento de qualquer forma, facilitadas que serão pela ausência ou incapacidade da ação de órgãos fiscalizadores na região. Certamente, os volumes de água calculados para o abastecimento dos estados receptores do projeto terão que ser revistos, diante das perdas que serão inevitáveis e não previstas, pelo menos com a exatidão exigida em um projeto dessa magnitude.
Outro aspecto importante a ser mencionado é a insuficiência volumétrica do rio São Francisco para o atendimento das necessidades do projeto. Segundo avaliação técnica realizada no Recife pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, o rio São Francisco já não possui vazões suficientes para esse atendimento. O rio é detentor de uma vazão alocável de apenas 360 m³/s, dos quais 335 m³/s já foram outorgados (desse volume estão sendo efetivamente utilizados 91 m³/s), ou seja, já há direito ao uso desses volumes. Portanto, o que resta no rio é um saldo de apenas 25 m³/s para ser utilizado em um projeto cuja demanda média é de 65 m³/s, podendo chegar a uma demanda máxima de 127 m³/s. As autoridades insistem em afirmar que a vazão de 25 m³/s é irrisória (cerca de 1%) se comparada ao volume regularizado do rio em sua foz, de cerca de 1.850 m³/s. Sobre essa questão, lembramos que os cálculos têm que ser feitos levando-se em consideração os volumes alocáveis do rio (os 360 m³/s permitidos para fins consuntivos) e não a sua vazão regularizada na foz (os 1.850 m³/s). Levando-se em consideração os volumes alocáveis e seus usos efetivos (360 – 91 = 269 m³/s), os 65 m³/s médios do projeto representam cerca de 25% e a vazão máxima, os 127 m³/s, 47% dos volumes alocáveis, respectivamente.
Outro ponto importante a ser considerado diz respeito ao custo da água do rio São Francisco posta nos estados receptores do projeto. Segundo informações existentes no EIA-RIMA (o relatório e o estudo de impactos ambientais do projeto), o m³ de água posto naqueles estados custará cerca de R$ 0,11. Esse valor é proibitivo para uso no agro-negócio, principalmente em atividades irrigacionistas, se considerarmos o custo cobrado pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf, aos seus colonos, de R$ 0,023 o m³. Tudo leva a crer que para tornar viável o projeto, as autoridades irão valer-se dos subsídios cruzados, ou seja, as tarifas de águas dos grandes centros urbanos que não irão receber as águas do rio São Francisco deverão ser acrescidas para possibilitar o agro-negócio. Nesse sentido, já foi divulgada na imprensa de Pernambuco a possibilidade de um aumento na tarifa da água da cidade do Recife – que não irá receber as águas do rio São Francisco – de cerca de 30% para a viabilização do projeto. Isso vai-se tornar uma realidade.
Finalmente, é oportuno comentar a participação do estado de Pernambuco no projeto de transposição. Em maio de 2005, conforme publicado pelo Diário de Pernambuco na edição do dia 12, o governo do estado encaminhou proposta ao Ministério da Integração para a sua participação no projeto, por entender que o estado não poderia servir apenas de passagem da água do Velho Chico, para beneficiar a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o Ceará. Numa forma de tirar o melhor proveito possível das duas passagens da água no território pernambucano, sugeriu que o eixo Norte do projeto fosse substituído pelo Canal do Sertão, alternativa que beneficiaria os melhores solos do estado (as autoridades pernambucanas estimam um benefício em uma área de cerca de 150 mil ha) e que o eixo Leste fosse acrescido de um ramal (ramal do Agreste) na altura do município de Arcoverde, para possibilitar a chegada da água ao município de Gravatá, na bacia do rio Ipojuca.
Naquela ocasião, a resposta do Ministério da Integração diante do pleito pernambucano não foi muito animadora (apesar de ter prometido analisar as mudanças solicitadas, sempre deu como pouco provável a sua incorporação no atual projeto), tendo em vista o encarecimento em até 15% (R$ 675 milhões) do custo total da obra orçada em R$ 4,5 bilhões.
Ocorre que, diante da atual crise política e, portanto, com o quadro de incertezas existente no país, o Ministério da Integração enviou carta ao governo de Pernambuco aceitando não só as propostas iniciais do estado, mas confirmando, também, aquelas já em andamento pelo governo Federal, ou seja, o estado de Pernambuco irá ter um terceiro eixo Oeste (antigo Canal do Sertão) e as águas no eixo Leste, no chamado ramal do Agreste, chegarão até o município de Pesqueira, encarecendo o projeto dessa feita em cerca de R$1 bilhão. Esses assuntos foram tratados na edição do Diário de Pernambuco do dia 30 de julho do corrente ano.
Ora, pelo fato de o governo federal ter, de uma hora para outra, atendido ao pleito de Pernambuco, entendemos esse fato como mera cena política. Segundo a nossa ótica, o governo está tentando capitalizar o apoio político do governador Jarbas Vasconcelos com um projeto que está fadado ao fracasso. Lembramos que inicialmente havia relutância do Ministério da Integração em apoiar as reivindicações de Pernambuco e agora, diante do quadro político vigente, o mesmo ministério decide beneficiar o projeto a todo custo, inclusive com um orçamento maior.
Considerávamos, antes, que o principal empecilho era o custo, pois a substituição do eixo Norte pelo Canal do Sertão e a extensão do ramal do Agreste até Gravatá, como proposto inicialmente, iria onerar a obra em torno de 15% em um projeto orçado em R$ 4,5 bilhões. Agora, falam em um custo de cerca de R$ 1 bilhão. O governo federal não tem dinheiro para isso. Para piorar a situação, lembramos que a obra está embargada em suas atividades (não se pode retirar sequer uma pá de areia das margens do rio) pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, que manteve a liminar concedida pela Justiça Federal da Bahia, proibindo o início das obras por causa de pendências ambientais. O Tribunal de Contas da União – TCU também detectou possíveis irregularidades na licitação em curso.
Não acreditamos que o presidente Lula estivesse sabendo desses detalhes da execução do projeto, principalmente diante dos condicionantes técnicos envolvendo o ambiente nordestino. Caso o projeto venha a ter sucesso futuro na sua condução, com a cassação das liminares impostas pelo STJ, esperamos que os recursos a serem liberados para Pernambuco não venham a faltar em outros setores importantes para o desenvolvimento do país, nem onerar ainda mais sua população já tão sacrificada.
João Suassuna é engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.
https://www.ecodebate.com.br/2005/08/01/questoes-tecnicas-da-transposicao-o-presidente-lula-nao-sabia-artigo-de-joao-suassuna/ EcoDebate - 01/08/2005